Sábado – Pense por si

Tiago Pereira
Tiago Pereira Psicólogo e membro da direção da Ordem dos Psicólogos Portugueses
09 de março de 2021 às 17:43

Porque só a ela o perguntam?

Serei e seremos, em breve e pela segunda vez, mãe e pai. À constante pergunta que lhe é feita ("Como conseguirás conciliar tudo?") corresponde a constante ausência dessa mesma pergunta a mim.

No início de Março de 2020 caminhávamos para o primeiro dever de recolhimento obrigatório devido à pandemia COVID-19. Eram, na Ordem dos Psicólogos Portugueses, como em tantas outras organizações, os últimos dias até hoje em que todas/os trabalhávamos presencialmente em simultâneo. Aproximávamo-nos do Dia Internacional da Mulher e preparávamos uma iniciativa para o assinalar da qual resultaram fotografias das mulheres e homens da equipa, feitas por uma colega (obrigado!), sendo uma delas a que hoje "me mostra" nesta rubrica. Esses dias, simbolicamente, marcaram o início da inversão de um processo global que, ainda que (muito) lento e díspar, tinha já largos anos e era relevante por significativo em Portugal – o progresso no sentido da igualdade de género.

A (des)igualdade de género é, desde há muitas décadas, um importante desafio societal global com fortes implicações na possibilidade de bem-estar das mulheres (mas também dos homens e de toda a comunidade) e na coesão social das sociedades. Tema com forte componente emocional, não raras vezes polarizado(r) e exposto a atalhos ou enviesamentos, parte deles particularmente injustos e pouco compatíveis com a evidência científica, como é exemplo a generalização. Sobre ela disse Alexandre Dumas: "toda a generalização é perigosa, incluindo esta." Frase que ao expor a generalização não fundamentada e, simultaneamente, validar a fundada, toca duas recentes generalizações de homens mediáticos, desiguais nos dados que as suportam: a de Yoshiro Mori, ex-presidente do Comité Organizador dos Jogos Olímpicos de Tóquio, ao dizer (e por isso se demitir) que as reuniões com mulheres "levam muito tempo" porque "falam demasiado"; a de António Guterres, Secretário-Geral da ONU, ao escrever que a pandemia COVID-19 tem o "rosto de uma mulher".

Se não são amplamente referidos e discutidos estudos sobre o quão mais "palavrosas" são as mulheres face aos homens em reuniões, são-no os que apresentam e discutem dados sobre a desigualdade de género e os impactos desiguais da pandemia. Os que por cá demonstram que as mulheres são particularmente impactadas pela crise COVID-19 e pelas questões socioeconómicas a ela associadas, nomeadamente quando: as mulheres representam 82% das pessoas que requerem o apoio excepcional resultante do encerramento dos estabelecimentos educativos; existe maior precariedade e sobrerepresentação das mulheres em sectores mais atingidos pela crise, gerando maior perda de rendimento e de emprego; por estarem mais expostas a períodos de desemprego prolongado e ao desencorajamento associado, as mulheres "caem" mais em situações de inactividade, saindo do "radar" dos apoios. Mas também os que demonstram, Mundo fora, o impacto desigual da pandemia na produção científica; que apenas 1 em cada 15 pessoas têm uma mulher como líder política; ou que a prestação de cuidados não remunerados e as situações de violência, tráfico e exploração das mulheres aumentaram significativamente como aumentou o abandono escolar precoce feminino como consequência da pandemia. Finalmente outros revelam que, aqui e pelo Mundo, a força de trabalho na saúde, mas também na educação e na área social/comunitária, fortemente expostas e impactadas pela pandemia, é maioritariamente feminina e que, nesta crise que vivemos, as mulheres (face aos homens), apresentam maior sofrimento psicológico, ansiedade, stress e depressão. Crise que, não se limitou a impactar mais as mulheres, inverteu a recuperação a que se assistia, acrescentando mais desigualdade à desigualdade que existia, e mais anos ou décadas às décadas que ainda dista(va)m de caminho pela igualdade.

Nesta, como noutras crises, a recuperação do país e do Mundo implica recuperarmos as pessoas e recuperar as pessoas implica garantirmos-lhes mais condições e recursos (internos e externos) para lidar e enfrentar novos desafios e crises. Implica pessoas, mas também comunidades, países e um Mundo mais resiliente. Isto torna essencial que no esforço de recuperação se atente a vulnerabilidades específicas de grupos populacionais e se adopte uma atitude empenhada no sentido da diminuição das desigualdades, de género mas não apenas. Ao retrocesso com a pandemia deve corresponder um convicto investimento em 4 áreas essenciais à mitigação desta desigualdade: o investimento na educação, literacia e na saúde psicológica da população, garantindo o desenvolvimento de competências sócio-emocionais e maior abertura à/ao outra/o como princípio para uma sociedade mais equitativa, coesa e resiliente; legislação, que estimule a promoção da igualdade, mais suportada em ciência (e nas ciências comportamentais) e mais responsiva às múltiplas dimensões envolvidas na tomada de decisão (incluindo os enviesamentos cognitivos); maior reconhecimento da necessidade de compensação adequada do trabalho socialmente útil; e uma representação política e social igualitária.

Serei e seremos, em breve e pela segunda vez, mãe e pai. À constante pergunta que lhe é feita ("Como conseguirás conciliar tudo?") corresponde a constante ausência dessa mesma pergunta a mim. Reflicto, reflictamos, (n)o que isso impacta... (N)o que isso significa... Aqui e ali, no Mundo ao redor, há pessoas que, como eu, cresceram, desenvolveram-se e partilham a vida com mulheres (para si) muito importantes e relevantes (obrigado!). No meu caso, via acasos e escolhas, saí de uma Escola Secundária de nome Maria Lamas rumo a uma profissão (psicóloga/o) feita principalmente por e de mulheres, celebrando cada 8 de Março como uma oportunidade de dar a conhecer o que já se conquistou na igualdade de género, inspirando e motivando mais pessoas para este desafio e através dele para outros onde a desigualdade ainda vence. Mas... Porque só a ela o perguntam? Que a celebração deste dia sublinhe o caminho que ainda há por percorrer e incentive a que o percorramos, juntas/os.

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