A empatia, que sempre foi a cola da civilização, está em erosão. E quando a empatia começa a morrer, a violência torna-se banal.
Nas últimas semanas, Portugal confrontou-se com episódios que, à primeira vista, parecem desconexos: o homicídio brutal de uma vereadora em Vagos, alegadamente cometido pelo próprio filho de 14 anos e o pacto de morte entre adolescentes em Castro D’Aire. Acresce ainda o aumento preocupante da violência nas escolas, com agressões a professores, destruição de património e episódios de bullying. Mas estes factos, quando vistos em conjunto, são sintomas de um mesmo mal profundo: a deterioração silenciosa da saúde mental dos jovens, amplificada por um novo ecossistema digital.
O que antes era pontual tornou-se estrutural. O sofrimento psíquico dos jovens, outrora confinado à intimidade das famílias ou à consulta do psicólogo escolar, emerge agora como uma ameaça social. Não é apenas uma questão clínica, é um fenómeno coletivo que afeta a coesão das comunidades, a segurança pública e a própria ideia de humanidade partilhada. A geração que hoje tem entre 10 e 20 anos é a primeira a crescer inteiramente online, ou melhor, dependente das redes sociais e da mediação digital da realidade. As plataformas onde passam mais tempo não são neutras: algoritmos invisíveis moldam emoções, amplificam ansiedades, recompensam o exibicionismo e punem o silêncio. A aprovação instantânea substitui o vínculo afetivo e a empatia.
O caso de Vagos choca pela sua natureza impensável, o homicídio cometido por um menor, obriga-nos a perguntar: como chega um adolescente a este grau de desumanização? É evidente que cada caso tem a sua singularidade e que a doença mental não se explica por uma causa única.
Mas o contexto social em que os jovens crescem tornou-se propício à alienação. As famílias, muitas vezes desestruturadas e absorvidas por rotinas extenuantes, oferecem cada vez menos tempo de presença real. As escolas, sobrecarregadas com burocracia e metas curriculares, têm dificuldade em detetar sinais de alarme precoces.
E o Estado, ainda que multiplicando planos e comissões, continua a falhar na execução de políticas preventivas de saúde mental com meios adequados e cobertura territorial.
Na sombra desta falência sistémica floresce um submundo digital, a dark web, os fóruns anónimos, os grupos de desafio nas redes, onde adolescentes fragilizados encontram eco para o seu desespero. Ali, a dor é estetizada, a autodestruição é romantizada e a morte é apresentada como libertação. O pacto de suicídio em Castro D’Aire, envolvendo jovens que trocavam mensagens codificadas e imagens perturbadoras, é um alerta devastador: a fronteira entre o sofrimento psicológico e o contágio digital é cada vez mais ténue.
O mesmo ambiente que desinibe a confissão íntima também desumaniza o outro. Nas redes sociais, a empatia, esse músculo moral que se fortalece na convivência e na escuta, atrofia. O olhar deixa de ser olhar; é substituído pelo ecrã.
O sofrimento do outro é um “story” de 15 segundos, um emoji, uma reação passageira. E se o sofrimento é efémero, a compaixão também o é. Não é por acaso que a violência juvenil cresce em paralelo com a hiperconectividade. A exposição constante a conteúdos agressivos, o reforço de comportamentos narcisistas e a ausência de mediação adulta criam um caldo perigoso.
A escola, que deveria ser o espaço de aprendizagem emocional e social, converte-se em campo de batalha simbólico , o palco onde se afirmam identidades frágeis pela via da força. Professores são alvos, colegas tornam-se inimigos, e a autoridade dissolve-se na indiferença. As estatísticas de criminalidade juvenil mostram um aumento de agressões, furtos e vandalismo praticados por menores. Mas o dado mais inquietante é a natureza aparentemente gratuita dessa violência. Já não se trata de delinquência tradicional com motivação económica; trata-se de raiva sem causa, de uma revolta difusa contra o vazio. É o sintoma de uma geração que sente tudo e nada ao mesmo tempo, que vive na intensidade das emoções instantâneas, mas sem um projeto de sentido que as organize.
Perante esta ameaça silenciosa, a resposta não pode ser apenas policial ou disciplinar. É antes de tudo educativa, comunitária e afetiva. A saúde mental tem de ser tratada como prioridade pública e não como luxo hospitalar. Cada escola deveria ter psicólogos em número suficiente e planos de prevenção integrados; cada município deveria desenvolver redes de apoio juvenil; e cada família deveria ser apoiada na reconstrução dos laços de comunicação.
Mas também é urgente repensar o papel das próprias plataformas digitais. O poder de moldar emoções humanas não pode continuar entregue a algoritmos que visam apenas maximizar cliques, afinal está em jogo a saúde mental de gerações inteiras.
A tragédia de Vagos e o pacto de Castro D’Aire não são aberrações isoladas. São sinais de uma sociedade que perdeu o fio do afeto no labirinto da tecnologia. A ameaça não vem das máquinas, mas da forma como abdicámos da mediação humana entre elas e nós.
A empatia, que sempre foi a cola da civilização, está em erosão. E quando a empatia começa a morrer, a violência torna-se banal. O verdadeiro desafio do nosso tempo é devolver humanidade à geração que mais se afastou dela.
Não por nostalgia do passado, mas por sobrevivência do futuro.
Filhos assassinos: o lado oculto da geração online
“S” sentiu que aquele era o instante de glória que esperava. Subiu a uma carruagem, ergueu os braços em triunfo e, no segundo seguinte, o choque elétrico atravessou-lhe o corpo. Os camaradas de protesto, os mesmos que minutos antes gritavam palavras de ordem sobre solidariedade e justiça, recuaram. Uns fugiram, outros filmaram.
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