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João Carlos Barradas
João Carlos Barradas
01 de novembro de 2025 às 10:00

O coiso e a coisa ruim

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Edição de 28 de outubro a 3 de novembro

Raul Proença denunciaria o golpe de 28 de Maio como «um verdadeiro acto de alta traição» no panfleto «A Ditadura Militar. História e Análise de um Crime».

«É mister que toda vida da Nação seja um permanente coup de théatre, uma série de cenas impressionantes pela grandeza dramática, que o País se transforme num Palco onde esteja sempre representando um consumado Actor», constatava Raul Proença ao escalpelizar a ditadura de Mussolini.  

Violência, irracionalismo, arregimentamento dos espíritos eram pedra de toque do movimento que chegara ao poder em Roma no final de Outubro de 1922, notava Proença em «O fascismo e as suas repercussões em Portugal», publicado no nº 77, de 6 de Março de 1926, da revista «Seara Nova». 

Proença era um dos fundadores da «Seara Nova» – com António Sérgio, Jaime Cortesão ou José Rodrigues Miguéis, entre outros – que se apresentara no seu primeiro número, a 15 de Outubro de 1921, como contributo doutrinário e crítico para a reforma da Nação em prol do bem comum. 

Declaravam os seareiros o seu empenho numa reflexão «acima do miserável circo onde se debatem os interesses inconfessáveis das clientelas e oligarquias partidárias». 

O «Déspota italiano» era um dos ódios de Proença, responsável pelo inovador «Guia de Portugal» que a Biblioteca Nacional de Lisboa começou a publicar em 1924. 

Fernando Pessoa era outro a manifestar desprezo por Benito Mussolini e, consequentemente, acabaria por reservar a António Salazar o epíteto de «pequeno Duce». 

No seareiro avultava, ainda, a repulsa por prepotências castrenses em nome do Povo que arruinavam a República estéril e desorientada desde os idos de 1910. 

Ainda nesse ano de 1926, Proença denunciaria o golpe de 28 de Maio como «um verdadeiro acto de alta traição» no panfleto «A Ditadura Militar. História e Análise de um Crime». 

Dos equívocos de Proença ao apresentar uma alternativa reformista para a regeneração da Nação avulta, precisamente nesse panfleto de 1926, a excelência que atribuía à «Eugenia, defesa da Raça, instaurando uma verdadeira Política Fisiológica (a mais importante de todas)».  

«A nossa decadência é, antes de mais nada, convém reconhecê-lo, um fenómeno de degradação étnica», escrevia o seareiro, culpando os «conúbios mais aviltantes» com «o Mouro e o Negro africanos». 

Concluía pelo imperativo de proteger o «Português de maiores abastardamentos, fazendo assim todo o possível para uma regressão ao tipo original», uma tarefa maior que nunca a Ditadura conseguiria cumprir. 

Os não-fascistas                

O que Proença deixou escrito, antes da doença o privar do uso da razão no início dos anos de 1930, pode comparar-se, como defesa de certos valores demo-liberais, ao «Manifesto dos intelectuais não-fascistas», redigido pelo Benedetto Croce, e publicado em jornais de Roma, Milão, Nápoles e Turim a 1 de Maio de 1925. 

A réplica ao «Manifesto dos intelectuais fascistas» – escrito pelo filósofo Giovanni Gentile e divulgado em Abril – era feita em nome da fé da Itália moderna no «amor da verdade, da aspiração à justiça, de um generoso sentimento humano e cívico, do zelo pela educação intelectual e moral, da preocupação pela liberdade, força e garantia de qualquer progresso.»     

O «Manifesto» de Croce – erudito por excelência, expoente da Itália liberal – era o oposto do «Credere, obbedire, combattere» da propaganda de Mussolini e congregava assinaturas ilustres como Luigi Einaudi, Giovanni Amendola ou?Guido De Ruggiero. 

Os «não-fascistas» italianos compartem muitas das angústias da intelectualidade austríaca e alemã, igualmente atormentada com o desastre da Grande Guerra que, na Alemanha, um conservador como Thomas Mann expressou no romance «A Montanha Mágica» de 1924. 

Distante ainda da vaga nazista, este fascismo dos anos de 1920 – cujo estilo e cadências anti-comunistas, anti-liberais e anti-conservadoras se declinarão em múltiplas versões romenas, francesas, portuguesas, espanholas, croatas e extra-europeias – deixou um lastro nas exacções dos que chegaram ao poder e na influência dos que ficaram pelo caminho que confunde e ilude ainda hoje.    

Tiques, arquétipos e crimes    

Umberto Eco sugeriu, em 1995, uma matriz interpretativa dos tiques e arquétipos que sustentaram o fascismo, alegadamente desprovido da coerência doutrinária nazista ou comunista. 

Fica de lado nessa análise a atroz e muito verdadeira afirmação de Aimè Césaire, o poeta da Martinica que, em 1950, no «Discurso sobre o colonialismo», assinalou o choque que representou Hitler com «o crime contra o homem branco, a humilhação do homem branco e o ter aplicado à Europa processos colonialistas a que até aqui só os árabes da Argélia, os “coolies” da Índia e os negros da África estavam subordinados» 

A subestimação da aspiração totalitária do fascismo na doutrina e na realidade do regime pelo semiólogo italiano não obsta a que as suas considerações sobre «um totalitarismo impreciso, uma colagem de diversas ideias filosóficas e políticas, um nicho de contradições» valham imenso quando se tente apreciar manifestações políticas aparentadas. 

Assinala Eco no ensaio sobre «Ur-Fascism» – título da comunicação ao simpósio realizado na Universidade de Columbia, Nova Iorque; «Il fascismo eterno» na versão italiana – a evocação de uma pretensa tradição primordial e o repúdio do racionalismo oriundo do Iluminismo europeu. 

O culto da acção, a recusa da diferença e da divergência, a frustração pela falta de reconhecimento social, bem como xenofobia motivada por uma insegurança identitária constam da lista que Eco elaborou como sintomas desse fascismo perene. 

O mote de luta permanente contra inimigos poderosos e obscuros, o desprezo pela plebe ignara de quem se afirma disposto, num culto decididamente machista, ao sacrifício por uma causa maior, e, sobretudo, determinado em sacrificar inimigos e traidores, seriam outras características desta síndrome fascista. 

Encarado como «uma sinédoque, uma denominação pars pro toto (a parte pelo todo) para diferentes movimentos totalitários» este fascismo eterno abarca ainda a negação de formas representativas parlamentares de um povo são e impoluto cuja vontade é expressa exclusivamente por um líder preclaro. 

Todas as ficções de emanação da vontade do povo pelo líder expressam-se numa novilíngua, capciosa, repetitiva e elementar.  

Uma urgência do momento e de sempre       

Por cá, ao falar-se sem tino e vezes sem conta do coiso e da coisa ruim, convinha ponderar quanto vale a peroração sobre o desvario de «cenas impressionantes pela grandeza dramática». 

Por coisas muito sérias que implicam ideias e consequência sacrificou-se e foi chacinada muita gente que fez frente à coisa ruim. 

Remeter ao seu lugar os coisos e émulos da coisa ruim é, por sinal, uma urgência do momento e de sempre.    

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