Sábado – Pense por si

Rui Costa Pereira
Rui Costa Pereira Advogado
06 de julho de 2024 às 10:00

Eu escuto, tu escutas, ele escuta, nós escutamos, vós escutais, mas eles não escutam

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Edição de 5 a 11 de agosto

É apenas na fase de investigação criminal que alguém pode ser escutado; a escuta só pode ser autorizada se existirem razões para a ter como indispensável para apurar a verdade ou que, sem a mesma, esta não seria alcançável.

Quis a lei que as escutas telefónicas só pudessem ser autorizadas durante o inquérito. É letra de lei. É o que é lógico. Não pode ser de outro modo. Para o exercício a que me proponho nas próximas linhas, convém também ter presente que as escutas só podem ser autorizadas se houver razões para crer que são indispensáveis para a descoberta da verdade ou que a prova seria, de outra forma, impossível ou muito difícil de obter e, que, a autorização concedida, e sempre por um juiz, é válida até três meses, renováveis, desde que se verifiquem os respetivos requisitos de admissibilidade.

Procurando traduzir por miúdos: é apenas na fase de investigação criminal que alguém pode ser escutado; a escuta só pode ser autorizada se existirem razões para a ter como indispensável para apurar a verdade ou que, sem a mesma, esta não seria alcançável (ou quase de certeza que não); podendo vigorar até três meses, a cada renovação a que esteja sujeita, deverá sempre justificar-se como se justificava no primeiro momento (ou, talvez, até ainda mais).

O tema das escutas é algo que de tempos em tempos irrompe no palco mediático. Nas últimas semanas foi a ainda não nauseante (também lá chegará…) Operação Influencer que provocou nova discussão em torno daquelas. Muito centrada naquelas questões que antecipei. Discussão compreensivelmente envolta na surpresa, segundo muito se noticiou, de terem sido autorizadas escutas por mais de 4 anos, sendo a autorização destas repetidamente renovada, por mais de uma dezena de juízes, apesar de, no seu ínterim, muito do seu produto não ter sequer relevância criminal.

Porque não tenho contacto com o processo e porque se tem dito que o mesmo está sujeito ao chamado segredo externo, só posso conhecer o que alguém decidiu revelar e o que órgãos de comunicação social têm noticiado. Com o que foi noticiado, não tenho como não estar ao lado daqueles que se mostram, pelo menos, inquietos (só não digo também surpreendido porque no que há de negativo na investigação criminal é cada vez mais difícil haver razões de surpresa). Sobretudo por causa do tempo ostensivamente excessivo das escutas, que arrasta negativamente as renovações da sua autorização inicial. E o tema do segredo de justiça é o pontapé de saída perfeito para melhor expressar as razões da minha inquietude. Que não é de hoje e com certeza que não é respeitante a este processo apenas, que nada me diz.

Cristalizou-se há muito a ideia de que os prazos legais de duração máxima do inquérito são meramente ordenadores. Não vou entrar nessa discussão, até porque gosto pouco de lutar contra moinhos de vento. Mas sensível à ideia de quão intolerável seria permitir que o regime de segredo de justiça privasse os sujeitos processuais e em particular os arguidos de aceder ao processo durante todo o tempo que, em concreto, pudesse durar uma investigação, também há muito que os tribunais estabilizaram o entendimento de que atingido o prazo legal de duração máxima do inquérito, o regime de segredo interno cessa e o processo passa a estar ao dispor de ser consultado e acedido, inclusive por quem nele é investigado, independentemente de a investigação, no caso concreto, perdurar.

Ora, as razões que levam a esta consequência processual deveriam, também, impedir que alguém pudesse ser alvo de uma escuta para lá dos prazos legais de duração máxima do inquérito. É que as regras legais processuais são criadas no pressuposto da normalidade processual. Nela, no máximo legal previsto, o inquérito não deve durar mais do que 1 ano e meio, sem prejuízo de eventuais suspensões da sua contagem (que, no máximo, só poderão acrescentar 9 meses). Se a lei previu que as escutas só podem ser autorizadas durante o inquérito, logicamente só poderão ser válidas dentro dos prazos que a mesma lei estipulou como limites de duração desse mesmo inquérito. E se não forem os princípios ou as boas práticas processuais a levar-nos a esta conclusão, que ao menos sejam as razões lógicas e pragmáticas, como é a circunstância de aquele que é investigado poder passar a saber que é também escutado.

A lei prevê também que o prazo de duração máxima do inquérito começa a contar logo que haja um suspeito determinado. O crime pode ser denunciado, a suspeita da sua ocorrência ter chegado ao conhecimento das autoridades, mas não se saber logo no arranque da investigação quem é esse suspeito determinado, razão pela qual é perfeitamente comum, e natural, que exista formalmente uma investigação sem que esteja logo a correr o prazo máximo da respetiva duração.

Isso, porém, não pode significar, e não pode significar de maneira alguma, que numa investigação iniciada há 3, 4 ou 5 anos, seja possível alguém ser alvo de uma escuta mais tempo do que o tempo máximo de duração do inquérito, só pela circunstância de se dizer que o cronómetro da duração máxima do inquérito ainda não começou a correr. Pela razão simples de que a escuta só pode ser autorizada contra o suspeito ou arguido, contra pessoa que se acredita que recebe ou transmite mensagens destinadas ou provenientes de suspeito ou arguido (ou contra a vítima do crime). Ora se a escuta só pode ter estes alvos como destinatários, é lógico que quando foi primeiramente autorizada, o prazo de duração máxima do inquérito já se iniciou.

Aqui finalmente chegados, não me atrevendo a discutir os pormenores do caso concreto, até porque não os conheço, vejo com alguma dificuldade (senão com impossibilidade, pelo menos de validade jurídica) que uma escuta autorizada há 4 anos possa ver a sua autorização repetidamente renovada, durante todo esse período, porque o prazo de duração máxima do inquérito não tem como não ter sido atingido antes desses 4 anos.

No século passado, a sociedade como um todo e a comunidade jurídica em particular, em matéria de salvaguarda de direitos fundamentais e no confronto destes com as exigências da investigação criminal, tendiam a mais ou menos harmoniosamente repudiar com veemência as práticas mais danosas para aqueles e as leis e o direito desenvolveram-se estruturando regimes de recolha de prova onde à violação dos mais básicos direitos fundamentais se respondia com a impossibilidade de utilização das provas assim obtidas. Independentemente da sua valia e utilidade. Havia um consenso suficientemente amplo de que a disciplina da investigação criminal e o respeito dos direitos fundamentais se haveriam de sobrepor, nestes casos, à descoberta da verdade. Sem a consequência da inutilização probatória, a rédea solta da investigação poder-se-ia descontrolar e de modo intolerável para os direitos fundamentais. Assim se pensava. Mas, com o tempo, foram-se criando exceções e hoje, muito do que há umas décadas era impensável, passou a ser não só tolerado, como até fomentado.

Hoje permitimos que alguém possa ser escutado durante 4 anos consecutivos, mesmo para registar o que de criminal nada tem de relevante. Talvez amanhã escutemos durante 10 anos e, porque não as conversas entre o arguido e o seu defensor, inclusive as respeitantes à preparação da sua defesa e já no julgamento. Pior do que dizer que já estivemos mais longe é não me custar pensar que estamos assustadoramente perto. 

Rui Costa Pereira, Advogado penalista e Associado Coordenador da MFA Legal

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