NEWSLETTER EXCLUSIVA PARA ASSINANTES Para que não lhe escape nada, todos os meses o Diretor da SÁBADO faz um resumo sobre o que de melhor aconteceu no mês anterior.
NEWSLETTER EXCLUSIVA PARA ASSINANTES Para que não lhe escape nada, todos os meses o Diretor da SÁBADO faz um resumo sobre o que de melhor aconteceu no mês anterior.
Nesta crónica, o jornalista e escritor Eduardo Quive relata os últimos dias em Moçambique, marcados pelos rumores sobre "homens-catana" nas ruas após a fuga de mais de 1.500 reclusos.
Ainda não havia passado a depressão da ausência da festa de natal e já se anunciava o terror: homens com catanas andam à solta no bairro, com sede de sangue e dispostos a cometer todo o tipo de crimes. Passa da uma da madrugada e o telemóvel não pára de tocar com gente de outros lugares, familiares, amigos e vizinhos, preocupados em dar-nos a notícia, as nossas vidas correm perigo.
picture-alliance/dpa/AP Images
Enquanto busco um certo equilíbrio entre o pânico e a razão, mais chamadas, mais mensagens chegam-me, com a urgência das más notícias. Lá fora soam apitos, cânticos e gritos, como despertadores impossíveis de desligar. São os sistemas humanos de alarme e a tal vigilância popular que já havia se instalado e não me dei conta. Mesmo assim, o instinto manda-me fazer uma certa reconstituição dos factos.
Passam dois meses que o caos e o protesto tomou conta do país. No bairro da Matola Gare, a 30 km do centro de Maputo, o cenário que vivemos nas últimas 48 horas levou que os mais vividos comprassem a uma guerra - a apenas 28 anos terminou a guerra civil em Moçambique e a apenas cinco foi assinado o último acordo que levou à deposição definitiva das armas dos homens da Renamo.
Os principais empreendimentos foram transformados em escombros, depois de vandalizados, saqueados e muitos até incendiados. Pequenas mercearias dos nossos amigos burundeses, chineses e monhés que ensinaram o bairro a multiplicar o pouco dinheiro em vários pedaços de derivados de galinhas, o arroz, o açúcar, o amendoim vendidos a quilo e outros produtos essenciais que passamos a encontrar na esquina com a sua instalação; as fábricas de produtos alimentares e armazéns de comida, electrodomésticos, veículos e materiais de construção, até mesmo as farmácias e cell shops, não escaparam da fúria dos que agora é difícil atribuir-lhes um nome: manifestantes, protestatários ou vândalos, como ficou célebre na revolta de pão (2008/2010).
O que vi, na verdade, foram homens, mulheres e crianças, que não mediam as forças para carregar de tudo o que encontravam nesses lugares, empurrando-se uns aos outros, com os mais azarados a encontrar a morte na azáfama do saque, alguns mortos carbonizados no fogo dentro dos estabelecimentos. O cheiro de carne assada ainda paira nos ares do bairro George Dimitrov (Benfica), onde dezenas de pessoas, grande parte menores, morreram carbonizadas.
Os postos de abastecimento de combustíveis desta vez não escaparam. De repente assistimos ao frenesim de pessoas com bidons plásticos e bacias a ir abastecerem-se de gasolina sem pagar nem um cêntimo; vimos algumas viaturas a encherem os tanques com os operadores dos postos guarnecidos pelos «manifestantes»; os bancos também arderam, com as caixas multibancos retirados e depois batidos com fortes marteladas em busca do dinheiro.
O medo e a apreensão por males maiores levou que alguns estivessem recolhidos dentro das casas, mas com os olhos postos às redes sociais, onde a cada segundo o abismo ficava à vista, anunciado com a crença de que uma revolução está a acontecer e o povo tomava o «poder». Num bairro imediatamente a verdade fez-se total e completa: estava tudo partido, esvaziado e queimado.
No auge das desgraças, Venâncio Mondlane ainda surgiu numa comunicação online a dissuadir os «manifestantes» da conduta violenta e o ataque declarado à indústria e ao comércio. Mas muitos experimentaram a «liberdade» e poucos lhe deram ouvidos. Daniel Chapo já havia discursado em aceitação à vitória, mas a festa durou pouco, com o caos a roubar o protagonismo. A anarquia e o sangue só aumentavam.
Enquanto o fumo negro invadia as residências, as ruas ficavam mais escuras e se confirmava a falta dos alimentos mais básicos. O transporte público e até viaturas particulares também não podiam circular. Desta vez não foi apenas pelas barricadas e portagens clandestinas que já os tínhamos como certos há já algum tempo nas estradas, mas porque estavam sem combustível.
Adelium Castelo
*
Ao princípio da tarde do dia 25, quando lamentamos os mortos e lambíamos as nossas próprias feridas internas e externas, o impensável chegou-nos: uma invasão na cadeia de máxima segurança, localizada na Machava, cidade da Matola, a apenas 12km do nosso bairro. Depois de tudo o que vivemos nestes dias ainda custava-nos a acreditar que isso era possível. Sim, muitas foram as esquadras e postos policiais incendiados, no nosso próprio bairro a 24 horas uma foi queimada, certamente que há delinquentes a solta, mas nada que se associe a quem esteja numa cadeia de máxima segurança.
Também nestes dias a desinformação é grande. Mas não, não era mentira. A confirmação chegou com várias versões como está na moda no actual contexto sociopolítico. Disse-se que os presos foram soltos de propósito para semear o pânico e o medo e desviar o foco das manifestações. Essa não é a versão oficial, mas o povo do bairro tomou-a como a mais provável, ignorando as duas versões contraditórias do governo e do comandante geral da polícia.
E chegamos assim à madrugada de 26 de Dezembro, quando os rumores dos homens-catana fez tocar todos os telemóveis do bairro e ao que percebemos de seguida, de vários bairros de Maputo e Matola, ao mesmo tempo e com eles o som dos apitos que crescia nas ruas, enquanto também as vozes das pessoas subiam de tom. Sacudido da cama, saí apressado para o meio da rua onde muitos outros vizinhos já se encontravam: homens, mulheres, crianças e idosos.
Os nervos subiram até aos cabelos. Não precisamos nos dar ao trabalho da imaginação. As notícias, as redes sociais, não poupavam nos detalhes do que aí vem, 1534 reclusos fugiram do Estabelecimento Penitenciário de Maputo. Homens, na sua maioria perigosos cadastratos, presos por violação sexual, por actos de terrorismo em Cabo Delgado, especialistas em decapitar pessoas, sequestradores, assassinos, muitos deles sem nada a perder.
Temos de defender-nos. Vamos nos organizar. Os homens devem fazer patrulha pelo bairro. Pegamos em catanas, enxadas, martelos, paus e começamos a circular errantes, à caça dos bandidos que nos caçam. Os rapazes mais novos é que pareciam mais energizados com a prestação de serviço de proteção. Eles, aliás, é que têm sido os mais ágeis em todas estas manifestações, estando na linha da frente das vandalizações e da vingança contra os líderes dos bairros associados a Frelimo, que viram as suas residências e bens queimados. Eles agora vão à caça dos «homens-catana».
Nós outros mantivemo-nos em frente às nossas casas, ou porque fomos tomados pelo pânico paralisante, ou por simples descaso do assunto: então os homens vão fugir da prisão e ter como objectivo cometer crimes nas redondezas, com o risco de serem apanhados e devolvidos para a prisão?
Enquanto debatíamos as várias teorias, da fuga programada pelo «sistema», talvez evasão por astúcia dos prisioneiros ou reclusos soltos por manifestantes, escutamos gritos nas zonas escuras do bairro. Fomos a correr e estava uma batalha à moda antiga, com bastões e catanas, entre grupos de patrulhas que por alguma razão se desentenderam, no modus operandi. De bairros mais distante chegavam-nos barulhos das armas, não tardou para sabermos que a polícia terá alvejado um homem que se encontrava entre grupos de segurança; outros relatos foram nos chegando antes do galo cantar, que foram vistos homens com farda e viatura da polícia a soltar os supostos reclusos numa área que inclui o cemitério de Machava-Bedene; a população decidida a proteger-se de tais homens, ateou fogo sobre a mata densa que cobria as campas.
Finalmente o sol marcava a presença e estávamos de ombros caídos, exaustos e a cambalear. O balanço seria feito mais tarde: nenhum recluso fugitivo foi apanhado entre as patrulhas com um homem linchado à mistura, porque parecia malfeitor, alguns vigilantes foram vítimas de balas «perdidas» e dois rapazes se feriram enquanto disputavam territórios e o poder de liderar a «vigilância popular».
*
No princípio do fim de semana, a trégua foi anunciada. «Vamos dedicar o sábado e o domingo para enterrar os mortos, cuidar dos feridos», anunciou Mondlane. Muitos foram os que tiraram os dias para reabastecerem-se com alimentos e outros bens essenciais. Sem combustíveis os transportes públicos circulavam com restrições. Vi vizinhos que desesperados gastaram os últimos litros de gasolina atrás de mais gasolina. Como todos os postos de abastecimentos estavam pilhados e os que tiveram as máquinas poupados, o combustível que tinham acabou em minutos, deixando dezenas de viaturas completamente paradas, com os donos a vaguear de ponto em ponto, bairro em bairro, com filas intermináveis até que conseguissem alguma coisa.
Na Matola Gare e vários bairros periféricos, não era possível comprar alimentos. Tudo estava destruído. As poucas lojas e supermercados abertos, encontravam-se no centro da cidade, onde nós do bairro só podíamos chegar, a pé. Grupos de mulheres juntavam-se para fazer mais de 30km em busca de arroz, óleo, ovos, trigo, cebolas ou batatas. Uma compra que se parecia com uma grande conquista quando concretizada, uma vez que quase ninguém conseguia sem passar pelo menos uma hora de fila e sempre com limites nas quantidades.
O mercado clandestino logo se estabeleceu, com anúncios de vendas de arroz, botijas de gás doméstico, e outros produtos, a preços duplicados e triplicados. A procura foi desenfreada que chegou-se a níveis de se fazer leilões nas redes sociais, quem tem mais dinheiro, fica com os produtos. No bairro, redes de vendas que vão de boca em boca, em sussurros fazem circular os produtos roubados.
Ao fim da tarde, todos voltamos a convergir como loucos, com as dores de vários quilómetros percorridos a pé a consumirem o corpo. A desilusão tanto com o Governo como com o candidato Venâncio Mondlane dividia-nos. Teremos sido todos vítimas de uma sinistra teoria de conspiração ou o que eram manifestações pela verdade eleitoral levaram-nos a uma desordem que suga-nos a carne e alma. Problema mesmo é que qualquer que seja o ponto de vista, nenhum morador ousa colocá-lo em viva voz. A intolerância se mistura com outros medos, e leva-nos apenas a acenar com um até logo, às despedidas. Afinal, a maioria dos 1534 reclusos continua foragido e a noite será de patrulha.
Para poder adicionar esta notícia aos seus favoritos deverá efectuar login.
Caso não esteja registado no site da Sábado, efectue o seu registo gratuito.
O humor deve ser provocador, desafiar convenções e questionar poderes. É um pilar saudável da liberdade de expressão. Mas quando deixa de ser crítica legítima e se transforma num ataque reiterado e desproporcional, com efeitos concretos e duradouros na vida das pessoas, deixa de ser humor.
O poder não se mede em tanques ou mísseis: mede-se em espírito. A reflexão, com a assinatura do general Zaluzhny, tem uma conclusão tremenda: se a paz falhar, apenas aqueles que aprendem rápido sobreviverão. Nós, europeus aliados da Ucrânia, temos de nos apressar: só com um novo plano de mobilidade militar conseguiríamos responder em tempo eficaz a um cenário de uma confrontação direta com a Rússia.
Queria identificar estes textos por aquilo que, nos dias hoje, é uma mistura de radicalização à direita e muita, muita, muita ignorância que acha que tudo é "comunista"