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Francisco Paupério
Francisco Paupério Investigador
05 de fevereiro de 2025 às 07:25

A (in)visibilidade da violência obstétrica

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Quase 15% das mulheres afirma que a experiência de parto afetou negativamente a sua vontade de ter filhos no futuro. Estes dados demonstram a necessidade de uma reflexão ainda mais profunda sobre as práticas obstétricas.

A discussão sobre a violência obstétrica em Portugal não é novidade, mas é frequentemente posta para debaixo do tapete. Apesar de ser um fenómeno global, tem várias formas distintas de se manifestar, incluindo o abuso de episiotomias, falta de anestesia, pressão sobre o abdómen (Manobra de Kristeller) ou cesarianas desnecessárias. Infelizmente este tipo de violência não se restringe só a atos físicos, podendo também se manifestar sob a forma de comentários ofensivos e humilhantes, desconsideração da autonomia da mulher, falta de informação sobre o parto e plano de parto e, até, imposição de padrões rígidos sobre o mesmo.

Em 2019 houve um bom avanço legislativo para protecção das mulheres e das mães com as recomendações aprovadas pela Assembleia da República, resolução do Conselho da Europa e das Nações Unidas. No entanto, há pouco acesso a novos dados sobre este problema. Em Portugal, a discussão nasce de um relatório sobre a "Experiência do Parto em Portugal" realizado pela Associação Portuguesa pelos Direitos da Mulher na Gravidez e

no Parto. É um relatório aterrador, onde mostra que 43,5% das mulheres inquiridas afirma não ter tido o parto que desejavam. Perto de 43% declararam que não receberam informação sobre o parto e que não foram consultadas sobre algumas das intervenções às quais foram sujeitas. Quase 15% das mulheres afirma que a experiência de parto afetou negativamente a sua vontade de ter filhos no futuro. Estes dados demonstram a necessidade de uma reflexão ainda mais profunda sobre as práticas obstétricas.

Entre tudo isto ainda chama a atenção uma prática médica denominada de episiotomia. Para quem não sabe, a episiotomia consiste na realização de um corte no períneo (região entre a abertura da vagina e do anus) com o objetivo de ampliar a abertura do canal de parto, facilitando a saída do bébe. O objectivo é, teoricamente, prevenir certas lacerações mais graves. Olhando para os números globais vemos realidades completamente distintas. Enquanto Dinamarca apresenta números de episiotomias a rondar os 5% dos partos, Portugal apresenta perto de 70% (dados de 2019). Apesar dos últimos dados apontarem para uma redução do seu uso em Portugal (alguns centros hospitalares reportaram mais recentemente para os 25%), estão ainda longe dos números recomendados pela Organização Mundial da Saúde (OMS), que recomenda perto dos 10%.

Inclusive salta à vista países como Estados Unidos da América que reduziram na última década para os 5%, Canadá para os 15%, França para os 20%. A OMS desaconselha o uso sistemático da episiotomia em partos vaginais, sendo apenas reservada para casos onde haja uma indicação médica clara e com claro consentimento e bem-estar da mulher como prioridade.

Em 2021, a Ordem dos Médicos recusa mesmo que a violência obstétrica seja umarealidade em Portugal. Este tipo de declarações, em contraciclo com as evidências e dados apresentados, reforçam o silêncio institucional, perpetuam esta violência e descredibilizam todos os testemunhos prestados por milhares e milhares de mulheres. É uma falta de respeito, de sensibilidade e de responsabilidade. Esta normalização de práticas inadequadas e desnecessárias sem considerar a decisão da mulher reflete uma cultura que ainda vê o corpo feminino como algo a ser controlado, mesmo num dos momentos mais íntimos e transformadores da vida. É fundamental que as mulheres conheçam os seus direitos, tenham acesso livre à informação e que exijam esse respeito durante todo o processo. A maternidade não pode ser um espaço de imposição e sofrimento, mas de

autonomia e respeito.

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