Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
26 de maio de 2025 às 09:00

O piano restaurado

"A música dela tornou-se a transição entre o meu mundo profissional e a minha paz pessoal. Comecei a sentar-me na varanda, a descomprimir ao som do piano. Não sou o único - vi outros vizinhos a fazer o mesmo."

No Tribunal Judicial do Porto, numa manhã chuvosa de novembro que fazia eco nas pedras antigas do edifício, a Dr.ª Isabel Cardoso ajustou a sua beca preta e preparava-se para presidir a um caso que a faria questionar se Cupido não teria cartão de advogado. 

"Processo nº 445/2024, Tribunal Judicial do Porto, Juízo Local Cível," anunciou o escrivão. "Autor: Associação de Moradores do Bairro do Cedofeita. Ré: Helena Marques." 

A ré, uma mulher de quarenta anos com olhos expressivos e um ar determinado, sentava-se ereta na cadeira, vestindo um casaco de lã cor de vinho que realçava a sua postura decidida. Do outro lado, o presidente da associação, Sr. Joaquim Santos, remexia-se inquieto, claramente desconfortável com a situação. O advogado da associação, trajando a toga preta regulamentar, organizava os seus documentos metodicamente. 

"Srª. Helena Marques," começou a juíza, "está acusada de perturbação do sossego público e uso indevido do espaço público. Quer falar sobre os factos?" 

Helena levantou-se com dignidade.

"Quero. Tenho uma explicação que espero mereça a sua compreensão." 

A juíza disse intrigada. 

"Estou a ouvir." 

"Meritíssima, sou professora de música no Conservatório do Porto há quinze anos. Há seis meses, mudei-me para o Bairro do Cedofeita para cuidar da minha mãe, que estava doente. A casa onde cresci tem um pequeno jardim que dá para o largo, onde costumava tocar piano quando era criança." 

Helena fez uma pausa, claramente emocionada. 

"Quando a minha mãe partiu, em julho, encontrei-me numa depressão profunda. O piano estava desafinado, a casa silenciosa demais. Por impulso, comecei a tocar no jardim, de janelas abertas, todas as tardes às seis horas. Eram sempre as mesmas peças - Chopin, Debussy, um pouco de Fado tradicional que a minha mãe adorava." 

O Sr. Joaquim mexeu-se, visivelmente desconfortável. 

"E isto perturbava os vizinhos?" inquiriu a juíza. 

"Aparentemente, sim. Recebi várias queixas através da associação de moradores. Mas, Meritíssima, algo estranho começou a acontecer. Enquanto alguns se queixavam, outros começaram a aparecer no largo. Primeiro uma senhora idosa com uma cadeira, depois um casal jovem com um café, depois famílias inteiras." 

Helena sorriu ligeiramente. 

"Descobri que tinha criado, sem querer, um concerto diário improvisado. As pessoas começaram a trazer os seus lanches, os estudantes vinham estudar ao som do piano, as crianças brincavam enquanto eu tocava. O largo, que antes estava sempre vazio, encheu-se de vida." 

A juíza olhou para o presidente da associação. 

"Sr. Joaquim, confirma esta versão?" 

O homem pigarreou, claramente dividido. 

"É verdade, Meritíssima. Mas também é verdade que alguns moradores se queixaram do ruído, especialmente quando ela toca peças mais... intensas. E tecnicamente, não tem licença para espetáculos públicos." 

"Eu nunca pedi dinheiro, nunca organizei nada formalmente," defendeu-se Helena. "Apenas tocava para mim mesma, com as janelas abertas." 

Nesse momento, uma voz surgiu do fundo da sala. 

"Peço licença, Meritíssima." 

Um homem de cerca de cinquenta anos, elegantemente vestido mas com um ar cansado, aproximou-se. Era Miguel Ferreira, como se apresentou. 

"Sou médico no Hospital de São João e moro no prédio em frente ao da Srª. Helena. Vim por minha iniciativa testemunhar a favor da ré."

A juíza acenou para que continuasse.

"Meritíssima, trabalho turnos de doze horas e chegava a casa exausto, stressado, muitas vezes deprimido pelo que via no hospital. Quando a Helena começou a tocar, a minha rotina mudou completamente. Passei a marcar as minhas chegadas para as seis da tarde, para poder ouvir o concerto."

Miguel olhou diretamente para Helena, que corou ligeiramente.

"A música dela tornou-se a transição entre o meu mundo profissional e a minha paz pessoal. Comecei a sentar-me na varanda, a descomprimir ao som do piano. Não sou o único - vi outros vizinhos a fazer o mesmo."

"E nunca se queixou do ruído?" perguntou a juíza.

"Queixar-me? Meritíssima, cheguei a comprar um piano usado para tentar aprender, inspirado pelo que ouvia. Foi um desastre total," riu-se. "Mas a intenção estava lá." 

Helena olhou para ele com surpresa e interesse genuíno.

"Há mais alguma coisa que queira acrescentar, Dr. Miguel?" inquiriu a juíza, claramente divertida com a situação. 

"Há, Meritíssima. Há três semanas, decidi fazer algo que nunca tinha feito. Comprei flores e deixei-as no jardim da Helena, com um bilhete a agradecer a música. No dia seguinte, ela tocou 'Clair de Lune' - a minha peça preferida, que eu tinha mencionado no bilhete." 

O silêncio na sala era palpável. A juíza recostou-se na cadeira, observando alternadamente Helena e Miguel. 

"Srª. Helena, conhecia o Dr. Miguel antes deste processo?" 

"Não pessoalmente, Meritíssima. Mas comecei a reparar numa figura regular na varanda em frente. Quando recebi as flores, fiquei... tocada. E sim, no dia seguinte toquei deliberadamente a peça que ele tinha pedido." 

A juíza consultou os seus apontamentos, claramente perante um dilema interessante. 

"Sr. Joaquim, quantas queixas formais recebeu?" 

"Sete, Meritíssima. Mas..." hesitou, "também recebemos doze cartas de apoio à Srª. Helena, pedindo para não a incomodarmos." 

"E a senhora, Srª. Helena, estaria disposta a encontrar um compromisso?" 

"Claro, Meritíssima. Posso reduzir para três vezes por semana, ou tocar apenas ao fim de semana, ou..." 

"Com licença," interrompeu Miguel. "Posso sugerir uma solução?" 

A juíza acenou. 

"E se formalizássemos isto? Eu conheço alguém na Câmara Municipal. Podemos requerer uma licença para concertos ao ar livre, fazer disto algo oficial mas pequeno. O largo é público, há precedentes para atividades culturais comunitárias." 

Helena olhou para ele com admiração crescente. 

"Isso seria... incrível. Mas não quero incomodar ninguém." 

"Então que tal isto," propôs a juíza, claramente inspirada. "Srª. Helena, aceita cumprir trinta horas de serviço comunitário a dar aulas de música gratuitas a crianças carenciadas?" 

"Aceito, Meritíssima." 

"E compromete-se a requerer formalmente a licença para os concertos, limitando-os a três vezes por semana e terminando sempre antes das sete da tarde?" 

"Comprometo-me." 

"Sr. Joaquim, a associação de moradores compromete-se a apoiar este pedido de licença?" 

O homem olhou à volta da sala, vendo várias pessoas a acenar afirmativamente. 

"Comprometemo-nos, Meritíssima." 

"Excelente. Processo arquivado mediante o cumprimento destas condições." A juíza fez uma pausa. "E Dr. Miguel, já que está tão interessado na música, talvez possa ajudar a Srª. Helena com os trâmites burocráticos para a licença?" 

Miguel sorriu abertamente. 

"Seria um prazer, Meritíssima." 

Seis meses depois, o Largo do Cedofeita tinha-se tornado num pequeno anfiteatro improvisado três vezes por semana. Helena tocava para uma audiência regular de cerca de vinte pessoas, incluindo um médico que tinha finalmente conseguido tocar "Für Elise" sem fazer ninguém fugir. 

E nas noites de sexta-feira, depois dos concertos oficiais, Helena e Miguel tocavam duetos no piano dela - ele ainda desafinado, ela paciente e apaixonada não só pela música, mas pelo homem que tinha transformado as suas notas de tristeza em melodias de esperança. 

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