Era o tipo de caso que fazia os funcionários judiciais suspirarem de exasperação - um processo que se arrastava há meses, repleto de acusações mútuas, inventários intermináveis e uma amargura que parecia impregnar até as paredes da Avenida da Liberdade.
No Tribunal de Portalegre, onde os anjos custódios do alto-relevo em granito de Euclides Vaz guardavam "As Armas de Portalegre" na fachada principal, decorria mais uma sessão do processo de divórcio sem consentimento entre Manuel Correia e Sofia Mendes. Era o tipo de caso que fazia os funcionários judiciais suspirarem de exasperação - um processo que se arrastava há meses, repleto de acusações mútuas, inventários intermináveis e uma amargura que parecia impregnar até as paredes da Avenida da Liberdade.
A Dra. Mariana Santos, advogada do requerente, organizava metodicamente os seus documentos na mesa à direita. O seu fato preto impecável e o cabelo ruivo preso num coque austero contrastavam com a suavidade dos seus olhos verdes, que ocasionalmente se desviavam para a mesa oposta, onde o Dr. Francisco Vaz, mandatário da requerida, consultava o seu tablet com uma concentração que ela começava a conhecer bem demais.
O sol da manhã, filtrado através das janelas altas, iluminava a monumental tapeçaria de João Tavares que retratava "A Batalha de Montijo", criando um cenário quase irónico para o que estava prestes a acontecer. Sob os seus mais de sete metros de extensão, os clientes de ambos os advogados lançavam-se olhares assassinos.
A Meritíssima Juíza Doutora Cristina Alves entrou na sala, e o seu olhar experiente já denunciava o cansaço de mais uma sessão deste processo particular. Observando a cena sob a imponente tapeçaria, ela ajustou os óculos e começou: "Continuação da audiência de discussão e julgamento do processo 2024/789.4T8LSB."
Manuel Correia, empresário de meia-idade com um temperamento explosivo, levantou-se imediatamente: "Senhora Doutora Juíza, esta mulher..."
"Senhor Correia," interrompeu a juíza, "aqui só fala quando lhe for dada a palavra. Tem advogada constituída. Dra. Mariana Santos, faça favor."
Mariana levantou-se graciosamente, mas antes que pudesse falar, o seu cliente voltou a explodir: "Doutora, mostre-lhe as fotos! Aquelas que provam que ela..."
"Senhor Correia," a voz de Mariana era suave mas firme, "permita-me conduzir a sua defesa como combinado."
Do outro lado da sala, Francisco observava a colega com uma admiração mal disfarçada. Nos últimos seis meses deste processo infernal, tinha aprendido a respeitar a forma como ela conseguia acalmar aquele cliente impossível. Ele próprio tinha as suas dificuldades com Sofia Mendes, que naquele momento folheava furiosamente o telemóvel, provavelmente à procura de mais "provas" contra o ex-marido.
"Meritíssima," começou Mariana, "requeremos a junção aos autos de nova documentação que comprova a ocultação de bens por parte da requerida..."
"Mentira!" gritou Sofia, levantando-se de rompante. "Esse canalha é que..."
"Dra. Sofia," interveio Francisco, tocando suavemente no braço da sua cliente, "por favor."
Os seus olhos encontraram-se com os de Mariana por um momento, e ambos partilharam um olhar de compreensão mútua. Como é que tinham chegado a este ponto? Há seis meses, quando o processo começou, mal se conheciam. Agora, depois de inúmeras sessões, requerimentos e contra-requerimentos, tinham desenvolvido uma espécie de dança - ele sabia exatamente quando ela ia citar jurisprudência do Supremo, ela conseguia prever quando ele ia invocar algum acórdão da Relação.
A sessão continuou com a sua habitual dose de acusações e contra-acusações. Sob a majestosa tapeçaria que retratava uma batalha histórica, os dois advogados apresentavam os seus argumentos com profissionalismo, enquanto os seus clientes faziam o possível para transformar cada pequeno detalhe numa batalha épica.
Durante uma pausa nos trabalhos, enquanto os clientes tinham saído para fumar, Mariana e Francisco encontraram-se junto à máquina de café no corredor, sob o olhar pétreo dos anjos custódios que guardavam a entrada desde 1955.
"Café curto, sem açúcar," disse ele, estendendo-lhe um copo antes que ela pudesse pedir.
"Como sabia?"
"Seis meses a ver-te beber café nas pausas. Sou advogado, observar faz parte do trabalho," respondeu ele com um sorriso discreto.
"Tal como notar que sempre citas Antunes Varela antes de apresentares um argumento decisivo?" retorquiu ela, corando levemente.
O momento foi interrompido pelo regresso tempestuoso dos seus clientes. De volta à sala de audiências, sob o olhar eterno da tapeçaria que testemunhava silenciosamente outra batalha, o processo continuou o seu curso turbulento.
Próximo do final da sessão, quando Manuel Correia começou mais uma das suas tiradas contra a ex-mulher, Mariana deixou cair acidentalmente a sua pasta. Francisco, num reflexo, inclinou-se para ajudar a apanhar os papéis espalhados. As suas mãos tocaram-se por um momento sobre um documento que citava o artigo 1781º do Código Civil, e ambos sorriram, conscientes da ironia - o artigo que listava os fundamentos do divórcio sem consentimento estava a uni-los.
A Meritíssima, que não perdia um detalhe do que se passava na sua sala, observou a cena com interesse. Depois de mais de trinta anos de magistratura, tinha desenvolvido um sexto sentido para estas coisas.
"Face ao adiantado da hora," declarou ela, "a continuação da audiência fica agendada para daqui a duas semanas. Dra. Mariana Santos e Dr. Francisco Vaz, aguardo os vossos articulados de resposta até lá."
Enquanto os clientes saíam da sala, ainda trocando acusações, os dois advogados organizavam os seus papéis, roubando olhares um ao outro.
"Dr. Francisco," chamou Mariana, quando já estavam no corredor, "sobre aquele acórdão que citou... por acaso teria uma cópia?"
"Claro," respondeu ele, "posso enviar-lhe. Ou melhor ainda, podíamos discuti-lo com mais calma. Conhece o café junto ao jardim?"
Por cima deles, os anjos custódios do alto-relevo pareciam sorrir com aprovação. Afinal, às vezes o amor nascia nos lugares mais improváveis - mesmo num processo de divórcio sem consentimento, entre artigos do Código Civil e jurisprudência do Supremo.
E dizem que, meses depois, quando o processo finalmente terminou (com um acordo surpreendentemente amigável), a Meritíssima Juíza Doutora Cristina Alves recebeu um convite de casamento. No cartão, delicadamente gravado, podia ler-se uma citação do artigo 1577º do Código Civil, aquele que define o casamento como um contrato entre duas pessoas que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida.
Os noivos? Uma advogada especialista em direito da família e um colega que aprendeu que, às vezes, os melhores argumentos não estão nos livros de direito, mas nos olhares trocados durante uma audiência de julgamento.
Amor Sob Lei: Divórcios, Documentos e Cupidos de Toga
José olhava para o álbum com expressão nostálgica. "A Patrícia perguntou-me no outro dia se não me arrependo de ter estragado a família. E eu não soube o que responder."
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."
A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.
"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.
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