Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
27 de janeiro de 2025 às 07:16

A Contabilista e o Polícia: Uma Análise de Probabilidades

O suspeito estava a aproximadamente 15 metros de distância, movendo-se a uma velocidade que calculei ser de 5 km/h, enquanto eu, com os meus sapatos de salto número 37 da Seaside, comprados em saldos, conseguia manter no máximo 4 km/h."

A sala do tribunal estava surpreendentemente cheia para uma segunda-feira de manhã. Os funcionários judiciais cochichavam entre si, e até a senhora dos registos criminais, a Dona Conceição, conhecida pela sua postura austera de trinta anos de serviço, parecia lutar contra um sorriso.

"Senhora Dra. Ana Sofia Carvalho", começou a Meritíssima Juíza, Dra. Helena Vasconcelos, ajustando os pendentes da beca impecavelmente preta, "está acusada de importunação a agente da autoridade, na forma de 'interrupção de dever policial', contra o Agente da PSP Gonçalo Ribeiro, facto ocorrido na noite de 15 de janeiro do presente ano, pelas 23h45, na zona do Saldanha. Quer prestar declarações sobre este facto?"

Levantei-me, tentando ignorar o facto de que a minha melhor saia lápis preta -- guardada religiosamente para reuniões com a Autoridade Tributária -- estava ligeiramente amarrotada do tempo que passara sentada no banco duro do tribunal. O meu advogado, Dr. Manuel Rodrigues, um senhor já com os seus setenta anos, de quem eu tratava da contabilidade do escritório há décadas, deu-me um aceno encorajador.

"Culpada, senhora Dra. Juíza", declarei, mantendo a postura profissional que anos de apresentações a clientes difíceis me tinham ensinado. "Sim, meritíssima, interrompi o dever policial do agente, mas foi por pura necessidade."

A juíza inclinou-se ligeiramente para a frente, e tive a certeza de ver um brilho de curiosidade por detrás daquele figurino vestido para parecer austero. Do outro lado da sala, o agente Ribeiro -- que, devo admitir, ficava ainda mais apresentável com o uniforme da PSP do que naquela noite fatídica -- ajustou a gravata e corou visivelmente.

"Explique-se", ordenou a juíza, "e tente não omitir nenhum detalhe relevante."

Respirei fundo. "Meritíssima, como contabilista certificada, inscrita na Ordem dos Contabilistas Certificados com o número 54873, tenho o dever de cumprir prazos rigorosos. Naquela sexta-feira, tinha estado desde as 8h da manhã a finalizar declarações de IVA de última hora para três clientes diferentes -- sabe como são os empresários, deixam sempre tudo para o fim..."

"Senhora Dra.," interrompeu a Procuradora do Ministério Público, Dra. Joana Matos, uma mulher de meia-idade com um carrapito tão apertado que parecia puxar-lhe as sobrancelhas, "peço que a arguida se cinja aos factos relevantes."

"Com certeza, senhora Dra. Procuradora. Saí do escritório às 23h30, depois de finalmente submeter a última declaração no Portal das Finanças -- que, devo acrescentar, estava particularmente lento naquela noite. Estava a ir para o metro do Saldanha, a pensar se não me tinha esquecido de nada, quando reparei um indivíduo suspeito a seguir-me."

"E porque não chamou simplesmente a polícia?", questionou a Juíza, folheando os seus papéis com um ar cético.

"Senhora Dra., permita-me explicar com números, que é o que sei fazer melhor. O telemóvel tinha 2% de bateria -- culpa do Portal das Finanças, que me obrigou a usar a autenticação por chave móvel digital três vezes. O suspeito estava a aproximadamente 15 metros de distância, movendo-se a uma velocidade que calculei ser de 5 km/h, enquanto eu, com os meus sapatos de salto número 37 da Seaside, comprados em saldos, conseguia manter no máximo 4 km/h."

A juíza levantou uma sobrancelha. "E isso levou-a a...?"

"A fazer cálculos rápidos, Meritíssima! Foi então que avistei o Agente Ribeiro, em patrulha, junto ao quiosque das revistas. O senhor Manuel, o simpático senhor do quiosque que me vende pastilhas todos os dias, já tinha fechado. Estava sozinha, a bateria a morrer, e um potencial assaltante a aproximar-se. Fiz o que qualquer contabilista faria: uma análise rápida de cenários!"

O Dr. Manuel, o meu advogado, lembram-se, interveio: "Meritíssima, permita-me salientar que a minha cliente agiu sob estado de necessidade, conforme previsto no artigo 34º do Código Penal."

"Exatamente!", exclamei. "A probabilidade de um assaltante acreditar num pedido casual de ajuda era de aproximadamente 35%, baseando-me nas estatísticas de criminalidade da zona que tinha lido no Correio da Manhã. Mas a probabilidade dele acreditar que o agente estava a auxiliar-me num assunto urgente? Pelo menos 85%! São números, Meritíssima, e números não mentem!"

"Continue", disse a juíza, e podia jurar que vi um canto da sua boca tremer.

"Então, aproximei-me do Agente Ribeiro como se o conhecesse há anos. O meu plano era fingir que estava a pedir direções, mas quando vi o suspeito a acelerar o passo..." Fiz uma pausa dramática. "Exclamei 'Agente, preciso da sua ajuda urgente!', e... bem... apliquei o Plano B."

"Plano B?", perguntou a juíza.

"Pedi-lhe que me acompanhasse até ao carro, fingindo que ia apresentar uma queixa, Meritíssima. Uma caminhada de 3,5 minutos -- cronometrei mentalmente, é deformação profissional. Perfeitamente calculado para parecer autêntico sem ser demasiado... demorado."

Perante tamanha justificação a juíza virou-se para o ofendido que desta vez não conseguiu esconder o sorriso. "Senhora Doutora Juíza", interveio ele, levantando-se, "devo acrescentar que a avaliação da Dra. Ana Sofia estava correta. O indivíduo em questão, um tal Joaquim 'Mãos Leves' Silva, foi efetivamente detido 10 minutos depois por tentativa de assalto na Rua Padre António Vieira. Tinha três processos pendentes por furto."

A juíza remexeu-se na cadeira, entre um misto de surpresa e de impaciência e perguntou: "Agente Ribeiro, após esta... peculiar explicação, deseja manter a queixa?"

O agente endireitou-se, o seu crachá da PSP brilhando sob as luzes fluorescentes do tribunal. "Senhora Doutora Juíza, considerando que a senhora em questão agiu em estado de necessidade, que a ameaça era real e que..." -- passou a mão pelo cabelo bem aparado -- "que, em quinze anos de serviço, foi sem dúvida o método mais criativo que alguém já usou para pedir proteção policial... não, não desejo manter a queixa."

A sala encheu-se de risos mal contidos. Até a Dona Conceição deixou escapar uma gargalhada.

"Muito bem", declarou a juíza, finalmente permitindo-se um sorriso. "Processo arquivado por falta de queixa. Mas, Senhora Dra. Ana Sofia, da próxima vez sugiro que invista o seu talento matemático em calcular a probabilidade de sucesso de um simples grito de 'POLÍCIA!'?"

"Sim, Meritíssima", respondi, guardando a calculadora que, por hábito, trazia sempre na pasta. "Prometo fazer essa análise estatística."

Ainda na sala de audiências, o Agente Ribeiro aproximou-se, segurando um papel, "Senhora Dra.", disse ele, com um sorriso discreto, "aqui está a minha escala de serviço para este mês. Faço patrulha no Saldanha todas as sextas-feiras, das 22h às 2h. Só para o caso de precisar de fazer mais... análises de probabilidades."

Ao sair do tribunal, já conseguia ouvir a Dona Conceição a espalhar a história pelo telefone: "Oh Zézinha, nem vais acreditar no processo que tive hoje! Uma contabilista que pediu ajuda a um polícia... Não, não! Ouve primeiro a história toda!"

E enquanto descia as escadas do Tribunal, não pude deixar de pensar que talvez, só talvez, devesse começar a trabalhar até mais tarde às sextas-feiras.

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