Sábado – Pense por si

Francisco Paupério
Francisco Paupério Investigador
30 de abril de 2025 às 07:07

O povo saiu à rua

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Edição de 5 a 11 de agosto

Não estamos preparados para o mínimo de disrupção do nosso sistema económico, ambiental ou energético. Mas estamos sempre preparados para voltar a contactar e conectar com as nossas comunidades, havendo espaço público para tal.

Esta não é uma reflexão filosófica sobre o apagão. Mas antes uma constatação sobre o que nos impede de ser. E quando a falta de electricidade liberta muitas pessoas do seu trabalho, dos seus vícios, relembramo-nos, ainda que temporariamente, da nossa

condição mais humana. Os relatos dos jardins, das esplanadas, das marginais cheias mostram também o que valorizamos quando não estamos presos: das nossas cidades e dos espaços públicos. E sim, efetivamente, o povo saiu à rua. À procura da liberdade, de espírito de comunidade, de segurança. E encontrou-a precisamente nos seus bairros, nos seus vizinhos, nas pessoas mais velhas (que por sinal estão bem mais preparadas para estes desafios), e encheram-se as ruas com vida, no momento em que todo o sistema falhou, voltamos para o nosso estado padrão: rodeado de pessoas.

Claro que a romantização destes momentos tem de ser contrastada com o pânico generalizado das pessoas, pelas corridas aos mercados, pela procura dos seus entes mais queridos e vulneráveis, também estas condições humanas. Não esquecer que todos os geradores de hospitais estavam a prazo, com apenas poucas horas de energia, sem saber se haveria ou não outro carregamento fruto da falta de comunicações. Pais sem conseguir falar com filhos, netos sem conseguir contactar avós, e toda a gente sem qualquer informação do que se estaria a passar. A desinformação acentuou-se nos poucos períodos em que havia comunicação com alguns órgãos de comunicação social a alavancar algumas das mesmas notícias que se viriam a demonstrar falsas. Por outro lado, até ministros do nosso governo sucumbiram perante as fake news e prestaram declarações públicas

propagando teorias que se vieram a provar falsas.

Tudo isto desemboca numa certeza: não estamos preparados para o mínimo de disrupção do nosso sistema económico, ambiental ou energético. Mas estamos sempre preparados para voltar a contactar e conectar com as nossas comunidades, havendo espaço público para tal. Se num espaço curto de anos a pandemia mostrou a fragilidade do contacto e da nossa sociedade, o apagão ibérico mostrou a dependência energética que temos ainda de outros países. Aliás, mostrou como as comunidades autónomas de energia são uma garantia de soberania e resposta a crises energéticas deste tipo, sempre adiadas pelos governos em funcionamento. Seria ingénuo acreditar que iríamos retirar informações importantes para o futuro, mas será trágico não extrairmos nenhuma lição do que se passou. A autonomia energética, a descentralização dos recursos, os sistemas de comunicação comunitários e os planos de emergência locais devem deixar de ser ideias do papel para se tornarem realidade.

Sem dúvida que foi um dia histórico, que nos relembrou da nossa fragilidade e falta de preparação para qualquer evento disruptivo. Para quem tem animais de companhia (como eu tenho), o passeio da hora de almoço foi surpreendente pela quantidade de pessoas presentes nas ruas, a falar, felizes, juntas, durante o dia. Isto foi-se estendendo e aumentando até à última luz solar, momento esse que nos traria a luz de volta. Esse é o momento em que percebemos o seu valor, que tanta falta nos fez por algumas horas. E também é o momento em que a rotina e a indiferença volta a reinar no bairro. É inquietante a rapidez com que nos esquecemos. Passam apenas algumas horas, e toda a península voltou ao seu quotidiano. A tal conveniência espontânea que aconteceu no dia anterior, deixou de existir como se nunca tivesse acontecido. Por breves horas, fomos vizinhos.

Depois, voltamos a ser estranhos.

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