NEWSLETTER EXCLUSIVA PARA ASSINANTES Para que não lhe escape nada, todos os meses o Diretor da SÁBADO faz um resumo sobre o que de melhor aconteceu no mês anterior.
Uma árvore de quase cem anos deitada aos meus pés. Sempre que se vê uma árvore daquele tamanho tombada fica-se com uma tristeza que não é bem nossa. Uma tristeza pela impossibilidade de recuperar aquela história que caiu por terra.
A TEMPESTADE PASSOU na noite anterior, como quem não tem tempo para explicações. A tempestade veio e fez o que as tempestades fazem. O céu estava carregado de uma força estranha, como se o próprio universo tivesse um aperto no peito. Acordei cedo, o vento ainda soprava lá fora, como se não quisesse admitir que o mal estava feito. Saí e dei um passeio para perceber o que tinha acontecido à minha volta depois daquela noite. Já tinha visto na televisão, mas queria ver por mim, sem ser pelos olhos dos outros.
Penso sempre que as árvores são as últimas a ceder ao peso do mundo, mas ali estava ela, enorme, estendida, o tronco rachado pela força do vento, as raízes expostas, como se quisessem contar um segredo ou um arrependimento profundo. Uma árvore de quase cem anos deitada aos meus pés. Sempre que se vê uma árvore daquele tamanho tombada fica-se com uma tristeza que não é bem nossa. Uma tristeza pela impossibilidade de recuperar aquela história que caiu por terra. Imagina-se o dia em que foi plantada, as gerações que se cruzaram com ela, as vezes que terá ficado ali a fazer sombra a beijos escondidos, a pais que passeavam os filhos depois da escola, a dias de muito sol e noites de muita chuva. Uma árvore é um farol discreto em que ninguém repara até ela se ausentar.
Como a sabedoria, só percebemos o seu valor quando ela se vai embora. A sua vida, que parecia interminável, foi interrompida de uma forma abrupta, sem aviso, sem preparação. Ali, estendida sobre a terra, a sua morte fica ainda mais trágica. Vê-se nela a fragilidade da vida, algo que, de alguma forma, já se intuía, mas que nunca esperamos ver revelado de forma tão brutal. É triste ver uma árvore caída, e não é apenas pela árvore em si. O que nos estremece é o que ela representa: a natureza, que nunca precisa de nós, mas que suporta a nossa existência.
Quando vemos uma árvore antiga caída, não estamos apenas a lamentar a perda daquela árvore específica; estamos a lamentar as nossas certezas serem postas em causa. É difícil pensar no que é uma árvore sem a sua verticalidade. Porque a árvore é, antes de tudo, uma promessa de permanência, de algo que se recusa a desaparecer. Quando uma árvore daquele tamanho cai, há uma ferida tremenda que se abre no meio do chão. As raízes rasgam a terra toda quando se levantam, mostram-se à luz pela primeira vez desde que nasceram e, nesse golpe dramático de ascensão a qualquer coisa maior, deixam-se morrer de caras para o céu. Existe algo de cruel no silêncio que se segue à queda, algo que não pede permissão para existir. O céu, perante as raízes despidas aos seus pés, parece abrir-se com a mesma força da tempestade, e deixa-se ficar ali a mostrar o que fez, envergonhado da sua fúria. O que fica, quando tudo cai, é uma memória; ou talvez só uma coisa sem nome. Não há nome para o que fica depois de uma tempestade.
A árvore caída é o que poderia ter sido, o que foi e o que será, tudo ao mesmo tempo. Fiquei muito tempo a olhar para aquela gigante ali deitada e a pensar que nunca se espera que uma coisa daquele tamanho se deixe cair antes de nós. De tanto a ver, já tinha a certeza que iria estar ali para sempre. E agora a copa da árvore estava deitada aos meus pés, ela que ainda na semana passada estava mais perto do sol do que qualquer um de nós. Os pássaros passavam por lá para descansar e voltavam a voar sem se despedirem, porque estavam seguros de que ela estaria lá para sempre. E agora fica-se ali, em silêncio, a pensar como consegue o vento deitar abaixo uma coisa que demorou tantos anos a ganhar força. Ela esteve sempre lá, firme, todos os dias, mas nem sempre a vimos. E agora, caída, já não podemos mais ignorá-la. A morte de uma árvore não é como a morte de um animal. Não há dor, não há gritos. Não é algo evidente.
Juan Cavia
Onde agora não está a árvore, a luz passa como já não passava há muitas décadas. Daquele lugar que era uma sombra vê-se agora o céu, e o sol aquece a árvore deitada como se lhe pedisse desculpa.
Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico
Uma árvore de quase cem anos deitada aos meus pés. Sempre que se vê uma árvore daquele tamanho tombada fica-se com uma tristeza que não é bem nossa. Uma tristeza pela impossibilidade de recuperar aquela história que caiu por terra.
As pessoas maravilhosas não cabem em qualquer colecção, não podem ser catalogadas, nem preservadas de forma definitiva. Elas escapam-nos com o tempo, e, se as tentarmos prender, provavelmente a magia da sua maravilha desaparece.
Não estou a falar daquela desistência preguiçosa, daquilo que se abandona porque se tem medo de fazer o trabalho duro. Falo da desistência sábia, a que vem com a reflexão e com a consciência de que já não vale a pena gastar energia em algo que não vai dar em nada.
Nunca sabemos se queremos realmente o que não temos, ou se queremos apenas que nos falte sempre algo. E talvez, no fim de tudo, o que queremos não seja mais do que isso: viver na promessa do que nunca chega, na eternidade do que nunca se concretiza.
Para poder adicionar esta notícia aos seus favoritos deverá efectuar login.
Caso não esteja registado no site da Sábado, efectue o seu registo gratuito.
O humor deve ser provocador, desafiar convenções e questionar poderes. É um pilar saudável da liberdade de expressão. Mas quando deixa de ser crítica legítima e se transforma num ataque reiterado e desproporcional, com efeitos concretos e duradouros na vida das pessoas, deixa de ser humor.
Trazemos-lhe um guia para aproveitar o melhor do Alentejo litoral. E ainda: um negócio fraudulento com vistos gold que envolveu 10 milhões de euros e uma entrevista ao filósofo José Gil.