O poder das palavras é superpoderoso. Porém, as palavras, por si só, não têm o poder de fazer acontecer ou organizar a nossa vida, as nossas escolhas ou o nosso tempo.
Desde a Antiguidade que sabemos que os desejos genéricos são um erro na perspetiva da sua execução. Aristóteles advertia, na Ética a Nicómaco, que não desejamos o bem abstrato, mas aquilo que parece bom. Não basta parecer bom; é preciso agir bem de forma consistente. A ética não vive de intenções ocasionais, mas de carácter. A virtude não é um gesto isolado, mas um hábito praticado.
Na época natalícia somos autores e destinatários de centenas de desejos natalícios, desejos de “um bom ano”. Creio que raramente paramos para pensar no que isso realmente significa. Saúde, sucesso, paz, felicidade, com certeza. Palavras bonitas e adequadas ao contexto, sim, mas e quanto ao objetivo, ou seja, a realização destes desejos? Quanto ao contributo que podemos dar para a sua realização?
Desejos vagos são moralmente confortáveis, mas não serão praticamente inúteis? Não ajudam quando chega o momento decisivo, certo? Escolher o que fazer.
Talvez esta senda inquisitiva seja inoportuna em face da época e das azáfamas que atravessamos ou ir longe demais para a sua função social, mas não conheço melhor altura para refletir sobre ela.
O poder das palavras é, salvo a redundância, superpoderoso. Porém, as palavras, por si só, não têm o poder de fazer acontecer ou organizar a nossa vida, as nossas escolhas ou o nosso tempo.
É certo que desejar “bom ano” ou algo similar pode ser um sinal de gentileza ou de educação. É, diriam os especialistas, linguagem mínima de pertença social. A sociologia clássica chama-lhe lubrificante social: pequenos rituais que reduzem ou evitam conflitos e fricções, criam regulação e previsibilidade de comportamentos alheios, facilitam a comunicação e cooperação e sinalizam respeito. O cumprimento social, a pequena conversa (small talk), a utilização de humor, o dar passagem ou lugar a outrem, são alguns exemplos. Sem eles, a vida coletiva torna-se agressiva, maníaca, hostil.
E parece que precisamos desesperadamente de manter e promover lubrificantes sociais, sobretudo quando os estudos e as novas gerações apontam para tipos-ideais de felicidade “hype”, de fonte alheia, e a erosão dos lubrificantes sociais tradicionais.
Por exemplo, nas redes sociais, e não só, a felicidade costuma ser vendida como emoção. Mas a evidência mais recente aponta noutra direção: felicidade sustentável é, em grande medida, a realização de um projeto de arquitetura de vida, que é construída por relações pessoais, de confiança, de coesão e apoio social, em sentido com os valores comunitários e previsibilidade mínima.
O World Happiness Report 2025 reforça a importância da benevolência e da conexão social: quando as pessoas acreditam que os outros ajudam e quando existe suporte familiar e social, o bem-estar melhora e tende a ser mais bem distribuído. Contudo, há sinais preocupantes de solidão, sobretudo entre jovens, com uma fatia relevante a reportar falta de alguém “com quem contar”.
O problema da realização da “felicidade” é agravado quando organizamos a vida em torno de comparação constante, hiperdisponibilidade e ausência de limites. É sem dúvida um caminho para a sabotagem do próprio desejo.
A psicologia contemporânea também abandonou a ideia de que viver bem é apenas “sentir-se bem”. Martin Seligman, ao rever a psicologia positiva, colocou o sentido, o compromisso e a contribuição no centro do bem-estar duradouro. Emoções contam, mas não sustentam uma vida sozinhas. Em termos simples: vidas boas e instituições saudáveis constroem-se com práticas repetidas, não com declarações ocasionais. Aristóteles iria, provavelmente, aplaudir.
Por seu lado, a evidência mais recente sobre bem-estar mostra algo menos glamoroso e mais exigente: pessoas mais satisfeitas vivem em contextos previsíveis, com relações confiáveis, sentido de pertença e coerência entre valores e comportamento.
Há, por isso, um problema nos desejos ocasionais e genéricos. São confortáveis, consensuais, socialmente aceitáveis. Quem poderia ser contra “mais felicidade”, “mais paz” ou “mais crescimento”? Mas desejos genéricos, talvez por serem fáceis e parecerem ocos, não orientam comportamentos, não ajudam a resolver dilemas e não criam responsabilidade. Funcionam como nuvens a tapar o sol que nos ilumina e fortalece ou como ruído de fundo que distorcem a música do nosso coração. Dão-nos a ilusão de intenção sem o incómodo da decisão.
Neste sentido, desejar bem é mais exigente do que desejar muito.
Por tudo isto, talvez valha a pena perguntar: o que deveríamos desejar para 2026, se levássemos os desejos a sério?
A pergunta faz-me sentido em diversos planos considerando a época atual, os desejos partilhados e o estado de arte da nossa vivência, digamos assim.
No plano pessoal e profissional, sabemos que aquilo que desejamos e publicitamos revela o tipo de vida que queremos e estamos a construir. Se desejamos constante e hierarquicamente “subir mais alto”, mais rapidez, mais reconhecimento imediato, mais validação externa, acabamos a viver numa corrida que nunca termina ou a transportar um peso que não é nosso. Se publicitamos tudo aquilo que temos e nos acontece e nos promovemos, amiúde em função do parecer bem e acrescentar prestígio segundo julgamento e valoração alheios – ouro para as redes sociais, incluindo a rede LinkedIN – diz a investigação que tal não contribui para a nossa verdadeira identidade e integridade, que é o mesmo que dizer, felicidade e bem-estar.
No plano cívico e político, os desejos são igualmente reveladores. Uma sociedade que deseja atalhos ou menospreza o básico, acaba por tolerar abusos e carências humanamente intoleráveis. Uma sociedade que deseja resultados sem esforços e processos enfraquece as instituições. Uma sociedade que deseja líderes fortes, mas não talentosos, responsáveis e transparentes, prepara o terreno para a estagnação, arbitrariedade e o autoritarismo.
Como sabemos, os desejos coletivos moldam, também, as políticas públicas, o funcionamento das organizações e a qualidade da democracia, mesmo quando não o reconhecemos explicitamente.
Neste sentido, a forma como desejamos, individual e coletivamente, releva para a sua concretização. Aqui, a confiança e credibilidade, irmãs gémeas na família do bem-estar, são essenciais.
Neste domínio, os dados internacionais são claros: quando as pessoas deixam de acreditar que decisões são tomadas com base em critérios justos e evidência, a democracia perde qualidade e as organizações perdem eficácia. Tudo passa a custar mais: em tempo, em energia, em dinheiro.
Na ciência política e na administração pública, este ponto é central. Mark Bovensmostrou como a accountability (prestar contas, explicar decisões, aceitar consequências) é um pilar das instituições democráticas. Sem ela, a confiança degrada-se, mesmo que o discurso seja momentaneamente eficaz. É que se não for consistentemente, o impacto dos grandes discursos traz ou agrava a fadiga e os custos da reforma, e da futura reforma, e da seguinte e em diante. O OECD Survey on Drivers of Trust in Public Institutions 2024 mostra um retrato desolador: em média, a confiança nacional nas instituições políticas não chega a um terço dos inquiridos, está abaixo da média da OCDE na quase totalidade dos indicadores (excetua-se a confiança na polícia) e muitos cidadãos não acreditam que o governo use a melhor evidência disponível nas decisões.
Nas organizações, a falta de confiança traduz-se em microgestão, burocracia defensiva, desempenho medíocre, falta de atração e retenção de talentos e esgotamento de colaboradores. Na política, traduz-se em abstenção, populismo e indiferença cívica. Na vida pessoal, traduz-se em relações frágeis, superficiais e extenuantes.
Fala-se muito de confiança como se fosse empatia ou boa comunicação. Não é. Confiança constrói-se quando o comportamento é previsível, quando as regras valem mesmo, quando os erros têm correção e não encobrimento.
Por isso, à entrada de 2026, a pergunta mais honesta pode bem ser não o que queremos que aconteça, mas antes o que decidimos fazer. Ou seja, o que estamos dispostos a desejar de forma consequente, e a sustentar com escolhas reais, e com quem. Na verdade, um ano não muda por causa de votos. Muda por causa de escolhas ou decisões, ou melhor, de execuções.
O desafio não deve desanimar. A vida humana sempre foi reprodutora de paradoxos, faz parte. Ainda assim, nunca foi tão poderosa. Nunca tivemos tantas opções, e raramente estivemos tão dispersos. Vivemos num tempo submerso de estímulos, promessas e expectativas, sobretudo alheios.
Herbert A. Simonmostrou que decidimos sempre sob limitações (de tempo, de informação, de atenção) mas que, em contextos de excesso, a nossa racionalidade não falha por maldade, mas por saturação. Daí a necessidade e relevância de bons processos, de uma burocracia criteriosa, clara, sujeita a revisão e contraditório e subordinada à prática fundamentada.
A psicologia comportamental e a economia da decisão são claras neste ponto: quando tudo compete pela nossa atenção, acabamos por decidir pior. O excesso não nos liberta; fragmenta-nos. Também no plano coletivo, sociedades que acumulam metas vagas e desejos grandiosos tendem a falhar na execução concreta.
No mesmo século de Herbert Simon, a filosofia política voltou a sublinhar a importância do bem praticado. Hannah Arendtmostrou como o mal (i.e., a normalização da irresponsabilidade e a ética sem pensamento crítico) pode prosperar não por crueldade, mas por ausência de pensamento, por rotina, por conformismo. Pessoas educadas, até gentis, podem participar em sistemas injustos, ou mesmo desumanos, se deixarem de interrogar o que fazem.
Não uma lista moralista, nem um manifesto utópico, mas alguns critérios exigentes, sobretudo aplicáveis a quem nos governa, gere e lidera, a saber:
- Clareza e determinabilidade, em vez de obscuridade e ambiguidade.
- Essencialidade, em vez de superficialidade.
- Integridade, em vez de intensidade.
- Responsabilidade, em vez de culpabilização alheia, particularismo ou diluição institucional e alienação social.
- Tempo e pensamento críticos, em vez de vidas permanentemente apressadas e incentivos que valorizam a pressa e elevam o mérito formal.
- Confiança, mesmo quando o cinismo parece ser a atitude mais inteligente.
Nada disto é adquirido, neutro ou fácil, mesmo para quem está omnisciente deste sentido de presente e futuro. Todos estes desejos implicam dizer não, abdicar do aplauso imediato, aceitar consequências e vulnerabilidades, resistir ao sucesso socialmente ditado e imediato, corrigir erros, aceitar escrutínios, agir de forma previsível, e cumprir compromissos.
Concluindo, os desejos importam e são mais do que mera gentileza e lubrificante social. Todavia, desejar “mais” e “muito” é insuficiente e deve inquietar o desejo do “eu” e do “nós” que formulamos, elevando-o a um desejo de decisão, sobre aquilo que deve ser feito, individual e coletivamente, como e com quem, com base na evidência disponível. Mais do que um ato pessoal e social, desejar bem é um ato político e existencial.
O poder das palavras é superpoderoso. Porém, as palavras, por si só, não têm o poder de fazer acontecer ou organizar a nossa vida, as nossas escolhas ou o nosso tempo.
Os governos devem instituir burocracias de inovação, constelações de organizações públicas que criam, fazem, financiam, intermedeiam e regulam inovação, suportando a estabilidade ágil do Estado empreendedor.
Pela primeira vez podem trabalhar numa organização até cinco gerações, um facto que, apesar de já por si inédito, não deixa de acrescentar desafios e dificuldades organizacionais, e sociais, particularmente para quem lidera pessoas.
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O poder das palavras é superpoderoso. Porém, as palavras, por si só, não têm o poder de fazer acontecer ou organizar a nossa vida, as nossas escolhas ou o nosso tempo.
É de extrema importância munir as nossas cidades com tecnologia de vídeovigilância para a salvaguarda das pessoas e bens, mas Portugal está a ficar para trás face a outros países europeus.