Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
07 de abril de 2025 às 07:00

Crash – O acidente

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Edição de 5 a 11 de agosto

O processo em questão — uma regulação do exercício das responsabilidades parentais especialmente amarga — arrastava-se há quase dois anos, com adiamentos sucessivos e relatórios psicológicos que pintavam um quadro desolador de dois pais incapazes de colocar o bem-estar do filho acima do seu ressentimento mútuo. 

No Tribunal de Família e Menores de Aveiro, um edifício de linhas contemporâneas onde a madeira clara e o vidro criavam uma atmosfera menos intimidante que a dos tribunais tradicionais, a Dr.ª Clara Baptista consultava o relógio pela terceira vez em cinco minutos. A audiência devia ter começado há meia hora, mas nem os pais nem o advogado da mãe tinham aparecido. 

Como Magistrada do Ministério Público há quinze anos, Clara estava habituada aos atrasos e contratempos do sistema judicial, mas hoje a sua paciência estava particularmente tensa. O processo em questão — uma regulação do exercício das responsabilidades parentais especialmente amarga — arrastava-se há quase dois anos, com adiamentos sucessivos e relatórios psicológicos que pintavam um quadro desolador de dois pais incapazes de colocar o bem-estar do filho acima do seu ressentimento mútuo. 

A porta da sala abriu-se abruptamente, e Clara levantou o olhar, esperando finalmente iniciar a sessão. Mas era apenas o oficial de justiça, Sr. Pedro com a sua expressão habitualmente circunspecta. 

"Dra. Clara, recebi notícia de que houve um acidente na A25. Pelo que sei, tanto o Dr. Ricardo Tavares como a viatura onde vinham o Sr. Henrique Mendes e a Dra. Rita Almeida ficaram retidos." 

Clara suspirou profundamente. Mais um adiamento, mais semanas de espera, mais tempo em que o pequeno Tomás, de apenas seis anos, continuaria preso no fogo cruzado entre os pais. 

"Alguma informação sobre quando poderão chegar?" 

"O Dr. Ricardo conseguiu ligar. Disse que estão parados há mais de uma hora e sem previsão de quando a estrada será desobstruída." 

"Compreendo. Vamos ter de reagendar. Por favor, informe a Meritíssima e—" 

Foi interrompida pelo som do seu telemóvel. Uma mensagem do Dr. Ricardo Tavares, advogado de Rita Almeida, a mãe do menor: "Estamos no mesmo carro. Acidente aparatoso à nossa frente. Todos bem, mas retidos. Porém, acho que podemos aproveitar o tempo. Falamos depois." 

Clara olhou para a mensagem, confusa. O que queria ele dizer com "estamos no mesmo carro"? E quem eram "todos"? 

A resposta chegou duas horas depois, quando finalmente os três entraram na sala de audiências: Ricardo Tavares, representante da mãe; Henrique Mendes, o pai; e Rita Almeida, a mãe. Os três com expressões que Clara não conseguia decifrar — algo entre o embaraço e uma estranha tranquilidade. 

"Pedimos desculpa pelo atraso, Dra. Clara," começou Ricardo. "Mas talvez tenha sido a melhor coisa que podia ter acontecido." 

"Como assim?" perguntou Clara, intrigada. 

Foi Henrique quem respondeu, surpreendentemente. "Ficámos presos na estrada, os três, durante quase três horas. Eu ia buscar o Tomás à escola da Rita para o meu fim de semana, e o Dr. Ricardo ofereceu-se para me dar boleia, já que íamos para a mesma audiência." 

"Foi uma coincidência oportuna," continuou Rita, com a voz mais suave do que Clara alguma vez a tinha ouvido usar quando se referia ao ex-marido. "Pela primeira vez em dois anos, fomos obrigados a estar no mesmo espaço sem poder fugir um do outro." 

Ricardo sorriu, parecendo quase tão surpreendido quanto Clara. "No início, o ambiente no carro era... tenso, para dizer o mínimo. Mas depois de uma hora parados, com o combustível a acabar e sem ar condicionado, as defesas começaram a cair." 

"Mostrei ao Henrique as fotografias da última festa de anos do Tomás," explicou Rita, com um olhar hesitante para o ex-marido. "Aquelas em que ele sopra as velas com aquela expressão tão parecida com a do pai quando está concentrado." 

"E eu mostrei-lhe o vídeo dele a andar pela primeira vez de bicicleta sem rodinhas," acrescentou Henrique, com um orgulho paternal evidente. "O miúdo tem o mesmo medo de falhar que a mãe, mas a mesma teimosia também." 

Clara observava a cena com espanto crescente. Estes eram os mesmos pais que, há um mês, tinham sido incapazes de concordar sobre qual a escola primária que o filho deveria frequentar? Os mesmos que trocavam e-mails cheios de acusações através dos advogados em vez de falarem diretamente? 

"Dr.ª Clara," interveio Ricardo, assumindo novamente o seu papel profissional, "na sequência deste... incidente fortuito, os meus clientes — quero dizer, o Sr. Henrique e a Sr.ª Rita — gostariam de solicitar uma suspensão temporária deste processo." 

"Uma suspensão?" repetiu Clara, surpresa. "Com que finalidade?" 

Os dois entreolharam-se, e foi Rita quem respondeu: 

"Queremos tentar resolver isto de forma amigável, através de mediação familiar. Percebemos hoje que... que talvez ainda haja algum terreno comum." 

Clara conteve um sorriso. Em quinze anos de magistratura tinha visto muitas coisas, mas poucos milagres tão improváveis quanto este. 

"Compreendo," disse ela, mantendo o tom profissional. "Vou informar a Meritíssima do vosso pedido. Tenho a certeza de que verá esta decisão com bons olhos." 

Quando os três saíram da sala, Clara permitiu-se finalmente sorrir abertamente. Por vezes, o sistema judicial, com todas as suas falhas e lentidões, precisava de um empurrãozinho do destino. 

Seis meses depois, Clara estava a terminar um parecer quando bateram à porta do seu gabinete. Para sua surpresa, era Ricardo Tavares, o advogado, com um papel na mão. 

"Dr. Ricardo, que surpresa. Entre, por favor." 

O advogado parecia diferente — mais leve, de alguma forma, como se tivesse deixado cair um peso invisível que antes carregava. 

"Desculpe aparecer sem marcação, Dr.ª Clara. Mas queria entregar-lhe isto pessoalmente," disse ele, estendendo o requerimento. "É a formalização da desistência do processo de regulação. Os meus clientes chegaram a um acordo completo, que foi homologado na semana passada." 

Clara pegou no documento, genuinamente satisfeita. "Isto é uma excelente notícia. Confesso que tinha esperanças, mas sabe como estes processos podem ser imprevisíveis." 

"Na verdade," continuou Ricardo, hesitante, "há algo mais que pensei que gostaria de saber. Não é oficial, claro, e não faz parte dos autos, mas..." 

Tirou do bolso do casaco uma fotografia e estendeu-a a Clara. A imagem mostrava Henrique, Rita e o pequeno Tomás num parque, todos sorridentes, com um grande cão labrador ao lado. 

"Começaram a encontrar-se regularmente para atividades com o Tomás," explicou Ricardo. "Primeiro só para as entregas e recolhas, depois para ocasiões especiais, e agora... bem, parece que descobriram que, apesar de não funcionarem como casal, ainda podem ser uma espécie de família." 

Clara observou a fotografia, notando como o menino parecia genuinamente feliz, sem o olhar ansioso que tinha nas fotografias anexas aos relatórios psicológicos. 

"E o cão?" perguntou ela, apontando para o labrador. 

Ricardo riu-se. "Essa é a parte mais curiosa. Chamam-lhe 'Crash', em homenagem ao acidente e engarrafamento que os reconciliou. É a primeira propriedade conjunta que têm desde o divórcio — fica uma semana com cada um, assim como o Tomás. Foi ideia dele, na verdade." 

Clara devolveu a fotografia, sentindo uma onda de satisfação profissional que raramente experimentava nos casos de família. "Sabe, Dr. Ricardo, em quinze anos de Ministério Público, aprendi que às vezes os processos mais importantes são os que acabam por não chegar a julgamento." 

"Concordo plenamente," assentiu ele. "Ah, e há mais uma coisa." Hesitou novamente, parecendo subitamente menos seguro. "Perguntava-me se... se por acaso aceitaria jantar comigo qualquer dia destes. Agora que o caso está oficialmente encerrado, claro." 

Clara olhou para ele, surpresa, mas não inteiramente desagradada com o convite inesperado. Durante os muitos meses deste processo, tinha desenvolvido um respeito pela sua abordagem ética e pelo seu compromisso genuíno com o bem-estar do menor, para além dos interesses da sua cliente. 

"Isso seria... seria um desenvolvimento processual interessante," respondeu ela, permitindo-se um raro momento de humor pessoal no ambiente formal do tribunal. 

"Prometo não falar de trabalho," sorriu ele. 

"Então acho que podemos chegar a um acordo," respondeu Clara, surpreendendo-se com a facilidade com que as palavras saíam.  

O restaurante que Ricardo escolheu ficava junto à ria de Aveiro, com uma vista magnífica para as salinas tradicionais. Era um lugar informal mas elegante, com grandes janelas que enquadravam o pôr-do-sol sobre a água. 

"Confesso que estava nervoso em convidar-te," admitiu Ricardo, depois de pedirem. Era estranho, mas agradável, usarem finalmente o tratamento informal. "Durante dois anos, vimo-nos sempre em lados opostos da sala de audiências." 

"Não estávamos realmente em lados opostos," corrigiu Clara. "Ambos queríamos o melhor para o Tomás. Só tínhamos perspetivas diferentes sobre o que isso significava." 

A conversa fluiu com uma facilidade surpreendente. Descobriram interesses comuns — caminhadas na serra, literatura policial portuguesa, e uma paixão partilhada por gastronomia regional. Clara contou-lhe sobre o seu percurso desde os tempos de estágio até à especialização em direito de família, e Ricardo falou da sua decisão de abandonar um grande escritório de advogados em Lisboa para abrir uma prática mais pequena e pessoal em Aveiro. 

"Foi a melhor decisão que tomei," concluiu ele. "Em Lisboa, era só mais um advogado a redigir peças processuais em série. Aqui, conheço os meus clientes. Sei os nomes dos filhos deles, as suas preocupações reais." 

"Entendo perfeitamente," concordou Clara. "É por isso que nunca quis sair do tribunal de família, apesar das possibilidades de promoção. Aqui sinto que posso fazer a diferença, caso a caso." 

Quando o jantar terminou, caminharam juntos ao longo da ria, sob um céu estrelado que se refletia nas águas tranquilas. A brisa suave trazia o cheiro característico da maresia misturado com o aroma das salinas. 

"Sabes o que a Rita me disse, quando lhe contei que ia convidar-te para jantar?" comentou Ricardo, sorrindo para a memória. "Disse que às vezes é preciso um acidente de percurso para encontramos o caminho certo." 

Clara sorriu. "Parece que ela aprendeu bem a lição." 

"E nós?" perguntou ele, parando para olhá-la diretamente. "Precisamos de um acidente para percebermos o que está à frente dos nossos olhos?" 

No silêncio que se seguiu, o único som era o suave bater da água contra os barcos moliceiros ancorados. A lua refletia-se nos olhos dele, e Clara sentiu algo que não experimentava há muito tempo — a sensação de estar no início de uma história, em vez de ser apenas testemunha das histórias dos outros. 

"Acho que, no nosso caso, os autos já estão suficientemente claros," respondeu ela finalmente, aproximando-se. 

Seis meses mais tarde, num domingo ensolarado de primavera, um grupo inusitado reunia-se num dos parques da cidade.

Henrique e Rita, agora capazes de uma amizade cautelosa, trouxeram o pequeno Tomás e o enorme labrador Acidente para um piquenique. Tinham convidado Clara e Ricardo, cuja relação tinha florescido longe dos corredores austeros do tribunal. 

Enquanto Tomás brincava com o cão, lançando uma bola que o animal perseguia com entusiasmo exuberante, os quatro adultos partilhavam uma toalha estendida na relva e uma cesta de comida caseira. 

"Nunca pensei que estaríamos todos aqui assim," comentou Rita, observando o filho com um sorriso sereno. "Há um ano atrás, mal conseguíamos estar na mesma sala sem discutir." 

"A vida tem destas ironias," concordou Henrique. "Passámos dois anos a lutar nos tribunais, e foi um simples engarrafamento que resolveu tudo." 

Ricardo trocou um olhar cúmplice com Clara. "Às vezes, os acasos fazem mais pela justiça que todos os códigos de processo." 

Clara assentiu, pensando em como uma série de coincidências tinha transformado não apenas a vida daquela família, mas também a sua própria. Como magistrada, tinha passado anos a acreditar no poder do sistema para resolver conflitos, mas agora compreendia que, por vezes, a verdadeira resolução acontecia nos espaços entre os parágrafos da lei, nos momentos imprevistos que escapavam aos autos. 

"Sabem o que o Tomás me perguntou ontem?" disse Henrique, interrompendo os seus pensamentos. "Perguntou se a Clara e o Ricardo também iam ter um cão chamado Crash." 

Todos riram, incluindo Clara, que sentiu as faces aquecerem ligeiramente. A sua relação com Ricardo era ainda recente, mas já havia uma solidez que a surpreendia, uma compreensão mútua construída sobre valores partilhados e respeito profissional que tinha evoluído para algo muito mais pessoal. 

"Talvez não precisemos de um acidente," respondeu Ricardo, pegando discretamente na mão de Clara. "Alguns de nós têm a sorte de encontrar o caminho sem precisar de se perder primeiro." 

Mais tarde, enquanto observava Tomás, exausto de tanto brincar, adormecer no colo da mãe enquanto o pai lhe afagava suavemente o cabelo, Clara pensou em todos os processos de regulação das responsabilidades parentais que ainda enchiam a sua secretária. Pensou nas crianças apanhadas no meio de batalhas jurídicas intermináveis, nos pais consumidos pelo ressentimento, nos advogados presos nos seus papéis contrários. 

E decidiu que, na segunda-feira, iria propor algo novo ao tribunal: sessões informais de mediação prévia, antes mesmo da primeira audiência, para dar às famílias em conflito a oportunidade de encontrarem um terreno comum fora do ambiente formal das salas de audiência. 

Porque às vezes, como tinha aprendido, o maior ato de justiça é criar o espaço para que as pessoas descubram, por si mesmas, o caminho para a reconciliação. Nem que seja preciso um engarrafamento na A25 para as obrigar a parar e olhar verdadeiramente umas para as outras. 

E quanto a ela e Ricardo — bem, a sua história ainda estava nos capítulos iniciais, mas já sabiam uma coisa com certeza: alguns dos melhores veredictos da vida são aqueles que nunca chegam aos autos, mas que se escrevem nos sorrisos trocados, nas mãos entrelaçadas, e na promessa silenciosa de construir algo mais forte que qualquer código jurídico alguma vez poderia capturar.

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