Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
31 de março de 2025 às 07:17

A Primeira Defesa (vinte e oito anos depois)

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Edição de 5 a 11 de agosto

Era a sua primeira audiência como advogada estagiária e, apesar da sua intensa e comprometida preparação, sentia-se como uma impostora com aquele traje negro solene. 

No imponente Tribunal Judicial do Funchal, com a sua arquitetura modernista em harmonia com as vistas deslumbrantes para o Atlântico, Mariana Correia ajustava nervosamente a sua toga nova. Era a sua primeira audiência como advogada estagiária e, apesar da sua intensa e comprometida preparação, sentia-se como uma impostora com aquele traje negro solene. 

"Respira fundo," sussurrou-lhe João Mendes, seu colega de estágio no mesmo escritório, igualmente estreando a sua toga.

"Lembra-te do que o Dr. Vasconcelos disse: 'Noventa por cento da advocacia é aparentar confiança até realmente a sentires.'" 

Mariana assentiu, tentando controlar as mãos trémulas enquanto organizava as notas que preparara meticulosamente para esta pequena intervenção. O caso era relativamente simples - um litígio comercial sobre fornecimento de material hoteleiro - mas para os dois estagiários, representava o primeiro mergulho nas águas profundas da prática judicial. 

"O Dr. Vasconcelos já devia ter chegado," murmurou João, consultando o relógio pela quinta vez em dez minutos. "Nunca se atrasa." 

Como se convocado pelas suas palavras, o imponente Rodrigo Vasconcelos, sócio principal da firma onde estagiavam e um dos advogados mais respeitados da Madeira, entrou a passos largos no átrio do tribunal. Com sessenta anos bem conservados, cabelo grisalho impecavelmente aparado e um porte que emanava autoridade, era a personificação daquilo que ambos aspiravam ser um dia. 

"Bom dia, jovens advogados," saudou ele, com o seu habitual tom confiante. "Prontos para o batismo de fogo?" 

"Sim, senhor Dr.," respondeu João com mais convicção do que realmente sentia. "Revimos todas as peças processuais e os apontamentos para a nossa intervenção." 

"Excelente. Lembrem-se: serão breves mas assertivos. A Mariana apresentará os factos na contestação relativos às especificações técnicas do equipamento, e o João abordará a questão da mora do fornecedor. Eu conduzirei o essencial, mas quero que comecem a sentir o peso da toga." 

Os dois estagiários assentiram em uníssono, como soldados recebendo ordens antes da batalha. O Dr. Vasconcelos sorriu, suavizando momentaneamente a sua expressão severa. 

"E não se preocupem. O caso é sólido e a juíza, a Dra. Conceição Lima, é rigorosa mas justa. Quanto à parte contrária..." Hesitou por um instante, algo invulgar no sempre decidido advogado. "Bem, a Dra. Maria Ferreira é competente. Muito competente." 

Havia algo no tom com que pronunciou aquele nome - uma leve inflexão, um quase indetetável tremor - que captou a atenção de Mariana. Como aspirante a advogada, estava a treinar-se para notar essas subtilezas. 

Entraram na sala de audiências, com os seus painéis de madeira escura e janelas que enquadravam o azul profundo do oceano. João e Mariana sentaram-se respeitosamente atrás do Dr. Vasconcelos, como mandava o protocolo. 

"Ainda não chegaram," comentou o patrono, organizando os seus documentos com precisão militar. 

"A parte contrária, Dr.?" perguntou João. 

"Sim. A Dra. Maria Ferreira e..." Consultou os seus apontamentos. "Aparentemente traz também uma estagiária. Sara qualquer coisa." 

Nesse momento, a porta abriu-se, e três figuras entraram na sala. À frente, uma mulher de estatura imponente, cabelo curto e umas madeixas louras recentes e um vestido azul-escuro impecável. Atrás dela, um rapaz e uma rapariga, ambos com togas visivelmente novas, tal como as de João e Mariana. 

Mariana observou com fascínio o momento em que os olhares dos dois patronos se cruzaram. Foi subtil, mas inegável --- uma espécie de choque elétrico pareceu percorrer o Dr. Vasconcelos, cuja postura habitualmente inabalável vacilou por uma fração de segundo. 

"Rodrigo," disse a advogada, com um aceno cortês mas distante. 

"Maria," respondeu ele, num tom igualmente formal. "Há quanto tempo." 

"Vinte e oito anos, se não estou em erro." 

O silêncio que se seguiu tinha um peso quase tangível. Os quatro estagiários entreolharam-se, sentindo que estavam a testemunhar algo mais do que um simples encontro profissional. 

"Acho que nunca apresentei os meus estagiários," disse finalmente o Dr. Vasconcelos, quebrando o momento. "João Mendes e Mariana Correia. Ambos finalistas do estágio este ano." 

"Sara Duarte e André Torres," respondeu a Dra. Maria, indicando os seus dois jovens acompanhantes. "Também eles no primeiro voo." 

Mariana e Sara trocaram um olhar de reconhecimento mútuo - a mesma mistura de nervosismo e determinação, o mesmo peso da responsabilidade de não desiludir os respetivos patronos. 

A entrada da juíza interrompeu qualquer possibilidade de mais interações. A audiência começou formalmente, com a Dra. Conceição Lima a conduzir os trabalhos com uma eficiência que não permitia divagações. 

O Dr. Vasconcelos apresentou a posição do seu cliente com a eloquência característica que o tinha tornado lendário nos círculos jurídicos da ilha. Quando chegou o momento da intervenção de Mariana, o seu coração acelerou, mas a voz manteve-se firme enquanto expunha meticulosamente os factos técnicos do caso. 

"Como podemos verificar nos documentos 7 a 12 juntos aos autos, as especificações dos equipamentos fornecidos divergem significativamente do contratualmente estabelecido, nomeadamente no que concerne à capacidade térmica e ao consumo energético..." 

Enquanto falava, Mariana notou algo curioso: a atenção intensa com que a Dra. Maria a observava. Não era o olhar crítico que esperaria de uma advogada adversária, mas algo mais - uma espécie de avaliação quase maternal, um interesse que ia além do contexto profissional. 

Quando João terminou a sua intervenção, igualmente concisa e bem fundamentada, foi a vez da Dra. Maria tomar a palavra. A sua argumentação era afiada como uma lâmina, desafiando ponto por ponto a posição que tinham apresentado, mas sempre com uma elegância e precisão que, Mariana tinha de admitir, era admirável. 

"E agora," disse a Dra. Maria concluindo a sua exposição inicial, "a minha estagiária, Sara Duarte, apresentará a análise da cronologia dos factos que demonstra a inexistência de mora por parte do nosso cliente." 

Sara levantou-se, exibindo a mesma nervosidade controlada que Mariana sentira. A sua apresentação foi igualmente concisa e bem estruturada, evidenciando uma preparação minuciosa. 

A troca de argumentos entre os patronos intensificou-se ao longo da audiência. Para os estagiários, era fascinante - e algo perturbador - observar a dinâmica entre os dois advogados seniores. Havia uma familiaridade nas suas interações, como se cada um conseguisse antecipar o movimento do outro, numa espécie de dança jurídica coreografada por uma história partilhada que nenhum dos jovens conseguia decifrar. 

Durante uma breve pausa nos trabalhos, quando a juíza se retirou momentaneamente, Mariana aproximou-se de Sara junto à máquina de água. 

"Primeira audiência também?" perguntou, num tom conspiratório. 

Sara assentiu, com um meio sorriso. "Tão óbvio assim?" 

"Tenho as mãos tão suadas que quase deixei cair as minhas notas duas vezes," confessou Mariana. "Mas acho que nos estamos a sair bem. Ambas." 

"A tua argumentação sobre as especificações técnicas foi muito boa," elogiou Sara, surpreendendo Mariana com a sua sinceridade. "Precisa e sem floreados." 

"Obrigada. A tua cronologia também estava muito bem estruturada." 

Do outro lado da sala, os dois patronos mantinham-se deliberadamente afastados, cada um consultando o respetivo telemóvel como se contivesse os segredos do universo. 

"Achas que já se conheciam?" sussurrou Sara, seguindo o olhar de Mariana. 

"Tenho a certeza. Ouviste o que disseram... vinte e tal anos. E há algo na forma como... interagem." 

"A Dra. Maria nunca está tão tensa em tribunal. É conhecida por ser sempre calma e metódica, mas hoje está quase... elétrica." 

A audiência recomeçou e prosseguiu com a inquirição de testemunhas. O Dr. Vasconcelos e a Dra. Maria conduziam os interrogatórios com precisão cirúrgica, ocasionalmente permitindo que os estagiários colocassem algumas questões previamente preparadas. 

Foi durante a inquirição da última testemunha - o técnico que avaliara os equipamentos - que o inesperado aconteceu. A juíza fez uma pergunta específica sobre normas técnicas europeias, e tanto o Dr. Vasconcelos como a Dra. Maria começaram a responder simultaneamente, citando exatamente o mesmo acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia. 

"O processo C-218/01," disse ele. "Henkel contra OHIM," completou ela, no mesmo instante. 

Pararam, olhando um para o outro com uma expressão impossível de decifrar. 

"Caso Henkel," disse a Dra. Maria, recuperando a compostura. "Lembro-me de o termos estudado juntos para o exame de Direito Comercial Europeu." 

"Na biblioteca da Faculdade de Lisboa," assentiu o Dr. Vasconcelos, com um brilho nostálgico no olhar. "Mesa do canto junto à janela. Chovia torrencialmente nesse dia." 

"E o radiador fazia aquele ruído irritante, como um gato a ronronar," completou ela, com um leve sorriso. 

A juíza pigarreou, trazendo-os de volta ao presente. "Fascinante como a memória jurídica funciona, mas talvez possamos regressar à questão em análise?" 

O resto da audiência decorreu sem mais revelações pessoais, mas algo tinha mudado subtilmente na atmosfera da sala. A tensão entre os dois advogados seniores tinha-se transformado em algo diferente - menos hostil, mais melancólico. 

Quando a sessão foi finalmente encerrada, com a marcação de uma nova audiência para duas semanas depois, os seis advogados - dois patronos e quatro estagiários - encontraram-se no átrio do tribunal. 

"Bom trabalho, jovens colegas," disse o Dr. Vasconcelos, dirigindo-se não apenas aos seus estagiários mas também aos da parte contrária. "A nova geração parece promissora." 

"De facto," concordou a Dra. Maria. "Impressionou-me a vossa preparação e postura." 

Os quatro jovens trocaram olhares surpresos mas satisfeitos com o elogio inesperado. 

"Rodrigo," disse subitamente a Maria, "achas que podemos falar um momento? Em privado." 

Ele hesitou apenas por um segundo antes de assentir. "Claro. Jovens, podem aguardar aqui?" 

Os dois advogados afastaram-se, dirigindo-se para um canto mais discreto do átrio, junto a uma janela com vista para o jardim. 

"O que acham que está a acontecer?" sussurrou André, o segundo estagiário da Dra. Maria, que até ali se mantivera relativamente silencioso. 

"Obviamente, foram mais do que colegas de faculdade," respondeu Sara, com a convicção de quem sabe reconhecer uma história quando a vê. 

"A forma como citaram aquele acórdão, em simultâneo..." comentou João. "É quase como..." 

"Como se tivessem partilhado muito mais do que apontamentos de estudo," completou Mariana, observando os dois advogados à distância. 

A postura do Dr. Vasconcelos tinha mudado completamente. O advogado imponente e autoritário que conheciam tinha dado lugar a um homem que parecia simultaneamente mais jovem e mais vulnerável, as mãos gesticulando enquanto falava com uma intensidade que raramente demonstrava em contexto profissional. 

A Dra. Maria, por seu lado, tinha cruzado os braços defensivamente no início da conversa, mas agora a sua postura era mais aberta, e até mesmo - seria possível? - um sorriso genuíno iluminava o seu rosto. 

"Está bem, tenho de perguntar," disse Sara virando-se para Mariana e João. "O vosso patrono alguma vez mencionou a Dra. Maria antes? Em qualquer contexto?" 

João abanou a cabeça. "Nunca. E o Dr. Vasconcelos não é propriamente reservado sobre os seus antigos adversários. Costuma contar histórias de tribunal frequentemente." 

"A nossa também nunca falou do vosso patrono," confirmou André. "E achávamos que conhecíamos toda a sua biografia profissional. É quase uma lenda no direito comercial." 

"Há histórias que não se contam aos estagiários," refletiu Mariana, sem tirar os olhos dos dois advogados seniores, que agora pareciam absortos numa conversa que os transportara para longe do tribunal. 

Duas semanas depois, na véspera da segunda audiência, os quatro estagiários reuniram-se num café próximo do tribunal. O que começara como uma troca de apontamentos profissionais --- teoricamente para preparar melhor os respetivos casos --- tinha-se transformado numa verdadeira amizade. 

"Descobri algo," anunciou Sara baixando a voz em tom de conspiração. "Estive a investigar." 

"Investigar o quê, exatamente?" perguntou João, entre divertido e preocupado. 

"Os nossos patronos, claro," respondeu ela, como se fosse óbvio. "Não conseguia tirar aquela cena do acórdão da cabeça." 

"E o que descobriste?" perguntou Mariana, inclinando-se para a frente, a curiosidade vencendo o seu habitual profissionalismo. 

"Encontrei um anuário da Faculdade de Direito de Lisboa, de 2002," revelou Sara. "A Dra. Maria tem-no guardado numa estante no escritório, entre livros de doutrina. Nunca tinha reparado nele antes." 

"E?" pressionou André. 

"E tem uma fotografia deles. Juntos. Na secção do núcleo de Direito Europeu. Estão abraçados, e no rodapé da página há uma dedicatória manuscrita: 'Para a M. Porque um dia seremos os maiores advogados de Portugal --- juntos. R.'" 

Um silêncio impressionado seguiu-se à revelação. 

"Namorados na faculdade," concluiu Mariana. "E depois... o que terá acontecido?" 

"Isso, infelizmente, não consegui descobrir," admitiu Sara. "Mas reparei noutra coisa. A Dra. Maria tem estado diferente desde a audiência. Menos... tensa. Até cancelou duas reuniões para 'assuntos pessoais', o que nunca acontece." 

"O Dr. Vasconcelos também tem estado estranho," partilhou João. "Ontem apanhámo-lo a olhar pela janela durante dez minutos, completamente perdido em pensamentos." 

"E esta manhã chegou com o mesmo fato que usou na audiência anterior," acrescentou Mariana. "Ele que tem uma regra rígida sobre nunca repetir fatos em audiências do mesmo processo." 

Os quatro trocaram olhares significativos, sentindo que estavam a testemunhar o desdobrar de uma história que começara muito antes de chegarem ao mundo jurídico. 

A segunda audiência prometia ser mais técnica e árida, focada na análise pericial dos equipamentos em litígio. Os quatro estagiários, agora unidos por uma curiosidade partilhada, observavam atentamente cada interação entre os patronos. 

A mudança era subtil, mas inegável. A tensão da primeira audiência tinha dado lugar a uma dinâmica diferente - ainda profissionalmente, mas com um respeito mútuo que tornava o debate jurídico quase elegante, como uma dança bem coreografada. 

Durante a pausa para almoço, algo ainda mais surpreendente aconteceu. O Dr. Vasconcelos aproximou-se de Mariana e João, que organizavam as suas notas para a sessão da tarde. 

"Tenho um pedido pouco usual para vos fazer," começou ele, com uma expressão que nunca lhes tinha mostrado antes --- algo entre a determinação e a vulnerabilidade. "Gostaria que conduzissem a parte final da audiência esta tarde. O interrogatório do perito e as alegações de encerramento." 

Mariana e João trocaram olhares de pânico mal disfarçado. 

"Mas Dr. Vasconcelos, nunca fizemos alegações finais numa audiência real," protestou João. 

"Considero que estão perfeitamente preparados," insistiu ele. "Além disso, estarei presente para intervir se necessário. Considere-o... um teste de fogo." 

Antes que pudessem questionar mais, a Dra. Maria aproximou-se, acompanhada pelos seus estagiários. 

"Rodrigo, posso falar contigo um momento?" 

Quando os dois advogados seniores se afastaram novamente, os quatro estagiários reuniram-se num círculo conspirativo. 

"Não vão acreditar," sussurrou André. "A Dra. Maria acabou de nos dizer que quer que assumamos a condução da fase final da audiência hoje." 

"O Dr. Vasconcelos acabou de nos dizer exatamente o mesmo," revelou Mariana, perplexa. 

Sara olhou para os dois patronos, agora absortos numa conversa privada junto à janela do tribunal. "Estão a arranjar uma desculpa para se encontrarem," concluiu, com a certeza de quem junta as peças finais de um puzzle. 

"Como assim?" perguntou João, confuso. 

"É óbvio," explicou Sara. "Se nós conduzirmos a parte final da audiência, eles ficam livres para falarem depois. Provavelmente já combinaram jantar ou algo assim." 

"Estás a sugerir que estão a usar um caso judicial como pretexto para um... encontro?" perguntou André, entre chocado e divertido. 

"Não seria a primeira vez que o amor se cruza com o direito," respondeu Sara, com um sorriso conhecedor. 

A sessão da tarde foi uma prova de fogo para os quatro jovens advogados. Sob o olhar atento da juíza e com a supervisão discreta dos respetivos patronos, conduziram o interrogatório do perito e apresentaram as alegações finais. Para sua própria surpresa, saíram-se notavelmente bem, aplicando tudo o que tinham aprendido e demonstrando uma maturidade profissional além dos seus anos de experiência. 

Quando a juíza encerrou a sessão, anunciando que a sentença seria proferida dentro de trinta dias, os estagiários trocaram olhares de alívio e orgulho mútuo, momentaneamente esquecendo que representavam partes opostas. 

No átrio do tribunal, aconteceu o que Sara tinha previsto: tanto o Dr. Vasconcelos como a Dra. Maria anunciaram que tinham "assuntos urgentes" para tratar e que os estagiários estavam dispensados pelo resto do dia. 

"Fizeram um trabalho excecional," elogiou o Dr. Vasconcelos, com um orgulho genuíno que raramente demonstrava. "Ambas as equipas," acrescentou, incluindo os estagiários da parte contrária no seu reconhecimento. 

"De facto, foi impressionante," concordou a Dra. Maria. "O futuro da advocacia parece promissor." 

Quando os dois advogados seniores saíram juntos do tribunal, os quatro jovens não conseguiram conter os sorrisos cúmplices. 

"Devíamos celebrar," sugeriu André. "A nossa estreia em tribunal e... seja lá o que for que está a acontecer com os nossos patronos." 

"Conheço um bar junto ao porto com a melhor poncha da ilha," propôs João. 

E assim, enquanto os seus mentores redescobriam uma história interrompida há mais de duas décadas, os quatro estagiários iniciavam a sua própria narrativa de amizade forjada nas trincheiras da adversidade judicial. 

No lendário restaurante do Forte de São Tiago, com a sua vista privilegiada para o oceano e para as luzes do Funchal, Rodrigo Vasconcelos e Maria Ferreira ocupavam uma mesa discreta num canto. A luz das velas iluminava suavemente os seus rostos, revelando tanto as marcas do tempo como o brilho de reconhecimento mútuo. 

"Os teus estagiários são excecionais," comentou Maria, após o primeiro brinde. "Especialmente a Mariana. Tem uma precisão técnica rara em alguém tão jovem." 

"O teu André também não fica atrás," retribuiu Rodrigo. "A forma como estruturou as alegações finais foi quase poética na sua lógica." 

Um silêncio confortável instalou-se entre eles, preenchido apenas pelo som das ondas quebrando contra as rochas abaixo. 

"Vinte e oito anos," murmurou Maria finalmente. "Parece uma vida inteira." 

"E ao mesmo tempo, parece ontem," respondeu ele, os olhos perdidos nas memórias. "Ainda me lembro perfeitamente daquela manhã em que te disse que tinha aceitado o estágio no Funchal. A tua expressão..." 

"Fiquei devastada," admitiu ela. "Mas também orgulhosa. Era uma oportunidade incrível para ti." 

"Devia ter-te pedido para vires comigo." 

"Eu devia ter-me oferecido para vir." 

Outro silêncio, este carregado de possibilidades perdidas e caminhos não tomados. 

"Sabes," disse Rodrigo, rodando pensativamente o copo de vinho, "sempre achei que um dia nos encontraríamos em tribunal. Era quase inevitável, dada a nossa especialização comum. Mas nunca pensei que seria através dos nossos estagiários." 

Maria sorriu. "Quando vi o teu nome nas peças processuais, quase pedi a outro advogado do escritório para assumir o caso. Depois decidi que seria... interessante." 

"Interessante," repetiu ele, com um leve sorriso. "É uma forma de o descrever." 

"Os miúdos perceberam, sabes," comentou ela, com um brilho divertido nos olhos. "A Sara tem andado a fazer perguntas sobre os meus tempos de faculdade." 

"O João e a Mariana têm sido mais subtis, mas vejo como nos observam quando pensam que não estou a reparar." 

Ambos riram, sentindo-se momentaneamente jovens novamente, como nos tempos em que partilhavam apontamentos e sonhos na biblioteca da faculdade. 

"E agora?" perguntou Maria, abordando finalmente a questão que pairava entre eles. "Voltas para o teu escritório, eu para o meu, e fingimos que não houve química nenhuma naquele tribunal?" 

Rodrigo pousou o copo e olhou-a diretamente nos olhos. "Ou podemos reconhecer que, às vezes, a vida dá-nos segundas oportunidades. Mesmo que venham embrulhadas em processos judiciais e apresentadas por estagiários demasiado perspicazes para o seu próprio bem." 

Maria sorriu, um sorriso que continha duas décadas de vida vivida e a promessa de algo novo. "Sabes o que me disse a Sara esta manhã? Que às vezes, em tribunal, a sentença mais justa não é a que está escrita nos livros de direito, mas a que reconhece a verdade humana por trás dos artigos e alíneas." 

"Sábia, a tua estagiária," comentou Rodrigo, estendendo a mão sobre a mesa para tocar na dela. "Quase tão sábia como a juíza que vai decidir o nosso caso." 

"A Conceição Lima? Conhece-te bem?" 

"Fomos colegas no primeiro escritório onde trabalhei aqui na ilha. Sabes o que ela me disse hoje, à saída do tribunal? 'Rodrigo, há processos que se ganham e processos que nos ganham a nós. Não confundas uns com os outros.'" 

Maria entrelaçou os seus dedos nos dele, sentindo o tempo dobrar-se sobre si mesmo, unindo o passado e o presente num momento perfeito de possibilidade. Lá fora, o oceano continuava o seu eterno movimento contra as rochas da ilha, tal como os tribunais continuariam a sua busca pela justiça, com ou sem eles. Mas naquele momento, dois advogados que tinham dedicado as suas vidas à interpretação rigorosa da lei permitiam-se reescrever a sua própria história, guiados não pelos códigos e jurisprudência, mas pelo mais antigo e fundamental dos princípios humanos - a capacidade de recomeçar. 

E talvez, pensou Maria enquanto observava o reflexo das estrelas nos olhos de Rodrigo, essa fosse a verdadeira lição que haviam inadvertidamente ensinado aos seus estagiários: que mesmo nos corredores mais formais da justiça, a vida encontra sempre uma forma de reivindicar o seu direito inalienável à surpresa, à redenção e, nas circunstâncias mais improváveis, ao amor. 

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