Sábado – Pense por si

Pedro Chagas Freitas: “Pensei que ia perder o meu filho. Merda”

11 de setembro de 2024 às 23:00
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Pedro Chagas Freitas escreve em exclusivo para a SÁBADO um texto em que partilha – de forma emotiva – como foi ter o filho internado durante três meses. “Cancelámos a vida”, conta. Nas redes sociais publicou desabafos, dúvidas e as perguntas de Benjamin. Os posts tornaram-se virais, com milhares de comentários solidários.

Pensei que ia perder o meu filho. Merda. Nunca o tinha escrito, nunca o tinha verbalizado antes. Dava o que sou, o que tenho, para nunca ter pensado isto, para nunca ter sentido isto. Pensei que ia perder o meu filho. Não foi muitas vezes, tentei afastar essa ideia. Houve alturas em que não consegui. Tinha perdido o meu pai no hospital há três meses. O barulho das máquinas, os rostos, as batas, traziam-me tudo isso de novo. A memória é uma besta nestas alturas, leva-nos para onde nunca devíamos ter estado. Fiquei prisioneiro da escuridão, na véspera da lâmpada, de um pequeno ponto de luz que me desse um caminho. Não sabemos o que somos quando pensamos, quando sentimos, nem que por instantes, que vamos perder o nosso filho, que podemos perder o nosso filho.

Naquela manhã de terror, quando as médicas me chamaram ao gabinete (o olhar delas, as palavras pesadas delas, os gestos lentos, fechados, ansiosos, delas) e me disseram que o meu filho estava numa situação urgente, que necessitava de um transplante de emergência (os silêncios longos delas entre as palavras, o pânico delas de uma palavra mal dita, de uma esperança que não queriam entregar, que não queriam correr o risco de entregar; poucas coisas assustam mais do que uma ilusão desfeita, e eu desfeito, cada palavra a desfazer-me, a sensação de que se me mexesse me estilhaçaria no chão), vi coisas tão feias na minha cabeça.

O que vemos quando podemos perder o que nos faz ver, o que nos faz ser? Não chorei logo. Não caí logo. Fiquei parado, a ver-me parado. Via-me como se estivesse de fora, uma personagem, e eu com pena dela, com pena de mim. A viagem, do gabinete até ao quarto onde o meu filho esperava sem saber que me tinham dito que o mundo poderia acabar, que eu inteiro poderia acabar, que a vontade de sorrir, de continuar, poderia acabar, foi a viagem mais profunda, mais radicalmente (e definitivamente: não se regressa de uma viagem assim) transformadora, da minha vida. Nela, em 30 segundos, passei de um absoluto desgraçado para um otimista inveterado. Estava em ruínas por dentro, teria de rir por fora. O meu menino precisava da minha alegria, precisava de acreditar na minha alegria, precisava de acreditar que a alegria não acabaria ali, dentro de um hospital. A alegria vem do amor, precisa de amor. O amor pode muito bem ser do tamanho da dor que consegue esconder para não levar dor a quem amamos.

O túnel da angústia

Sérgio Lemos

Quando voltei ao quarto, tu na cama, com esse sorriso total, ingénuo, olhei-te com pena, meu filho, tenho de confessar, preciso de confessar, tenho vergonha de confessar. Pensei que não irias ser o que querias ser, que não irias viver o que querias viver, que não irias crescer, ser maior do que aquilo que eras. Pensei que não terias a mais banal (a mais especial, a única) das oportunidades: a de viver.

Desculpa, meu amor, desculpa a minha fraqueza. Desculpa ter vivido dentro do túnel espesso, baço, da angústia. Nesse dia, mesmo que não tenhas sentido (onde vamos buscar a força para rir e fazer rir quando estamos destruídos, mortos, acabados, por dentro? Será esse o superpoder dos pais, das mães? Mentir salva tantas vezes nestes casos; menti a felicidade, ficaste feliz, tivemos de ser felizes contigo quando não sabíamos se haveria futuro nessa felicidade), eu tive pena de ti, do que não irias viver, pensei em tudo o que já vivemos, pensei em ti, em poucos segundos (que fraco, eu sei, que fraco, que fraco), no passado, como se já não fosses. Eras. És. Sempre soubeste. Foste maior do que todos os adultos, ensinaste todas as lições que havia para ensinar. Partilhamos contigo o segredo absoluto. Não há intimidade maior do que essa. O amor é do tamanho dos segredos que partilhamos.

São os demónios que nos unem. Os medos, as aflições, as impossibilidades, a porcaria que não mostramos a ninguém. Nós mostrámos tudo, a três. Sei quem sou muito mais do que sabia. Cometi erros, falhei demais. Acreditei, nos momentos de dor maior, de desesperança maior, de que estaria em ti o castigo que seria para mim. Quis ser a melhor pessoa do mundo, ainda quero. Não serei capaz, tentarei ser a melhor pessoa para ti, para nós. Vou continuar a falhar, a meter água, a não ser capaz de te oferecer o que mereces (todos os filhos merecem os pais todos, as atenções todas, a vida toda para eles). Serei ainda assim infinitamente melhor do que era antes de ter percorrido o interior do medo maior. Saímos da dor todos doridos, claro, mas mais ainda apaixonados, fascinados, com a força que nos trouxe a fraqueza.

Nada na dor nos salva, nada na dor se recomenda. Chorei em todo o lado. Sei como se chora sozinho na casa que foi a nossa, sei como se chora em todas as viagens, grandes ou pequenas, que nos tiravam do hospital, sei como se chora no chão da casa de banho do hospital. Aprendi que as lágrimas não valem o seu peso em água, mas em liberdade.

Abdiquei, abdicámos, do mundo para estar contigo. Cancelámos tudo, cancelámos a vida. À volta nada existia (peço perdão a quem me ama e não sentiu o amor em mim, a minha presença: estava ocupado, colonizado pelo amor maior; não havia mais do que cansaço depois de dar tudo o que o meu filho precisava). Vivemos ali, 24 horas por dia, a vida dele. A olhá-lo, a querê-lo, a acarinhá-lo, a percebê-lo, a rir com ele, a sofrer com ele. Não consegui ler. Não consegui pensar. Não consegui planear. Consegui escrever, não sei ainda como. Sei que as palavras chegavam para me tirarem um pouco de mim. Escrevi entre o desespero e a fé, entre o abismo e as luzes ténues que aqui e ali acendiam. Escrevi no chão do corredor junto ao bloco de operações, escrevi no quarto enquanto ele dormia, escrevi nos Cuidados Intensivos, com enfermeiros a entrarem e a saírem de cinco em cinco minutos, com médicos preocupados ao lado, com palavras assustadas com um sorriso contrafeito por cima, escrevi quando as palavras me pediam uma saída, uma escapatória, e eu escapava com elas.

Talvez precisasse de escrever

A puta da dor escreve tão bem. Sempre o soube, fiquei com a certeza. De onde escrevi aquelas palavras nada mais sairá, talvez estas agora ainda venham de lá, talvez sejam estas as que restam, como se estivesse a limpar, agora, pá na mão, o fundo do poço, a lama que ficou por escoar. Talvez precisasse de escrever, de formalizar, para sentir diferente, para dar realidade ao que sentia – ou, pelo contrário, para tirar um pouco da realidade de mim. Quem não viveu uma situação assim pode nunca saber quem realmente é. A felicidade pode ser tão simples como veres a pessoa que mais amas sair dos Cuidados Intensivos.

Escrevo (silêncio, madrugada alta, apenas o barulho dos ponteiros na sua labuta circular) depois de adormecer o meu filho aqui em casa. Choro, feliz, ao reler o que acabei de escrever. “Aqui em casa” é a expressão mais bonita do mundo quando “aqui” inclui as pessoas que amamos. Fico então por aqui.

Carreira literária

O escritor é um dos mais vendidos em Portugal – mais de 1 milhão de livros. Editou o primeiro livro em 2005: Mata-me! Hoje as suas obras estão traduzidas em 10 línguas. Publicou crónicas em diversos jornais e foi Prometo Falhar – comemora 10 anos agora – que o tornou mais conhecido. Pedro Chagas Freitas dá cursos de escrita criativa.

Férias no Alentejo

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