Houve pedras no caminho de Kendrick Lamar e SZA na passagem da Grand National Tour, digressão que junta os artistas norte-americanos revelados pela editora Top Dawg, ao Estádio do Restelo, em Belém. A logística complexa deixou muita gente confusa à porta, e obrigou ao adiamento do início do concerto em meia hora (que mesmo assim não esperou pelos últimos retidos), e o forte vento que se fez sentir na noite de domingo causou sérios problemas de som, impedindo também o uso anunciado de pirotecnia no espetáculo, como confessaria a própria SZA.
O que poderia ser presságio de noite arruinada não passou, afinal, de um par de percalços num imperfeito, é certo, mas ainda assim sólido regresso de duas das maiores estrelas da música popular contemporânea - em particular para Lamar, o verdadeiro protagonista da noite, que ainda está no que se sente como uma longa volta da vitória depois do grande 2024 que teve, com um dos mais aclamados discos do ano, GNX, e o triunfo no confronto com Drake que cativou e dividiu o mundo do hip-hop.
A abertura, no entanto, ficaria a cargo de Mustard, DJ e produtor de temas de Lamar como Not Like Us e TV Off, que abriu a festa lembrando-nos porque é considerado um dos mais influentes músicos da Costa Oeste com um rol de êxitos seus - Rack City, de Tyga, ou IDFWU, de Big Sean -, mas também do mais alargado imaginário do rap atual: Bound 2 e Carnival, de Kanye West, ou a fogosa FEIN!, de Travis Scott, disparados em sucessão rápida e efusivamente recebida pelos fãs incondicionais de hip-hop que sempre compuseram a base de fãs de Kendrick.
O espetáculo principal seria uma espécie de versão ampliada e a três dimensões desta lógica. Kendrick entra sentado ao volante de um Grand National preto elevado do chão, e de lá de dentro começa a cantar Wacced Out Murals, o primeiro tema de GNX, sendo transmitido para o grande ecrã - que é essencial neste espetáculo, que tem muito de audiovisual e performativo. As canções são cortadas e coladas umas às outras, e tão depressa estamos a ouvir o refrão de Humble quanto entramos a pés juntos em Backseat Freestyle, e depois em Family Ties.
O resultado é evidente: temos direito a mais de 50 canções da dupla, mas poucas delas na íntegra, com destaque mais evidente para as canções de GNX, de Kendrick, Lana, a nova versão expandida do disco SOS, de SZA, e os singles do rapper direccionados a Drake. Os temas sucedem-se vertiginosamente e quase sempre com coreografia e cenário elaborados, e pequenos vídeos auxiliam a transição entre os artistas, que se revezam em turnos de cinco a dez músicas cada - um formato experimental de espetáculo sem muitos paralelos nos tempos que correm e que, por isso mesmo, poderia ter algumas arestas limadas.
Kendrick e SZA têm muito a ver um com o outro, e se há algo que esta experiência mostra é o quão bem funcionam juntos. Os versos virtuosos dele e o timbre sedutor dela combinam-se nos momentos mais ternos do espetáculo: a meio, quando interpretam Doves in the Wind, All the Stars e Love, e no fim, à medida que iam assinando autógrafos durante Luther e Gloria. Uma vez separados, no entanto, colocavam-se no caminho um do outro: a energia crua e explosiva dele pouco tinha a ver com a disposição dela, mais soturna e com nuances.
Lamar, é claro, tem um repertório demasiado forte para se expor ao fracasso, e a postura direta e reservada a que nos habituou chegou para entusiasmar um público cuja energia parecia renovar-se a cada êxito que ia sendo desfilado. A ênfase nos temas de GNX poderá ter deixado algo a desejar no que a outros discos diz respeito (temas fulcrais do percurso do rapper, como DNA, Bitch Don't Kill My Vibe ou Alright foram deixados a meio ou tiveram meras e breves alusões), mas nenhum fã de Kendrick terá saído do Restelo com a sensação de dinheiro mal gasto - especialmente depois do momento nuclear que foi Not Like Us, o seu maior single do ano passado.
SZA, por sua vez - uma artista de percurso e sucesso invejáveis, com apenas dois discos de originais lançados -, dificilmente conseguiria estar à altura. Operando no universo do hip-hop, o seu R&B é de uma natureza fundamentalmente diferente, que não resistiu a saber a intervalo de descanso (para muitos, de casa de banho também) entre as secções mais musculadas de Lamar. Despediu-se numa boa nota, com alguns dos seus temas mais populares (Kill Bill, Kiss Me More), mas o público, que na sua esmagadora maioria viera por Kendrick, não era o seu.
Já vimos ambos em melhor forma (em anos diferentes, os dois pisaram o palco principal do Primavera Sound do Porto com mais firmeza), e quem pagou o preço manifestamente robusto do bilhete poderia contar com melhores condições sonoras - a verdadeira tragédia da noite, se a houve. Mas se dúvidas restassem do sucesso de Kendrick e SZA, dissiparam-se já muito perto do fim, com a adição de uma música extra ao alinhamento: "Esta m**** é que é boa", entoada em uníssono pelo público ao som de Seven Nation Army, e com direito a bis.