Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
02 de junho de 2025 às 07:00

O legado de amor

Capa da Sábado Edição 16 a 22 de setembro
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Edição de 16 a 22 de setembro

"'Em março de 1992, descobri que estava grávida. O António ficou radiante - queria casar-se imediatamente, começar uma família. Mas duas semanas depois, recebeu a proposta que mudaria as nossas vidas: um lugar como correspondente de guerra nos Balcãs, para um jornal internacional. Era a oportunidade da carreira dele.'"

No cartório notarial do Dr. Henrique Sampaio, situado numa rua tranquila de Santos-o-Velho em Lisboa, a luz suave da tarde de outubro criava uma atmosfera solene mas acolhedora. O notário, um homem de sessenta anos com décadas de experiência em revelações familiares, preparou-se para uma leitura testamentária que suspeitava ser mais do que uma simples partilha de bens. 

"Estamos aqui reunidos," começou o Dr. Sampaio, "para a abertura e leitura do testamento de Maria da Conceição Silva, falecida no passado mês de agosto." 

David Silva, um homem de trinta e dois anos com olhos castanhos expressivos e um ar de quem carregava perguntas sem resposta, sentou-se numa das cadeiras de couro castanho em frente à secretária do notário. Ao seu lado, Helena Carvalho, a melhor amiga da sua mãe há mais de quarenta anos, remexia nervosamente uma pasta de documentos. Helena, uma mulher elegante de sessenta anos, tinha sido nomeada testamenteira - uma escolha que David na altura achou estranha, mas que agora começava a fazer sentido. 

"Antes de procedermos à leitura," continuou o notário, "devo informar que a testamenteira, Srª. Helena Carvalho, solicitou a presença de mais uma pessoa, conforme instruções específicas deixadas pela falecida." 

David franziu o sobrolho, olhando para Helena. 

"Que pessoa? Não percebo..." 

Helena respirou fundo, os olhos marejados. 

"David, a tua mãe pediu-me para fazer algo muito difícil. Pediu-me para encontrar alguém... alguém que pensavas estar morto." 

Nesse momento, ouviu-se uma batida suave na porta. O notário acenou e permitiu a entrada de um homem de cerca de cinquenta e seis anos, cabelo grisalho, olhos castanhos idênticos aos de David, e uma expressão entre nervosa e esperançosa. 

"António Marques," apresentou Helena, a voz embargada. "David... este é o teu pai." 

O silêncio no cartório foi absoluto. David ficou lívido, as mãos agarradas aos braços da cadeira. 

"Isto... isto não pode ser. O meu pai morreu quando eu era bebé. A minha mãe disse-me..." 

"A tua mãe mentiu," disse Helena suavemente, "mas por amor. Por um amor tão profundo que a destruiu durante trinta anos." 

O Dr. Sampaio pigarreou delicadamente. 

"Talvez seja melhor procedermos à leitura do testamento. Creio que esclarecerá muitas questões." 

António permanecera em pé junto à porta, visivelmente emocionado, sem saber se deveria aproximar-se ou manter a distância. 

"Sr. António," disse o notário gentilmente, "por favor, sente-se. A Srª. Maria deixou instruções específicas para que estivesse presente." 

O notário abriu o envelope lacrado e começou a ler: 

"'Eu, Maria da Conceição Silva, no pleno uso das minhas faculdades mentais, deixo este testamento não apenas como disposição dos meus bens, mas como a história de amor mais verdadeira e mais trágica da minha vida.'" 

David olhou alternadamente para Helena e para o homem que afirmavam ser seu pai. 

"'David, meu filho querido, se estás a ouvir isto, é porque finalmente parti e chegou o momento de conheceres a verdade sobre o teu pai - e sobre o maior erro da minha vida.'" 

A voz do notário continuou, pausada e respeitosa: 

"'Conheci o António Marques em setembro de 1991, numa manifestação estudantil contra as propinas universitárias. Eu era estudante de História na Universidade de Lisboa, ele jornalista freelancer de vinte e dois anos, cobrindo protestos estudantis para um jornal alternativo. Quando ele se aproximou para me entrevistar, foi como se o mundo parasse.'" 

António fechou os olhos, claramente recordando-se daquele dia. 

"'Durante seis meses, fomos inseparáveis. Vivíamos numa pequena casa arrendada em Alfama, sonhávamos em viajar pelo mundo, ele como jornalista, eu como investigadora histórica. Éramos jovens, apaixonados, e ingenuamente convencidos de que o amor conquista tudo.'" 

David ouvia em silêncio absoluto, absorvendo cada palavra. 

"'Em março de 1992, descobri que estava grávida. O António ficou radiante - queria casar-se imediatamente, começar uma família. Mas duas semanas depois, recebeu a proposta que mudaria as nossas vidas: um lugar como correspondente de guerra nos Balcãs, para um jornal internacional. Era a oportunidade da carreira dele.'" 

Helena secou uma lágrima discreta. 

"'Discutimos durante semanas. Eu estava grávida, assustada, e a ideia de ele partir para uma zona de guerra aterrorizava-me. O António dizia que recusaria a proposta, que ficaria comigo e contigo. Mas eu via nos olhos dele o quanto desejava aquela oportunidade. E cometi o maior erro da minha vida.'" 

O notário fez uma pausa, olhando para os presentes antes de continuar. 

"'Uma manhã, enquanto o António estava numa reunião com o editor, fiz as malas e parti. Deixei apenas um bilhete a dizer que não conseguia lidar com a incerteza, que precisava de tempo para pensar. Fui para casa dos meus pais no Porto e nunca mais lhe falei.'"

António abriu os olhos, olhando diretamente para David.

"Procurei-a durante meses," disse ele, a voz rouca de emoção. "Percorri todos os sítios onde tínhamos ido juntos, contactei todos os amigos em comum. Mas ela tinha desaparecido completamente."

"'António,'" continuou o notário, lendo as palavras de Maria, "'sei que me procuraste. A Helena contou-me anos mais tarde. Mas eu estava convencida de que tinhas partido para a guerra e que me tinhas esquecido. Durante anos acreditei que tinhas morrido naqueles conflitos, porque nunca mais ouvi falar de ti.'" 

Helena interveio suavemente: 

"A Maria pediu-me para nunca te contactar, António. Mas também nunca me proibiu de saber de ti. Ao longo dos anos, segui discretamente a tua carreira. Sei que te tornaste num jornalista de investigação respeitado, que te casaste e depois te divorciaste, que nunca tiveste filhos..."

António olhou para ela com surpresa. 

"E você nunca me disse que eu tinha um filho?"

"Ela fez-me prometer que só o faria depois da morte dela. Dizia que não tinha direito de destruir a vida que tinhas construído."

O notário continuou a leitura: 

"'David, quando nasceste, contei-te que o teu pai tinha morrido porque era mais fácil do que explicar que eu o tinha afastado por cobardia e orgulho. À medida que crescias e te tornaste no homem maravilhoso que és, apercebi-me de que tinhas tanto do António - a mesma curiosidade pelo mundo, a mesma paixão por descobrir a verdade, os mesmos olhos expressivos.'" 

David olhou involuntariamente para António, reconhecendo semelhanças que sempre tinha atribuído ao acaso. 

"'António,'" continuou a leitura, "'se estiveres a ouvir isto, significa que a Helena conseguiu encontrar-te. Peço-te perdão por todos estes anos perdidos. Peço-te perdão por te ter privado de conhecer o teu filho e por ter privado o David de conhecer o pai extraordinário que sei que terias sido.'" 

O silêncio no cartório era palpável. Lágrimas corriam pelos rostos de todos os presentes. 

"'Deixo todos os meus bens ao David, mas com uma condição: que uma parte seja usada para ele e o António se conhecerem verdadeiramente. Talvez uma viagem juntos - sempre sonhámos, António, em mostrar o mundo ao nosso filho.'"

O notário fez uma pausa antes da parte final: 

"'O meu último desejo é que não desperdicem mais tempo. Eu desperdicei trinta anos por medo e orgulho. Vocês os dois merecem conhecer-se, merecem ser pai e filho, merecem recuperar todo o tempo que eu, egoisticamente, vos roubei. David, o teu pai é um homem bom. António, o teu filho é a melhor parte de nós os dois.'"

Quando o notário terminou, o silêncio prolongou-se por longos momentos. Finalmente, David levantou-se lentamente e aproximou-se de António. 

"Então... és mesmo o meu pai?" 

António assentiu, os olhos cheios de lágrimas. 

"Sou. E lamento tanto todos estes anos perdidos." 

"Não foram perdidos," disse David suavemente. "Foram guardados. E agora podemos começar a recuperá-los." 

Os dois homens abraçaram-se pela primeira vez em trinta e dois anos, enquanto Helena e o notário assistiam, comovidos, ao reencontro que Maria tinha orquestrado mesmo depois da morte. 

Seis meses depois, David e António regressaram de uma viagem ao Balcãs - não como correspondente de guerra e acompanhante, mas como pai e filho a descobrir juntos uma região que tinha separado as suas vidas décadas antes. António tinha finalmente as histórias que sempre quis contar, e David tinha finalmente o pai que sempre pensou ter perdido. 

E no túmulo de Maria, deixaram duas fotografias: uma do dia em que ela e António se conheceram, e outra dos dois homens juntos numa ponte em Sarajevo, provando que às vezes o amor mais verdadeiro é aquele que consegue curar as feridas que ele próprio criou, mesmo quando parece demasiado tarde para qualquer tipo de cura. 

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