Montenegro e o velho guião da maioria absoluta: "Existe um livro de instruções"
Apesar dos apelos à estabilidade e a uma "maioria maior", o sociólogo Gustavo Cardoso partilha que "os portugueses tendem a não se rever tanto nos governos maioritários".
O discurso que agora se ouve Luís Montenegro fazer faz lembrar António Costa em 2022 quando, depois da queda da geringonça, pedia ao País que lhe desse uma maioria absoluta.
O então primeiro-ministro acabou mesmo por conseguir cumprir o seu objetivo e elegeu 120 deputados. Agora Luís Montenegro tenta a mesma fórmula para o sucesso. Se no caso de Costa a "vitimização" provinha de os antigos parceiros da geringonça não terem aprovado o Orçamento do Estado, Montenegro tem utilizado a moção de confiança chumbada como principal argumento.
Durante o debate nas rádios, há uma semana, o líder da AD reforçou que "no dia a seguir não é possível corrigir" o voto e por isso deixou o apelo aos eleitores "para que concentrem o seu voto no partido que apresenta boas medidas". O presidente do PSD tem justificado os seus apelos referindo que "é preciso colocar um travão a eleições anuais".
Também no final do debate de todos os partidos com assento parlamentar, Montenegro fez um apelo semelhante: "Quero dizer aos portugueses que podem confiar neste Governo (…) e por isso devem de facto ponderar bem apoiar este projeto votando no próximo dia 18 e conferindo condições de governabilidade necessárias" e reforçou ainda que pretende "uma maioria maior".
Gustavo Cardoso, sociólogo com especialização em comunicação, considera que "existe quase como um livro de instruções para pedir uma maioria absoluta": "Começa-se por pedir um reforço da maioria atual para depois pedir a absoluta". Isto porque, recorda que, em outubro de 2021, "António Costa também começou por pedir que uma maioria reforçada e foi só em dezembro que esclareceu que para si uma maioria reforçada era metade mais um, ou seja, uma maioria absoluta", assim sendo nada nos diz que antes das eleições Montenegro não venha mesmo a pedir uma maioria absoluta.
No entanto, o professor catedrático do ISCTE considera que este tipo de pedidos acarreta dois problemas: se por um lado "é impossível as pessoas saberem se estão a votar para uma maioria ou não, porque os votos são individuais", por outro "os portugueses tendem a não se rever tanto nos governos maioritários": "Ao contrário do que os políticos pedem, os governos que são percecionados como tendo feito um bom trabalho não são aqueles que governaram com maiorias absolutas".
Ainda assim, o especialista explica, à SÁBADO, que "quando as pessoas têm a perceção de que houve uma melhoria, nas eleições seguintes tendem a arriscar e a dar uma maioria àquele partido, formando um ciclo", acreditando que foi isso que aconteceu com António Costa. Agora, alerta que podemos ter um cenário diferente uma vez que "falta saber em que ponto de ciclo estamos porque a legislatura foi muito curta".
Na realidade um primeiro-ministro voltar a ser eleito não é uma tarefa assim tão simples, durante os 51 anos de democracia apenas cinco conseguiram: Mário Soares, Aníbal Cavaco Silva, António Guterres, José Sócrates e António Costa, quatro do PS e um do PSD. Gustavo Cardoso acredita que este fenómeno se deve à forma como a Constituição foi desenhada: "A Constituição foi feita para promover um modelo de capacidade de concertação entre as partes, ela não foi feita para criar maiorias, na realidade foi feita para as dificultar e, por isso, é que o nosso sistema é diferente do francês e do inglês".
O que é a estabilidade?
As maiorias são apresentadas pelos vários líderes partidários como o meio para atingir a estabilidade, Gustavo Cardoso recorda que por exemplo nesta campanha tanto Pedro Nuno Santos como Luís Montenegro se "apresentam como a estabilidade e afirmam que devemos escolher entre um e o outro representando a estabilidade ou a instabilidade".
Isto ocorre porque "temos uma visão da estabilidade muito diferente de muitos outros países, como é o caso da Alemanha [onde neste momento existe um governo de uma coligação do bloco central], aqui existe uma espécie de desejo de chegar ao poder que depois faz com que se haja menos e se use a tática do ‘não mexe, não toca, não estraga’": "Em Portugal sofremos da doença da estabilidade". O professor catedrático considera que a estabilidade não deve ser um objetivo, mas sim "uma ferramenta de governação que se alcança com a negociação e não com o resultado das eleições, tem de ser construída". Ainda assim, recorda que "provavelmente desde 1974, não houve nenhum candidato dos grandes partidos que não falasse de estabilidade", isto porque "o conceito ficou intrinsecamente relacionado com o papel de Salazar, que considerava a democracia como algo demasiado instável".
O especialista considera que "o mais seguro são as minorias", até porque "os partidos tendem a fazer mais mudanças quando estão num governo minoritário do que quando estão em maioria, porque a pressão dos outros partidos leva à ação". Como exemplo Gustavo Cardoso aponta que "o que aconteceu durante o último governo de Costa foi a ideia generalizada de que o melhor era não tomar grandes medidas, para evitar receber as culpas se algo correr mal".
Além disso, existe a perceção, por parte dos partidos, de que "se se entenderem uns com os outros vão perder votos" e Gustavo Cardoso acredita que isto é algo que faz parte "da nossa cultura política, mas também da forma como percecionamos o povo português": "Somos culturalmente desconfiados do outro. É difícil acreditar que a pessoa que está sentada no outro lado do parlamento não está à espera de um momento para me espetar uma faca nas costas, por isso antes de receber é melhor dar e isso dificulta também muito os pactos de governação".
Edições do Dia
Boas leituras!