Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
10 de fevereiro de 2025 às 07:23

O Efeito Dominó do Amor

Capa da Sábado Edição 5 a 11 de agosto
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Edição de 5 a 11 de agosto

"Eu caí por último, Senhora Doutora Juíza", respondeu Catarina, com um maravilhoso sorriso brincando nos seus lábios. "Mas confesso que, quando o Eduardo se atirou à água para nos ajudar, pensei que talvez valesse a pena ter ficado encharcada." 

No imponente Palácio da Justiça de Lisboa, onde os painéis cerâmicos de Jorge Barradas, Júlio Resende e Querubim Lapa contavam silenciosamente histórias de justiça e virtude nas paredes, uma história de amor peculiar estava prestes a ser julgada naquela manhã de junho de 2024. 

Eduardo Silveira passou pelo pórtico de entrada, detendo-se momentaneamente para admirar as representações da "Justiça" e da "Balança" de Barradas. O seu advogado tinha-lhe dito para chegar cedo, e agora encontrava-se sozinho no átrio majestoso, onde cada painel cerâmico parecia contar uma história diferente sobre a busca da verdade e da justiça. Contemplou a obra de Querubim Lapa, "o Direito que possibilita a Paz entre os Homens", perguntando-se se aqueles símbolos ancestrais teriam espaço para julgar os caprichos do coração. 

Os seus pensamentos foram interrompidos pela chegada de Catarina Fonseca. Ela usava um conjunto verde-água que fazia lembrar as águas do Tejo num dia de verão, e o seu cabelo louro estava mais luzidio que nunca. Por um momento, os seus olhares encontraram-se, tal como naquelas manhãs de pandemia junto ao rio, e ambos sorriram, apesar da formalidade do momento. 

Pouco depois chegaram as cinco autoras do processo - Carla Santos, Patrícia Lima, Sandra Correia, Ana Matos e Beatriz Ferreira. Apesar da seriedade da ocasião, havia uma energia contida nas suas expressões que sugeria mais divertimento do que ressentimento. 

O grupo subiu nos históricos elevadores Schindler até ao piso da sala de audiências. O sol da manhã filtrava-se através das janelas altas, iluminando os painéis que retratavam a "Sapiência" e a "Verdade" de Júlio Resende. O mobiliário fixo, projetado por José Luís Amorim, conferia à sala uma dignidade intemporal que contrastava com a natureza quase cómica do processo em questão. 

A Meritíssima Juíza Doutora Helena Campos entrou na sala, os seus passos ecoando no pavimento nobre. Era conhecida pela sua capacidade de equilibrar a letra fria da lei com a sabedoria prática da vida, e algo no seu olhar sugeria que este caso iria exigir ambas as qualidades.

"Processo número 1971/21.8T8LSB", anunciou ela. "Ação cível movida por Carla Santos, Patrícia Lima, Sandra Correia, Ana Matos e Beatriz Ferreira contra Eduardo Silveira e Catarina Fonseca, por danos materiais e morais resultantes do incidente de 15 de março de 2021, junto ao rio Tejo." 

Por baixo do painel da "Temperança", as cinco autoras aguardavam com expressões que oscilavam entre a seriedade formal exigida pelo local e um divertimento mal contido. A ironia de estarem sentadas precisamente sob aquela virtude não passou despercebida a ninguém. 

"Senhor Eduardo Silveira", chamou a juíza, "pode explicar ao tribunal como é que uma simples caminhada resultou em seis pessoas a caírem ao rio?" 

Eduardo endireitou a gravata e levantou-se. O seu fato azul-escuro estava ligeiramente amarrotado, como se tivesse passado a noite em claro, ensaiando o que iria dizer. 

"Senhora Doutora Juíza", começou ele, a voz mais firme do que esperava, "para explicar o que aconteceu naquele dia, preciso de recuar três anos, ao período mais solitário do confinamento. O meu divórcio ainda estava fresco, e as caminhadas junto ao Tejo eram o meu único escape permitido. Foi numa dessas manhãs que vi a Catarina pela primeira vez." 

A juíza fez um gesto para que continuasse, enquanto se ajeitava na cadeira como quem espera por uma boa história. 

"Durante três meses, vi-a todas as manhãs. Sempre à mesma hora, sempre com as mesmas amigas", apontou para as autoras, "todas de máscara e mantendo a distância de segurança entre si. Eu caminhava em sentido contrário, e durante segundos os nossos olhares cruzavam-se por cima das máscaras. Três meses de olhares, Senhora Doutora Juíza. Sabe o que é ver apenas os olhos de alguém durante tanto tempo? Acabamos por aprender a ler uma vida inteira neles." 

Catarina corou visivelmente, e as suas amigas trocaram sorrisos cúmplices. 

"No dia 15 de março de 2021", prosseguiu António, "decidi que tinha de fazer algo. Estava farto de ser apenas mais um desconhecido que passava em sentido contrário. Tinha ensaiado mil vezes o que ia dizer, mas quando a vi aproximar-se com as amigas, todo o discurso preparado desapareceu. Entrei em pânico e fiz a única coisa que me ocorreu: comecei a cantar "May Way" do Sinatra, com todas as minhas forças, ali mesmo, no passeio ribeirinho." 

Um murmúrio divertido percorreu a sala, que a juíza permitiu continuar por alguns segundos antes de fazer sinal para que António prosseguisse. 

"Confesso que não sou o melhor cantor", admitiu ele, passando a mão pelo cabelo num gesto nervoso. "A Catarina parou para me observar, claramente surpreendida. As amigas dela também pararam, formando uma fila indiana perfeita junto à margem. O problema é que uma senhora idosa que passeava o seu cão também parou para ver o espetáculo, provocando um pequeno engarrafamento pedonal. Foi nesse momento que um ciclista distraído tentou desviar-se..." 

"E foi assim que eu, involuntariamente, empurrei a Carla", interveio Catarina, após a juíza lhe conceder a palavra. "Que empurrou a Patrícia, que empurrou a Sandra, que empurrou a Ana, que empurrou a Beatriz... Foi como ver um conjunto de dominós em câmara lenta, só que os dominós eram as minhas amigas, e em vez de caírem no chão, caíram no Tejo." 

"E a senhora?", inquiriu a juíza. 

"Eu caí por último, Senhora Doutora Juíza", respondeu Catarina, com um maravilhoso sorriso brincando nos seus lábios. "Mas confesso que, quando o Eduardo se atirou à água para nos ajudar, pensei que talvez valesse a pena ter ficado encharcada." 

Carla Santos, a primeira a cair, solicitou para prestar declarações: "Senhora Doutora Juíza, é verdade que perdemos telemóveis, carteiras, e que apanhámos uma valente constipação. Os nossos aparelhos eletrónicos ficaram irremediavelmente danificados, e algumas peças de roupa nunca mais foram as mesmas. Mas também é verdade que, depois do susto inicial, esta história tornou-se na melhor coisa que aconteceu durante o confinamento." 

"Como assim?", perguntou a juíza, genuinamente interessada. 

"Bem", continuou Carla, "depois de nos secarmos e aquecermos num café ali perto, o António insistiu em pagar-nos o pequeno-almoço. Foi aí que descobrimos que eles tinham imensos amigos em comum. Descobrimos também que ambos adoravam poesia de Fernando Pessoa, que partilhavam o mesmo café preferido em Belém, e que tinham estado nos mesmos lugares dezenas de vezes sem nunca se encontrarem. Era como se o universo estivesse à espera do momento certo - ou de um empurrãozinho nosso - para os juntar."

A juíza observou a sala em silêncio por alguns momentos. Por cima dela, o painel da "Serenidade" parecia aprovar a sua deliberação pausada. 

"Este tribunal", começou ela, "que há décadas julga sob os símbolos da Justiça e da Prudência que nos rodeiam, tem hoje uma tarefa invulgar. É inegável que houve danos materiais que devem ser ressarcidos. Portanto, condeno os réus a pagarem o valor dos bens danificados, conforme discriminado nos autos." 

Fez uma pausa e continuou, com um brilho nos olhos: "No entanto, quanto aos danos morais reclamados, considero que foram amplamente compensados pela história extraordinária que nasceu deste incidente. Como já dizia o poeta, 'o amor é que é essencial', e às vezes é preciso um mergulho inesperado para o encontrar." 

As autoras, através do seu mandatário, apresentaram um requerimento final: "Senhora Doutora Juíza, em alternativa à indemnização por danos morais, as nossas constituintes propõem que os réus sejam condenados a organizarem o seu casamento junto ao rio Tejo, com direito a cinco damas de honor... devidamente afastadas da margem, claro." 

Eduardo e Catarina trocaram um olhar cúmplice, enquanto a juíza considerava o pedido. 

"Face ao requerimento apresentado e não havendo oposição dos réus", concluiu a juíza, com um sorriso discreto, "assim se determina. Está encerrada a audiência." 

E assim, sob os painéis que há mais de cinquenta anos testemunhavam a aplicação da justiça naquele Palácio, terminou o caso do efeito dominó mais romântico da história judicial portuguesa. Quando o casal saiu pela porta principal, os olhos de Eduardo detiveram-se uma última vez no painel "o Direito que possibilita a Paz entre os Homens e as suas glórias". Sorriu, pensando que talvez devessem acrescentar "e o Amor" ao título. 

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