Sábado – Pense por si

Francisco Paupério
Francisco Paupério Investigador
09 de dezembro de 2024 às 07:42

Omeletes sem ovos

A forma altruísta como o cientista trabalha em prol da sociedade sem o reconhecimento pelo seu trabalho é um exemplo de uma comunidade que está assente em princípios e valores íntegros com vista ao bem comum de todos.

A Ciência não está apenas ligada à curiosidade, mas é um elemento fundamental da nossa sociedade, que sustenta toda a inovação médica e tecnológica. É mesmo uma bússola que nos ajuda a navegar durante os períodos mais obscuros. É omnipotente estando presente em grande parte do nosso dia-a-dia sendo uma ferramenta essencial para o progresso e sobrevivência. Sem ela, estamos menos equipados para lidar com os problemas que nos assombram, sejam eles a crise climática, crises de saúde pública, crises alimentares, crises energéticas ou a própria desigualdade. Sem ela, estamos condenados à estagnação física e mental, sem um olhar crítico sobre as coisas que nos rodeiam. Estes recursos tornam-se extremamente importantes numa era de desinformação e incentivo ao ódio e ao obscurantismo. É através da lente da Ciência que vemos o mundo e o compreendemos, e portanto estamos intimamente ligados à sua maneira de o observar e

estudar. Este é um método que não oferece certezas, que não conforta, mas que sobretudo duvida.

Nunca se produziu tanto conhecimento científico como nestas décadas. Em 2022 foram publicados 2.82 milhões de artigos científicos sendo humanamente impossível estar por dentro de todos os tópicos discutidos em todas as áreas da academia. É este trabalho que todos os anos sustenta e cria as bases de conhecimento para conseguirmos avançar em todas as áreas da nossa vida. Mas, infelizmente, muito deste trabalho não é reconhecido. Basta olhar para os vencedores dos Prémio Nobel, onde apenas uma percentagem ínfima dos envolvidos acaba por figurar, normalmente homens. Ainda este ano, impulsionado pelo seu uso durante o período da pandemia COVID-19, o prémio Nobel da Medicina foi para dois biólogos importantes na descoberta do microRNA. Esta descoberta provavelmente teria passado despercebido aos milhões de pessoas que vivem neste planeta não fosse a sua utilização para as vacinas num contexto óbvio e difícil de pandemia global. Como esta, muitas outras descobertas todos os anos aumentam a ilha do conhecimento e nos permitem compreender um pouco melhor o mundo que vivemos. Todos os anos, devido ao trabalho incansável dos cientistas, é possível esperar o progresso, e assim continuará… isto é, se tratarmos bem deles.

Infelizmente, assistimos nos últimos anos em Portugal a uma redução significativa do orçamento, a um abandono completo desta classe, que é conhecida por fazer omeletes sem ovos. Mas, como em todas as profissões, há limites. Muitos trabalhadores sem contrato, a receber em bolsas de 12 meses, sem direito a subsídios de desemprego entre bolsas. A falta de previsibilidade nos concursos não permite planear o ano, quanto mais a carreira. A continua criação e extinção de institutos e grupos de investigação face às novas tendências mundiais traz ainda mais dificuldade na gestão do dia-a-dia destas pessoas, muitas com filhas/os e famílias para gerir, enquanto desempenham um papel fundamental.

Heróis invisíveis em muitas histórias com final feliz, como o papel que tomaram durante a pandemia, não só no desenvolvimento das vacinas, mas na realização de testes covid em Portugal. Foram muitos institutos e cientistas que apoiaram a análise dos testes covid com muito sacrifício pessoal e financiamentos dos seus próprios trabalhos.

O mais interessante da Ciência é como espelha as utopias que queremos para a nossa sociedade. Invariavelmente é uma experiência colectiva, baseada na cooperação e na comunidade que ultrapassa fronteiras numa plataforma única internacional. Poucas pessoas criam novo conhecimento sem estar sustentado no trabalho de milhares de cientistas que vêm antes dos mesmos. E são esses nomes que não ficam na história, mas que pouco a pouco contribuem para desenvolvimentos impressionantes como por exemplo a Inteligência artificial, conceito desenvolvido nos anos 40, desconhecido da maioria das pessoas até à última década. A forma altruísta como o cientista trabalha em prol da sociedade sem o reconhecimento pelo seu trabalho é um exemplo de uma comunidade que está assente em princípios e valores íntegros com vista ao bem comum de todos. E é uma comunidade que precisa de mais e que merece muito mais.

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