Psicóloga denuncia casos em que as escolas estão a passar canções sexuais nos seus eventos e alerta para o impacto que as mesmas podem ter na vida das crianças. Lançou uma petição para acabar com o fenómeno e já conta com mais de 10 mil assinaturas.
Músicas com conteúdo sexualizado estão a ser passadas em eventos escolares e a inundar as redes sociais. Este tipo de canções já passou no festival Panda e agora convida as crianças a subir aos palcos do artista brasileiro de funk Pedro Sampaio. A psicóloga da criança e do adolescente Beatriz Pereira vê com preocupação este tipo de comportamentos e lembra que as crianças de hoje acham tão "fixe" as danças sensuais como "fumar vapes". Agora, a especialista decidiu lançar uma petição para proibir este tipo de conteúdos em eventos direcionados a menores e conta já com mais de 10 mil assinaturas, tendo por isso já sido submetida à Assembleia da República para discussão.
Psicóloga Beatriz Pereira alerta para canções sexuais em eventos escolaresDR
Este tipo de músicas toca, por norma, por iniciativa das crianças?
Acho que é um ciclo vicioso. A criança tem de ter acesso a estas músicas em algum contexto: ou porque os pais permitem que assista a redes sociais sem monitorização, ou porque nas escolas existem educadores e auxiliares que usam estas músicas para entretenimento. Já assisti a situações de associações de pais a utilizarem estas músicas nos seus eventos, já assisti a escolas de dança para crianças a escolherem estas músicas para espetáculos. Depois claro, normalmente estas músicas são bastante atrativas, quer em termos de ritmo, quer em termos do estilo de vida associado, pelo que faz com que depois parta da criança querer ouvir este tipo de músicas. E como consequência, os adultos acedem a este desejo.
As crianças estão cada vez mais expostas a este tipo de conteúdos? Sem dúvida. Basta, por exemplo, abrir o TikTok e ver o que as crianças andam a dançar. Ou, se quisermos ir a um contexto que deveria ser para crianças, basta olharmos para o que aconteceu no festival Panda este ano: havia uma barraquinha a passar este tipo de músicas. Não me parece haver necessidade, uma vez que o Panda tem várias músicas de autoria própria bastante adequadas a crianças.A que se deve este fenómeno e o que leva as crianças a apreciarem este tipo de conteúdos? Basicamente o ritmo extremamente atrativo deste tipo de músicas e o estilo de vida associado. É tendência! Assim como é "fixe" fumar vapes, é "fixe" dançar este tipo de músicas e seguir as "trends" das redes sociais. E atenção, quando falo de música com conteúdo sexualizado, não me estou a referir apenas a funk brasileiro. Existem muitas músicas em língua inglesa e mesmo língua portuguesa de Portugal com conteúdo igualmente inadequado para crianças. Nota alguma preocupação por parte dos pais? Há de tudo. Pais muito preocupados porque não permitem que os filhos assistam a este conteúdo, mas depois os filhos são expostos noutros contextos e chegam a casa a cantar "toma sua cachorra". Pais que nunca pensaram sobre o assunto e não compreendem qual o problema dos filhos estarem expostos a este tipo de conteúdo. E temos também os pais que mesmo depois de serem alertados, continuam na defensiva e acham ótimo os filhos ouvirem e dançarem estas músicas. Tenho mais exemplos interessantes deste ponto: no concerto do Pedro Sampaio, várias crianças subiram ao palco para dançarem ao som de músicas totalmente inadequadas. Os pais sentiram orgulho, gravaram, e publicaram nas redes sociais. Estas crianças ficaram vulneravelmente expostas a todo o tipo de pessoas (bem intencionadas e mal intencionadas).Estes comportamentos também podem ser motivados por alguns pais?Sem dúvida alguma. Mas acredito que seja por não terem consciência do impacto e dos riscos que podem trazer para os filhos. Duvido que algum pai ou mãe o faça com o intuito de prejudicar a criança. Por isso acho tão importante que este tema seja cada vez mais debatido.Foi para lançar o debate que criou uma petição pela proteção das crianças à exposição de músicas com conteúdos hipersexualizados, por exemplo, em contextos escolares?Na verdade, a criação da petição foi um ato meio impulsivo da minha parte, resultado de um acumular de situações que já me andavam a incomodar há algum tempo. Começou com alguns relatos de pais preocupados em consulta, que sentiam que por muito que não permitissem certos conteúdos em casa, não tinham muito controlo sobre o que acontecia na escola. Depois comecei a ver pais a utilizarem os filhos em vídeos do TikTok completamente sexualizados e inadequados para a idade. E a gota de água foi o dia da criança. Vi vários stories de escolas de dança a realizarem espetáculos com crianças de cerca de 7 anos com músicas, roupas e movimentos sexualizados, e depois deparei-me com o testemunho de uma mãe que foi a uma festa do município, especificamente direcionada ao dia da criança, em que o DJ passava este tipo de música. A mãe pediu para trocar o tipo de música, e o DJ recusou-se, dizendo que já fazia festas para crianças há muito tempo e que sabia bem do que elas gostavam.
É escolha de cada pai decidir o que permite a criança ver e ouvir em casa, mas não acho correto que as crianças sejam expostas por imposição a este tipo de conteúdo em espaços e eventos que sejam direcionadas à sua faixa etária. Como não sabia bem de que forma poderia mudar esta realidade, decidi criar a petição.
Tem conhecimento de alguma figura pública que já tenha assinado esta petição?Sei que já foi assinada e partilhada pelas atrizes Melânia Gomes e Sofia Arruda. E espero, honestamente, que chegue a mais pessoas com visibilidade para promover a consciencialização dos seus seguidores.Entretanto já tem mais 10 mil assinaturas, o que significa que pode ser debatida em plenário da Assembleia da República. Este debate já ocorreu?
Nunca criei uma petição pública anteriormente, então todos os passos dados estão a ser dados com o conhecimento que vou adquirindo ao longo do processo. Estivemos até agora na fase de divulgação da petição e recolha de assinaturas, sendo que submeti a petição à Assembleia da República no dia 8 de outubro e já foi aceite.
Apesar de agora estar basicamente nas mãos dos nossos representantes parlamentares, continuo a recolher assinaturas, testemunhos, pareceres... para reforçar a importância deste tema. E claro, estou disponível para ações de sensibilização para aumentar a consciência acerca do impacto destas músicas no desenvolvimento infantil, porque acredito mesmo que ninguém exponha as crianças (pais, professores...) com má intenção. Muitas vezes simplesmente nunca pensaram no assunto.
Que impacto é que este tipo de músicas pode ter na criança e no seu futuro? Podem moldar comportamentos?Quando expomos uma criança a músicas com conteúdo sexualizado, podemos estar a contribuir para que ela salte etapas do seu desenvolvimento. Por exemplo, a criança pode ter um interesse prematuro pela exploração da sexualidade quando ainda não tem maturidade cognitiva e emocional para compreender estas questões. Como consequência, pode perder o interesse por atividades e “coisas” típicas da sua idade, como a substituição da brincadeira por dancinhas sensuais, ou a substituição do interesse em roupas com desenhos animados estampados por roupas que exponham o corpo. A criança pode também desenvolver uma imagem corporal distorcida pelos padrões de imagem que são promovidos neste tipo de músicas, o que vai afetar a autoestima da criança e, futuramente, do adolescente e adulto. Pode, também, normalizar comportamentos mencionados nestas músicas e até replicar em contextos que não são adequados, como na escola. Como consequência, pode afetar as relações interpessoais que esta criança vai ter no futuro, por exemplo, na forma como vê o conceito de namoro. Não nos podemos esquecer que a maioria destas músicas objetificam completamente a mulher e promovem a promiscuidade.Quando é que este comportamento é considerado preocupante? A partir do momento que expõem a criança a comportamentos e situações de risco e afetam o desenvolvimento da sua identidade. Por exemplo, quando uma criança aparece com roupas inadequadas à idade a dançar movimentos sensuais num espetáculo de dança, nós não sabemos quem está a assistir a este espetáculo. O mesmo com as dancinhas nas redes sociais. Outro exemplo é uma adolescente manifestar problemas de autoestima por comparação aos padrões de beleza irrealistas expostos nos vídeos associados a estas músicas, ou um adolescente achar que é normal tratar uma mulher por "cachorra" ou "bitch".A partir de que idades há crianças expostas a estas músicas e partir de quando deixa de ser problemático?Acho que a idade das crianças que atualmente ouvem estas músicas é variável. Diria que algumas ouvem desde o nascimento, até porque a maioria dos pais acha que essas crianças ainda não entendem as letras. Eu própria já fui essa mãe. No entanto, rapidamente se vê uma criança de 1 ano a começar a "abanar a bunda", e não podemos normalizar este tipo de comportamentos que são facilmente escaláveis.
Quanto à idade "normal" para as pessoas serem expostas a este tipo de conteúdo, diria que mais do que um número específico, devemos ter em consideração a maturidade emocional e cognitiva da pessoa em questão. A partir do momento que a pessoa sabe discernir o que implica o conteúdo da música, e aquilo que acredita e quer para si, diria que não tem problema ouvir este tipo de música. O problema não está na música, mas no impacto que a música tem quando não temos maturidade para decidir por nós mesmos. Por isso é tão importante haver comunicação aberta em casa. Os pais explicarem, por exemplo, os riscos da exposição corporal, falarem sobre o respeito dentro das relações, entre outras temáticas importantes.
Que medidas sugere para mitigar/combater este tipo de comportamentos? E o que espera por parte do Ministério da Educação e do Ministério da Cultura?Sugiro a definição de critérios claros sobre o que constitui conteúdo inadequado para crianças, a fiscalização e sensibilização junto de instituições, organizadores de eventos e educadores, e a promoção de alternativas culturais e artísticas que respeitem os direitos das crianças e configurem conteúdo educativo. Espero essencialmente que estejam abertos a debate e à implementação de medidas concretas para regulamentar o uso de músicas com conteúdo sexualizado em contextos e eventos direcionados a crianças.
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