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30% dos adolescentes portugueses autolesionam-se

Susana Lúcio
Susana Lúcio 22 de julho de 2025 às 18:00
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Estudo realizado em turmas do 7º ao 11º ano identificou uma epidemia silenciosa de jovens que se magoam para mascarar sofrimento emocional. “É quase como se a dor física fosse mais suportável do que a dor mental”, diz a autora do estudo, a psicóloga Maria de Jesus Candeias

Há cada vez mais adolescentes e jovens a sofrer em silêncio e a recorrer à autolesão, como cortes na pele, para lidar com estados emocionais negativos. Foi o que concluiu o estudo nacional realizado pela psicóloga Maria de Jesus Candeias, investigadora no AppsyCi - Research Center| ISPA-Instituto Universitário. 

Cerca de 900 alunos do 7º ao 11º ano realizaram questionários sobre comportamentos autolesivos, ideação suicida e o historial de tentativas de suícidio. "Fizemos questão de aplicar tudo em sala de aula, pela própria equipa de investigação, para garantir total confidencialidade — os questionários eram anónimos e não passavam por professores ou adultos que conhecessem pessoalmente os jovens", explica à SÁBADO, a psicóloga.

Apesar de ter sido aprovado por comissões de ética, pelo Ministério da Educação e pela Comissão Nacional de Proteção de Dados, houve escolas que colocaram obstáculos e professores que se recusaram a participar. "Isto mostra bem o tabu que ainda persiste em torno dos comportamentos suicidários na adolescência", diz Maria de Jesus Candeias. 

"Infelizmente, continua muito enraizada a falsa ideia de que ‘falar sobre comportamentos suicidários dá ideias ou incentiva a imitar’. Nada poderia estar mais longe da verdade. A investigação internacional é muito clara: é o silêncio que perpetua o risco", acrescenta a psicóloga. "Precisamos de trazer este tema para o espaço público, aumentar o conhecimento e falar dele sem medo — só assim conseguiremos identificar sinais precoces e intervir a tempo", salienta. 

Duarte Roriz

30% dos jovens inquiridos já se autolesionaram. O valor surpreendeu-a?

Surpreendeu-me, sobretudo tratando-se de uma amostra comunitária — jovens que, em teoria, estão integrados no seu quotidiano escolar e familiar. Mas, confirma o que estudos internacionais já têm vindo a demonstrar: estamos perante uma verdadeira epidemia silenciosa, que tem passado despercebida. A autolesão é um sintoma psicopatológico sério, mas continua frequentemente rotulado e confundido como simples "chamadas de atenção", o que desvaloriza de forma cruel a gravidade do que está em causa. O que mais me choca é continuarmos, como sociedade, a desviar o olhar. Estes dados são um verdadeiro grito de alerta: estes jovens estão em sofrimento profundo, e magoarem-se a si próprios torna-se, por vezes, a única forma que encontram para suportar dores emocionais que não tiveram onde ser escutadas ou acolhidas. É quase como se a dor física fosse mais suportável do que a dor mental — um modo de descarregar no corpo tudo aquilo que a mente já não consegue aguentar.

O que se considera auto-lesão?

Os comportamentos autolesivos são actos deliberados de causar dano a si próprio, como cortar-se, queimar-se, bater-se, ingerir substâncias ou medicamentos, ou expor-se intencionalmente a situações de risco — podendo ocorrer com ou sem intenção suicida. Muitas vezes, são uma forma de aliviar uma dor emocional demasiado intensa ou de tentar regular sentimentos que o jovem não consegue nomear nem conter. É como se o sofrimento, não encontrando palavras, acabasse por se manifestar no corpo.

Tem aumentado os casos em consultório?

Sem dúvida, recebo cada vez mais adolescentes com comportamentos autolesivos, ideação suicida severa e, em muitos casos, já com um historial de tentativas de suicídio. O mais angustiante é perceber que chegam muitas vezes tarde demais para uma intervenção verdadeiramente preventiva — depois de um longo percurso de sofrimento silencioso, sem terem encontrado antes uma rede de apoio na escola, na família ou no próprio SNS.

Quais as razões que levam os adolescentes à autolesão?

Os comportamentos autolesivos têm uma origem multifactorial, resultado da combinação de fatores individuais, familiares e sociais que, em conjunto, criam o terreno para o seu aparecimento. No estudo, procurámos analisar o papel do funcionamento familiar, e dos factores psicológicos, como a ideação suicida, sintomas de perturbação borderline e impulsividade, enquanto principais riscos associados aos comportamentos suicidários.

Qual é o impacto da família?

Os resultados mostraram de forma muito clara o impacto do funcionamento familiar no adoecer psíquico destes jovens, sobretudo em duas dimensões fundamentais: a baixa coesão e a elevada rigidez. Famílias com poucos laços afectivos, pouca partilha emocional e onde falta o sentido de pertença associam-se a um risco acrescido. Já a rigidez — quando as regras e papéis são inflexíveis e o jovem não tem espaço para errar ou explorar quem é — aumenta a sensação de prisão e incompreensão numa fase crucial para conquistar autonomia e construir identidade.Estes ambientes familiares acabam por fragilizar profundamente a capacidade do adolescente para lidar com o sofrimento e, sobretudo, para procurar ajuda junto daqueles que deveriam ser o seu principal suporte. Um funcionamento familiar desequilibrado não tem apenas um efeito directo no surgimento da autolesão: vai, de forma prolongada e silenciosa, contribuindo para um verdadeiro adoecer psíquico, fomentando o desenvolvimento de quadros como a sintomatologia borderline, que por sua vez potencia a ideação suicida — elevando ainda mais o risco destes comportamentos. É um ciclo que se auto-alimenta, onde cada peça agrava a outra.A tudo isto somam-se fatores sociais, como pressões académicas, desilusões amorosas, conflitos no grupo de pares, exclusão ou bullying, que actuam como catalisadores adicionais deste sofrimento.

No estudo refere o vazio emocional sentido pelos adolescentes. O que origina este vazio emocional?

Muitas vezes tem origem num desenvolvimento emocional marcado por relações frágeis, onde faltou segurança afectiva, validação e reconhecimento. Este primeiro olhar, que dá ao jovem o sentido de existir e ser importante, vem antes de mais dos cuidadores primários, dos pais. E é importante sublinhar que isto não significa que os pais não amem os seus filhos — mas, por diferentes razões, esse olhar, essa mensagem de amor, não chegou de forma a ser percebida pelo jovem. São adolescentes que cresceram sem se sentirem vistos ou compreendidos, e que internalizam uma sensação profunda de não serem suficientemente importantes ou dignos de amor. Este vazio não é apenas tristeza — é um sentir-se despido por dentro, desconectado de si e dos outros, como se nada preenchesse verdadeiramente. Além disso, importa lembrar que a adolescência é, por si só, uma fase de enorme turbulência e sensibilidade emocional, marcada por transformações físicas, hormonais e psíquicas muito intensas. Isso torna este período especialmente vulnerável para que estas questões venham ao de cima, amplificando sentimentos de vazio e de desamparo. É nesse contexto que a autolesão surge muitas vezes como uma tentativa de "sentir algo" ou dar corpo a uma dor que é difícil de nomear. É por isso fundamental que as famílias estejam atentas a estas dinâmicas e invistam numa comunicação mais aberta e autêntica. Vivemos numa sociedade onde, pelas próprias exigências que lhes são impostas, muitas famílias acabam por se tornar desconectadas — pais que pouco sabem verdadeiramente dos filhos, e filhos que pouco sabem dos pais — o que aprofunda ainda mais este sentimento de solidão.

A que sinais devem estar atentos os pais?

Devem estar atentos a alterações repentinas de humor ou de comportamento, isolamento, quebra súbita do rendimento escolar, mudanças nos padrões de sono ou alimentação, ou à perda de interesse por atividades que antes eram importantes para o jovem. Também é fundamental reparar em sinais mais físicos, como o uso constante de roupas largas ou mangas compridas, mesmo em dias quentes, para esconder marcas ou feridas. Frases que revelem desesperança, auto-desvalorização ou a ideia de que "não vale a pena continuar" não devem nunca ser ignoradas. Muitas vezes, o sofrimento manifesta-se de forma disfarçada — através de irritabilidade, pequenos "acidentes" frequentes ou um progressivo afastamento do grupo de amigos e da família. O mais importante é não minimizar nem desvalorizar — mas criar espaço para que o jovem possa falar, sentir-se escutado e apoiado. E, quando identificado um risco, encaminhá-lo de imediato para ajuda especializada em psicologia ou psicoterapia

A autolesão é escondida pelos adolescentes?

Quase sempre, e este é um factor particularmente preocupante. Como vimos no nosso estudo, apenas 13% dos jovens que se autolesionavam tinham pedido algum tipo de ajuda a amigos, pais ou professores. Isto significa que a grande maioria destes casos não é sinalizada e continua invisível na comunidade — são jovens que estão sozinhos na sua dor, sem qualquer acompanhamento. Muitos sentem vergonha, medo de serem julgados ou incompreendidos e acabam por esconder as marcas, usar roupas largas ou inventar explicações para as feridas. É muito comum que, nestas situações, as famílias sejam quase sempre as últimas a perceber o que se passa. Quando finalmente chegam à clínica, já são muitas vezes casos muito graves, onde o sofrimento se arrastou demasiado tempo sem qualquer intervenção. 

Como é que os pais reagem?

Na maioria das vezes, com choque e muita angústia. Muitos pais sentem-se perdidos, questionam onde falharam e acabam a lutar também com sentimentos de culpa. Alguns tentam negar ou minimizar o problema, talvez como forma de se protegerem de uma dor demasiado difícil de encarar. Outros reagem com irritação ou críticas, numa tentativa desajeitada de controlar algo que os assusta profundamente. Como ficou claro no nosso trabalho, a forma como a família reage tem um peso significativo na evolução do problema: pode contribuir para a sua resolução ou, pelo contrário, agravar ainda mais o sofrimento do jovem. É por isso que o trabalho clínico com comportamentos suicidários na adolescência não pode focar-se apenas no jovem. É fundamental envolver a família, porque não é só o adolescente que está em sofrimento — muitas vezes é todo o sistema familiar que precisa de ser olhado, compreendido e tratado.

As escolas desvalorizam?

Infelizmente, ainda é frequente. Muitas escolas têm receio de abordar o tema, temendo "dar ideias" ou não saber como agir caso surjam situações concretas. Persistem muitos mitos e falsas crenças em torno dos comportamentos suicidários, o que contribui para que estas questões continuem a ser um tabu. A investigação mostra de forma consistente que falar sobre autolesão ou comportamentos suicidários não incentiva à sua prática; antes cria oportunidades para identificar jovens em risco e intervir mais cedo. É também importante reconhecer a vulnerabilidade em que se encontra atualmente o sistema educativo. Professores e assistentes operacionais estão sobrecarregados, sem tempo nem recursos para acompanhar devidamente cada aluno, o que faz com que sinais de alerta passem despercebidos ou sejam desvalorizados.

O que devem fazer as escolas se identificarem um aluno a autolesionar-se?

A primeira atitude deve ser acolher o jovem, escutá-lo sem julgamentos e sem dramatismos, mostrando-lhe que não está sozinho e que há adultos disponíveis para o ajudar. É fundamental que professores, psicólogos escolares e até auxiliares educativos saibam reconhecer estes sinais e compreendam que se trata de um pedido de ajuda — ainda que muitas vezes disfarçado — e não de uma simples "chamada de atenção". A escola deve depois sinalizar de imediato o caso e articular com a família e com os serviços de saúde mental, garantindo que o jovem tem acesso a acompanhamento especializado. É também fundamental proteger a privacidade do aluno, evitando exposições desnecessárias ou comentários que o façam sentir-se ainda mais estigmatizado. Além disso, é importante que as escolas invistam na formação contínua dos seus profissionais, para que se sintam preparados para lidar com estas situações, saibam encaminhar e possam criar uma cultura de saúde mental aberta e desmistificada. Só assim será possível quebrar o silêncio que tantas vezes rodeia o sofrimento psíquico, permitindo identificar e ajudar estes jovens antes que o problema se agrave.

De que forma pode levar ao suicídio?

É importante sublinhar que a autolesão não surge necessariamente ligada a um desejo de morrer — muitas vezes é, na verdade, uma tentativa desesperada de sobreviver a uma dor emocional que o jovem sente como insuportável. No entanto, o recurso repetido à autolesão para lidar com o sofrimento vai diminuindo barreiras internas importantes, tornando o caminho para actos suicidários mais curto e menos intimidante. O nosso estudo confirma aquilo que a ciência há muito demonstra: os comportamentos autolesivos inserem-se num continuum dos comportamentos suicidários, funcionando muitas vezes como uma porta de entrada para um caminho perigoso que, sem intervenção, pode evoluir para tentativas graves ou até para mortes consumadas. Quanto mais frequentes e severos forem estes comportamentos, maior é o risco de o jovem passar do pensamento ao planeamento ou à tentativa de suicídio. São sinais de alarme que exigem uma intervenção precoce, sensível e especializada. Além disso, como ficou claro na minha investigação, a autolesão está frequentemente associada a outros factores de risco significativos, como a sintomatologia borderline, a ideação suicida e a impulsividade. Estes elementos interligam-se num ciclo que vai aumentando a vulnerabilidade emocional e o risco de o jovem passar de comportamentos autolesivos para tentativas suicidárias reais. Por isso é tão crucial que estes sinais não sejam desvalorizados e que exista acompanhamento especializado, capaz de ajudar o jovem a encontrar outras formas — mais saudáveis e seguras — de lidar com a dor psíquica.

Que tipo de intervenção deve ser realizada?

A intervenção deve assentar em dois eixos fundamentais: o da prevenção, que impede que o problema cresça no silêncio, e o do tratamento especializado de jovens já sinalizados, garantindo que recebam o apoio que tanto necessitam. Na prevenção, é fundamental apostar em programas universais nas escolas, como o Programa Mentes Saudáveis, que criámos para abordar diretamente os comportamentos suicidários, aumentar a literacia emocional, reduzir o estigma e abrir espaços seguros onde se possa falar do sofrimento e pedir ajuda. Este programa envolveu alunos, professores, auxiliares e pais, e ao sensibilizar toda a comunidade escolar permitiu identificar precocemente situações que, de outra forma, ficariam escondidas — quebrando o silêncio que tantas vezes rodeia estes temas.

Quais foram os resultados?

Houve um aumento significativo de jovens a procurar ajuda diretamente junto da nossa equipa. O problema seguinte foi garantir respostas capazes de os acompanhar de forma eficaz — algo que, infelizmente, não aconteceu. No tratamento, continua a faltar uma rede de respostas clínicas especializadas no nosso Serviço Nacional de Saúde. A saúde mental permanece o parente pobre do sistema, com soluções demasiado centradas na medicação, sem o suporte psicoterapêutico que estes casos exigem. Controla-se a sintomatologia, mas não se ajuda o jovem a reconectar-se com a vida, com o prazer de viver e com projectos que lhe devolvam sentido. O acompanhamento destes casos exige intervenções prolongadas, sensíveis, focadas na relação terapêutica e que incluam o trabalho com a família. Para colmatar esta falha, estamos a desenvolver um projecto piloto, que queremos que se torne uma referência para a saúde mental dos adolescentes e jovens adultos em Portugal. A Casa Relacional será um centro clínico inovador, acessível a todas as famílias, especializado no tratamento de comportamentos suicidários e de psicopatologia mental severa em jovens dos 13 aos 25 anos. Inspirado em modelos do Reino Unido e dos Países Baixos, irá oferecer desde acompanhamento em ambulatório até internamentos nos casos mais agudos, num ambiente protegido, relacional e clinicamente especializado, onde também as famílias possam reorganizar-se e receber apoio. Esta comunidade terapêutica residencial intensiva e humanizada integra psicoterapia individual e de grupo, ecoterapia e regulação somática pelo contacto com a natureza, terapias expressivas pela arte e uma intervenção familiar contínua e estruturada. Queremos que se torne um modelo de referência em Portugal, oferecendo finalmente uma resposta especializada, estruturada e profundamente humana a quem mais precisa. Para concretizar este sonho, precisamos de quem nos ajude a sustentá-lo — parceiros, mecenas, entidades ou pessoas que reconheçam a urgência de dar voz e cuidado a estes jovens. Cada contributo é um passo para tirar do silêncio quem sofre e abrir caminho a vidas que merecem ser reescritas com esperança, sentido e ligação.

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