Como é a residência oficial do primeiro-ministro e por que é que ninguém quer lá morar?
Construído na reta final do século XIX, o Palacete de São Bento serviu como residência oficial a Salazar. Mas desde o 25 de Abril apenas um primeiro-ministro residiu ali a tempo inteiro. A história de um palácio no centro de Lisboa em que quem pode ali residir se recusa a fazê-lo.
No pico da polémica sobre a empresa familiar de Luís Montenegro, ficou a saber-se que o primeiro-ministro estava a viver no Epic Sana, um hotel de cinco estrelas no centro de Lisboa, enquanto decorrem as obras na sua casa. O primeiro-ministro revelou pagar 250 euros por noite. "A partir do momento em que comecei a ter câmaras de televisão à porta do hotel, decidi experimentar uma coisa que nunca tinha experimentado: viver aqui no edifício [Palacete de São Bento], no único quarto sobrante da antiga residência", afirmou Montenegro na entrevista à TVI/CNN Portugal esta semana. E que tal a experiência? "Não tem cortinas", lamentou.
Mas Montenegro não é o primeiro a queixar-se da residência oficial e das suas condições de habitabilidade. No programa Isto é Gozar com Quem Trabalha, Pedro Santana Lopes, que também ficou na residência oficial, revelou que "a casa em si, para residência, não é nada de especial - três quartos, cozinha, duas casas de banho… Mas é velha e decadente", explicou o ex-primeiro-ministro a Ricardo Araújo Pereira, contando ainda uma anedota: "Quando acordei na primeira manhã [em que dormi lá] tinha uma inundação de todo o tamanho no quarto".
As inundações não são um problema novo no palacete de São Bento. Na verdade, também o inquilino que habitou ali mais tempo teve problemas de infiltrações e até inundações.
A história de uma residência oficial
O primeiro inquilino do Palacete de São Bento enquanto Residência Oficial foi António de Oliveira Salazar. Escreve Filipe Ribeiro de Meneses na sua biografia sobre o ditador que Salazar se mudou para o edifício depois do atentado levado a cabo por um grupo anarquista em 1937. "Embora Salazar tenha saído ileso do atentado contra a sua vida e a sua resposta ao ataque lhe tenha granjeado ganhos políticos apreciáveis, o seu estilo de vida sofreu grandes mudanças, com rotinas de longa data a serem alteradas em nome da segurança pessoal", escreve o historiador.
Mandado construir em 1877 para servir de residência em Lisboa, pelo milionário e filantropo bracarense Joaquim Machado Cayres, o palácio onde estavam albergadas freiras situava-se perto da Assembleia da República, mas havia alguns edifícios e terrenos a separar os dois. Por isso, no mesmo ano do atentado, o então presidente da República Óscar Carmona ordenou a expropriação dos terrenos. Alguns dos proprietários escreveram ao presidente do Conselho de Ministros a reclamar dos baixos valores de compensação, refere a investigadora Ana Mehnert Pascoal na tese Os palácios da "Representação Nacional". Identidade e poder nos edifícios do Governo no Estado Novo.
Salazar gostava de estar em cima das obras e ao domingo à tarde visitava sua evolução, registou Leitão de Barros. Por decisão governamental não foi alterado o traçado nem a divisão interna do edifício. Na altura, o palácio foi transformado para funcionar, em simultâneo, como espaço de trabalho do Presidente do Conselho de Ministros e também a sua residência. Foram criados gabinetes de trabalho e espaços para receber altos dignitários e no piso superior o espaço residencial privado para Salazar morar. Ali vivia também a sua governanta D. Maria Freire e algumas sobrinhas que por lá passaram enquanto o natural do Vimeiro liderou o País.
Os ocupantes
Depois de Salazar houve uma grande rotatividade de ocupantes ao longo de uma década e meia. Foi casa de Marcello Caetano, Francisco Sá Carneiro enquanto era ministro sem pasta. Também Vítor Gonçalves passou por lá, tendo partilhado a casa com a família de um ex-agente da PIDE, contou "o mordomo de São Bento" Fernando Silva à SÁBADO em 2014. Carlos da Mota Pinto viveu na residência oficial com a família e outro ministro e Balsemão também viveu em São Bento. "Jogava à bola com o meu filho", contava o mordomo.
Mário Soares nunca abdicou da sua casa no Campo Grande, onde tinha a sua biblioteca e os seus confortos. Mas o seu gabinete era de facto em São Bento.
Em 1985, Aníbal Cavaco Silva foi aconselhado por quem tratava da sua segurança a mudar-se para São Bento, já que não conseguiam garantir proteção na rua onde tinha casa. Foi o único primeiro-ministro na história da democracia portuguesa a viver por vários anos em São Bento e o último que alterou de forma significativa a propriedade.
António Guterres considerou que não havia condições em São Bento para habitar e transformou os quartos em gabinetes de trabalho para as suas assessorias. Durão Barroso manteve esta constituição, mas Pedro Santana Lopes decidiu ficar a residir em São Bento enquanto foi primeiro-ministro. Mas contou, a Ricardo Araújo Pereira, que as condições de privacidade e de trabalho são difíceis de conjugar. "Às vezes estava com ministros estrangeiros e os meus filhos passavam equipados para ir jogar futebol. As pessoas achavam graça", contou o social-democrata, mas assumindo que a privacidade era difícil tendo ali a residência oficial e o espaço de trabalho.
Quando José Sócrates se tornou primeiro-ministro voltou a transformar os quartos em gabinetes e desde então que essa é a configuração. Pedro Passos Coelho também escolheu manter a residência como um espaço privilegiado de trabalho, tal como António Costa. O socialista também nunca quis ficar na residência oficial, exceto quando foi obrigado a fazer um isolamento devido à covid-19, nos anos da pandemia, tendo passado cerca de uma semana na residência oficial antes de poder voltar a casa.
Um espaço de trabalho, lazer e galinhas
Além da residência e dos gabinetes, São Bento tem vários espaços que não são necessariamente de trabalho. Os jardins integravam a habitação do motorista, a garagem, o alojamento do guarda e algumas dependências de suporte.
No jardim, Salazar tentou incorporar parte do seu ideal público de importância da ruralidade na vida moderna. Para reforçar estes valores pediu que fossem instaladas capoeiras, coelheiras e até um pombal, mais um espaço para serem cultivados produtos hortícolas e até que fosse instalado um lavadouro com tanque para roupa. Havia também um pequeno pomar. Relatos da altura citados por Filipe Ribeiro de Meneses revelam que Salazar gostava de passear por estes jardins a pé (até porque depois da tentativa de assassinato foi proibido de passear a pé por Lisboa). No livro-entrevista da jornalista francesa (depois apontada como uma das amantes) Christine Garnier (Férias com Salazar, 1952), o ditador diz que trabalhava até às 14h, depois almoçava "em quinze minutos" e ia passear aos jardins do palácio.
No livro Salazar confidencial - A história secreta da rede de cunhas e favores do Estado Novo, do jornalista da SÁBADO Marco Alves, é revelado que Salazar enviava hortaliças para a casa de Rosa Casaco, o agente da polícia política que o guardava e que foi o chefe da brigada da PIDE que assassinou Humberto Delgado.
Depois de Salazar e de dona Maria deixarem de ser os residentes oficiais quem explorava os galinheiros, o pombal e a horta eram os jardineiros da câmara e os motoristas que tinham um anexo na propriedade onde se faziam algumas patuscadas. Semeavam-se batatas, cebolas, feijão e couves na horta.
Ora, Cavaco Silva não tinha particular apreço por cuidar de galinhas, mas gostava de dar as suas braçadas e por isso pediu autorização para que fosse construída uma piscina onde antes estava essa velha instituição de São Bento que eram os galinheiros da dona Maria.
Mas já Francisco Pinto Balsemão tinha aproveitado o relvado para jogar à bola com os filhos do sr. Silva e Mário Soares organizou em 1984 uma festa nos jardins para comemorar a vitória de Carlos Lopes na maratona dos Jogos Olímpicos de Los Angeles, tendo um vitelo inteiro a assar no espeto.
As obras
Salazar supervisionou as obras no palacete e decidiu o que era incluído e alterado. Segundo as notas de Salazar, citadas por Ana Mehnert Pascoal, foi seguido o critério de aproveitamento máximo do existente, não alterando o traçado e a divisão interna. Na cave ficava então a cozinha e despensa, áreas para arrecadação e espaço para caldeira.
No piso térreo ficava a sala de recepções, bem como a sala de jantar e uma sala de fumo e biblioteca. No segundo piso ficavam os gabinetes e salas para reuniões de trabalho, incluindo o gabinete particular de Salazar e a zona mais privada da residência. Quarto, casas de banho e sala de jantar privada do presidente do Conselho, bem como quarto e sala de estar para hóspedes e um terceiro quarto. Salazar tinha ainda um oratório particular. No sótão ficavam pequenos espaços dedicados às tarefas do dia-a-dia dos criados ao serviço do Palacete.
A decoração era clássica, com pinturas onde predominavam telas dos séculos XVII, XVIII e XIX e a mobília era clássica ao estilo Luís XVI. A decoração não iria variar muito de estilo ao longo dos anos até que no século XXI começaram a ser implementados detalhes de design mais contemporâneo. Franco Nogueira, no terceiro de seis volumes da sua biografia de Salazar, citado por Marco Alves, escrevia: "Para a parte pessoal [do edifício], Salazar adquire a sua própria mobília". Na visita inaugural, Franco Nogueira recordou que Salazar fez questão de dizer aos jornalistas e aos ministros "que o andar superior foi mobilado à sua custa, a seu gosto, e que não está, portanto, utilizando, para fim pessoal, o que quer que seja do Estado; e além disso paga do seu bolso a governanta e as duas criadas".
A dotação orçamental para as obras levadas a cabo por Salazar foram de 792 mil escudos, valor que "superava amplamente as outras intervenções listadas" pela Direcção-Geral dos Edifícios e Monumentos Nacionais (DGEMN), escreve Ana Mehnert Pascoal. Apenas as obras da escola do magistério primário de Viseu eram superiores (900 mil escudos). A reparação de fachadas de prédios do Estado tiveram apenas uma dotação de 438 mil escudos e para a intervenção na Casa Pia de Lisboa foram concedidos 400 mil escudos.
Mas mesmo com uma dotação tão avultada, as obras não resolveram o problema. Dois anos depois de concluídas, foi necessário fazer mais trabalho na estrutura. Logo no inverno de 1939, por exemplo, verificou-se a necessidade de remodelar o telhado devido às infiltrações, resultantes do facto das obras apenas ter pontualmente reparado e não refeito (recordamos que Santana Lopes se queixou de inundação logo no primeiro dia e fontes garantem que as infiltrações continuam a ser um problema atual).
Quando Marcello Caetano passou a presidente do Conselho reconverteu o sótão noutro andar com condições de habitabilidade, mas o arquiteto responsável pelo processo, José de Almeida Segurado, considerava que palacete, não possuía interesse arquitetónico significativo e não se adequava à finalidade de residência oficial de tão alta figura de Estado. Procedeu a algumas obras de modernização do edifício durante o ano de 1970.
Depois da construção da piscina, a residência oficial do primeiro-ministro tem recebido obras mais discretas. Foi ampliada a garagem, substituídos alguns elementos mais degradados e refeitas canalizações e substituídos os sistemas de climatização. Estes últimos foram alvo de substituição já durante os tempos de António Costa (tendo sido instalados enquanto Salazar ali vivia e apenas nos gabinetes de trabalho, já que o Presidente do Conselho tinha "extrema sensibilidade [...] às correntes de ar frio", preferindo aquecer o seu gabinete com uma escalfeta, escreve Ana Mehnert Pascoal).
Em 2018 a residência oficial do primeiro-ministro foi alvo de obras de reabilitação. A intervenção teve um valor global de 719 mil euros. Mas continuou sem cortinas no quarto onde dorme o primeiro-ministro.
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