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Abuso sexual de crianças: "É preciso ensinar-lhes que as pessoas de quem gostamos podem fazer coisas de que não gostamos"

A psicóloga Rute Agulhas e o assistente social Jorge Neo Costa, ambos do grupo VITA, escreveram um guia prático para pais e cuidadores sobre o tema. Saiba a que sinais deve estar alerta e como deve abordar o assunto com o seu filho, consoante a idade. Usar as notícias que se veem na televisão pode ser um bom ponto de partida.

O tema é incómodo mas está cada vez mais presente. Desconhece-se se o número de casos está efetivamente a aumentar ou se o engrossar das estatísticas também está ligado a uma maior consciencialização. De qualquer das formas, é uma realidade que não se pode ignorar e a aposta deve ser na prevenção. Foi com essa tónica que a psicóloga, Rute Agulhas, e o assistente social, Jorge Neo Costa - ambos membros do grupo VITA - escreveram um guia prático sobre violência sexual contra crianças, destinado a pais, cuidadores, professores e a todos os que contactam com crianças. 

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No livro Podes falar comigo, editado pela Manuscrito, e que foi lançado esta quarta-feira, 19 de fevereiro, os especialistas explicam a que sinais os pais devem estar alerta - é preciso que estejam atentos aos filhos e saibam qual é o seu comportamento normal -, como o assunto deve ser abordado consoante a idade e maturidade do seu filho e ensinam também que regras de segurança é que lhes deve ensinar, como o não "é não". Ainda que o tema seja tudo menos tranquilo, deve haver tranquilidade na forma com se explica às crianças e aproveitar as atividades ou rotinas do dia-a-dia para falar dele com regularidade.  

Os dados indicam que os crimes sexuais contra crianças têm vindo a aumentar. O que explica que isso esteja a acontecer?

Rute Agulhas (R) – De acordo com os dados conhecidos e que são anualmente publicados no Relatório Anual de Segurança Interna (RASI), observou-se um aumento significativo do crime de pornografia de menores, em 2020, que podemos relacionar com a pandemia e com o maior acesso das crianças e jovens ao mundo online – muitas vezes sem a devida supervisão. Estes números têm vindo a diminuir progressivamente desde 2021, sendo atualmente este um dos crimes que é reportado mais frequentemente, logo após o abuso sexual de crianças.

Não sabemos se os crimes sexuais contra crianças têm vindo a aumentar ou se os casos conhecidos são fruto de maior sensibilização e consciencialização por parte da sociedade em geral. É um tema que ainda é tabu mas que, de forma gradual, tem vindo a ser mais falado, o que facilita o processo de revelação por parte das vítimas. Ao mesmo tempo, os pais, cuidadores e diversos profissionais também estão mais atentos e conscientes da importância de sinalizar qualquer suspeita que tenham. 

A que sinais de alerta é que os pais devem estar atentos?

Jorge Neo Costa (J) - Os únicos sinais de alerta específicos de uma situação sexualmente abusiva são de natureza física (por exemplo, gravidez, infeção sexualmente transmissível, determinado tipo de lesões) – no entanto, são os menos frequentes. Todos os outros sinais e sintomas não são específicos, o que significa que podem relacionar-se com uma situação de violência sexual ou com qualquer outra vivência adversa. Assim, mais do que estarmos atentos a determinados sinais ou sintomas concretos, devemos estar alerta a qualquer alteração no funcionamento habitual da criança, seja ao nível emocional, comportamental ou social.

O que se observa com mais frequência?

J- Alterações emocionais e comportamentais, que são mais difíceis de interpretar na medida em que podem relacionar-se com diversas situações – e não só com uma situação de violência sexual. Por isso, os pais devem estar especialmente atentos a qualquer alteração significativa no funcionamento dos seus filhos e procurar compreender essas alterações à luz das características da criança e do seu contexto. Perante uma alteração de funcionamento mais relevante, os pais devem conversar com a criança, em privado e com calma, de modo a tentarem perceber se se passa alguma coisa, transmitindo a ideia de que podem confiar e pedir ajuda.

Mais do que estarmos atentos a determinados sinais ou sintomas concretos, devemos estar alerta a qualquer alteração no funcionamento habitual da criança.

Jorge Neo Costa, assistente social

Deve conversar-se com as crianças sobre este tema, em que ocasiões?

R – Os pais devem abordar este tema de uma forma tranquila e natural, com uma linguagem ajustada à idade e maturidade da criança, durante as atividades e rotinas do dia-a-dia. Por exemplo, o banho ou uma ida à praia podem ser aproveitados para falar sobre os nomes de todas as partes do corpo e sobre a importância de proteger as partes íntimas ou privadas. A caminho da escola ou de qualquer outra atividade, podemos abordar o plano de segurança familiar e a importância em recorrer a um adulto de confiança sempre que se sentir desconfortável ou em risco. Durante uma brincadeira ou enquanto se vê um filme, uma notícia ou uma série, pode ser abordado o tema das relações saudáveis e abusivas. 

A forma como se aborda o tema deve variar consoante a idade da criança?

J – Naturalmente, os conteúdos que são abordados devem ser ajustados à idade e maturidade da criança, utilizando sempre uma linguagem clara e acessível. De uma forma geral, os principais temas que devem ser abordados são as relações saudáveis, a comunicação assertiva, as emoções, o corpo e a privacidade, os segredos, as escolhas seguras, as estratégias da pessoa agressora, a Internet segura e pedir ajuda.

Com as crianças mais novas (em idade pré-escolar), devemos ensinar o nome correto de todas as partes do corpo e a importância em proteger as partes íntimas ou privadas. Também ensinar que existem segredos bons e segredos maus e que estes últimos nunca devem ser guardados. É também importante transmitir a mensagem de que podem recusar toques indesejados e que não têm de obedecer sempre aos adultos.

Com as crianças em idade escolar, que têm maior maturidade e autonomia, devemos abordar o tema dos ambientes seguros e inseguros e também a importância em escutar a sua intuição e emoções, que devem ser expressas perante um adulto de confiança. É ainda fundamental começar a abordar a segurança em diferentes contextos (por exemplo, dormidas fora de casa, atividades extracurriculares e mundo online), desconstruindo a ideia de que o perigo está apenas associado aos estranhos. 

Mais tarde, já com adolescentes, é fundamental falar também sobre relações saudáveis e abusivas e, ainda, sobre o conceito de consentimento – apenas "sim" significa "sim" e o silêncio e a falta de resistência não são iguais a consentimento informado.

Deve deixar-se os nossos filhos assistirem a notícias sobre o abuso sexual de crianças?

R – A exposição das crianças a determinado tipo de informação deve ser gerida pelos pais, e de acordo com a idade e maturidade. Naturalmente que deve existir uma explicação adequada que ajude as crianças a compreender o que se passa, sem gerar ansiedade nem alarmismos.

Da mesma forma que explicamos às crianças o que significam as guerras no mundo, a fome ou a pandemia, também o devemos fazer sobre a violência sexual. Estas notícias podem ser uma excelente ocasião para falar de cuidado e proteção, regras de segurança e de como e a quem pedir ajuda.

Qual é a diferença entre uma relação saudável e uma relação abusiva, e como o explicar aos nossos filhos?

J – Este é um dos temas que abordamos no nosso livro e que achamos muito importante que seja falado com as crianças, especialmente quando se aproximam da adolescência. As relações saudáveis são aquelas que nos fazem sentir bem, em que existe crescimento mútuo, companheirismo e liberdade para cada um agir de acordo com aquilo que pensam e sentem. Pelo contrário, numa relação abusiva existem discussões frequentes e desrespeito, estratégias de controlo (por exemplo, através dos amigos ou das redes sociais), isolamento e elevada dependência emocional.

A quem é que os ensinamos que devem pedir ajuda e como o podem fazer?

J – Desde cedo que devemos ensinar as crianças a identificar pelo menos cinco adultos de confiança. Porquê cinco? Porque se apenas pensarem só num e se esse adulto não acreditar e não assegurar a sua proteção, a situação de perigo mantém-se. Assim, as crianças devem ser ensinadas a pedir ajuda, se necessário, a diferentes pessoas, até que alguém acredite e assegure a devida ajuda. Os adultos de confiança devem ser pessoas significativas e presentes na vida da criança, e a quem possam recorrer com facilidade em caso de necessidade. Podem ser os pais, avós, tios, padrinhos ou professores. 

Há regras de segurança que devem ser ensinadas?

R – Existem várias regras de segurança que podem ser ensinadas, sobre o corpo, os segredos, o dizer "não", o mundo online e como pedir ajuda. As crianças devem aprender que o corpo é delas e que as partes íntimas são privadas, o que significa que não devem ser vistas ou tocadas por outras pessoas, exceto em contextos muito específicos (por exemplo, no médico). Devem ainda aprender que nunca é correto alguém usar o seu corpo ou os seus sentimentos para tentar obter controlo.

Outras regras de segurança importantes relacionam-se com a diferença entre segredos seguros e inseguros, sendo que estes últimos geram emoções mais desagradáveis e devem ser sempre revelados a um adulto de confiança. Com os mais velhos, e à medida que ganham maior autonomia e começam a navegar no mundo digital, é igualmente importante ensinar a utilizar a Internet de uma forma segura, explicando o conceito de aliciamento sexual. 

Se as situações de violência também acontecem dentro de casa, e mesmo com pessoas próximas, como lhes explicamos em quem podem confiar?

R – Efetivamente, a maior parte dos crimes sexuais contra crianças são cometidos por pessoas próximas e de confiança, e não por estranhos. Logo, não devemos alertar as crianças só para os perigos dos estranhos (que podem oferecer uma boleia, um presente ou iniciar uma conversa online), mas também para situações em que as pessoas de quem gostamos poderem fazer coisas de que não gostamos. E que, se isso acontecer, devem também pedir ajuda a um adulto de confiança. Ou seja, as regras de segurança aplicam-se em todos os contextos, com pessoas conhecidas e desconhecidas. 

Quando um adolescente se expõe sem ter noção das consequências (por exemplo se envia uma foto ou vídeo exposto) como é que os pais podem ajudar?

R – A partilha de conteúdos que são auto-gerados é cada vez mais frequente e pode acontecer em vários contextos, por exemplo, numa relação de namoro ou em troca de determinados privilégios (como dinheiro virtual num jogo). Não raras vezes, estes ficheiros acabam depois por ser utilizados como uma forma de exigir mais conteúdos, que podem ser partilhados no mundo online. Perante este tipo de situação, é natural que as crianças e jovens sintam medo, culpa e também muita vergonha, levando-as a manter o segredo.

Os pais podem ajudar, desde logo, numa lógica preventiva, alertando para este tipo de situação antes de ela ocorrer. Caso já tenha ocorrido, mais do que ralhar, castigar ou humilhar, os pais devem conversar com calma e escutar ativamente, sinalizando a situação às entidades competentes.

Qual é o perfil da criança mais vulnerável ao abuso?

J – Não se pode afirmar que existe um perfil de vítima, uma vez que crianças de todas as idades, de ambos os sexos e dos mais diversos contextos socioeconómicos podem ser vítimas de violência sexual. Mas também sabemos que existem fatores que podem aumentar o risco de vitimização, e que podem ser individuais (por exemplo, ter algum problema de saúde mental), familiares (por exemplo, viver num ambiente familiar disfuncional) ou comunitários (por exemplo, culpabilização da vítima, fraca rede de suporte social). Também existem fatores de risco mais globais, como a pobreza e a violência, os conflitos armados ou a legitimação do casamento infantil.

Devemos ensinar as crianças a identificar pelo menos cinco adultos de confiança. Porquê cinco? Porque se só pensarem num, essa pessoa pode não acreditar e não assegurar a sua proteção.

Rute Agulhas, psicóloga clínica e coordenadora do grupo VITA

Como surge este livro?

R – Ao longo de 27 anos de trabalho nesta área, as situações concretas que me marcaram de alguma forma são incontáveis. No entanto, claro que existem algumas situações ainda mais marcantes e que recordo até hoje. Destaco, por exemplo, o jovem de 15 anos que acompanhei e que era pai de um bebé, que era ao mesmo tempo seu irmão (a mãe tinha engravidado do próprio filho). Também a jovem de 11 anos que era abusada sexualmente pelo pai que depois, para a castigar pelo que tinha acontecido, a obrigava a ficar horas de joelhos em cima de milho, com os braços levantados para cima. 

Tenho também marcado na minha memória o caso de uma menina que, com 7 anos de idade, começou a ser abusada por ambos os pais, sendo que a mãe lhe ensinava como fazer aquilo que o pai gostava. São muitas situações… Penso que a principal motivação para escrever este livro foi a de fornecer conhecimentos e ferramentas aos pais e cuidadores, apostando na prevenção. A parte final do livro, "O que fazer?", que conta com a colaboração de um procurador da República e do diretor nacional adjunto da Polícia Judiciária, foi escrita para ajudar as pessoas que sinalizam a compreender o que acontece depois – existem muitos medos sobre o que sucede após uma denúncia.

Como é para si, enquanto mãe, explicar este assunto aos seus filhos?  

R – O facto de trabalhar desde sempre com este tipo de situações tem uma consequência que identifico claramente – sou uma pessoa muito desconfiada. Naturalmente, é algo que tento contrariar diariamente, especialmente enquanto mãe, sob pena de os meus filhos crescerem numa redoma de vidro, sem a necessária autonomia. Desde que nasceram que ouvem falar sobre este tema, de forma tranquila, ajudando-os a reconhecer eventuais situações abusivas e a saber reagir e pedir ajuda.

Para eles, é um tema que sempre foi abordado com a mesma naturalidade com que falamos, por exemplo, de como atravessar a passadeira ou do que fazer se se perderem na praia. Têm hoje 18 e 14 anos de idade e destaco duas situações que me parecem ilustrativas de como é importante falar sobre isto desde sempre. Na turma do meu filho uma colega partilhou um nude com o namorado (tinham todos cerca de 11 anos). Esse rapaz partilhou depois a fotografia com colegas, entre eles o meu filho – que foi o único que denunciou a situação e pediu ajuda.

Quando a minha filha tinha 15 anos, uma das suas amigas foi vítima de violação. Essa rapariga, e como é habitual entre os adolescentes, contou apenas a algumas amigas, pedindo segredo. A minha foi a única que quebrou esse segredo, mesmo com a ameaça de perder aquela amizade. Ou seja, não posso jamais acreditar que eles não venham a ser vítimas de algum tipo de violência sexual, porque não existe uma vacina que os torne imunes. Mas acredito que sabem reconhecer uma situação que aconteça com eles, ou com outras pessoas, e que sabem o que fazer.

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"O afundamento deles não começou no Canal; começou quando deixaram as suas casas. Talvez até tenha começado no dia em que se lhes meteu na cabeça a ideia de que tudo seria melhor noutro lugar, quando começaram a querer supermercados e abonos de família".