Morreu esta terça-feira, 9 de dezembro, na terra onde se refugiou nas últimas décadas, Estremoz. A escrita de ficção foi, aos poucos, esfarelando-se, assim como as aparições públicas mas, na década de 1980, Clara Pinto Correia era um fenómeno raro: uma intelectual que se tornava celebridade, com a leveza de quem dominava, ao mesmo tempo, a ciência, a ficção, a crónica e o espetáculo mediático. Filha de médicos, formada em Biologia, fascinada desde criança pelo trabalho da primatóloga
Jane Goodall, cresceu entre Angola e Lisboa até se tornar investigadora, professora, autora de culto e presença constante na imprensa.
Nascida em 1960, aos 25 anos vivia o auge.
Adeus, Princesa, o seu segundo trabalho, transformara-a num ícone literário, colhida por elogios quase hiperbólicos. Vasco Graça Moura chamou-lhe “um dos livros notáveis de 1985”; Urbano Tavares Rodrigues viu-lhe humor e ternura; o sempre exigente Vasco Pulido Valente chamou-lhe o melhor romance português desde
Os Maias. Era impossível escapar-lhe, e as entrevistas, programas de rádio e televisão, colunas em jornais e revistas eram prova de uma energia criativa que parecia inesgotável.
A ascensão foi vertiginosa, mas também o foi a queda. Depois do doutoramento nos Estados Unidos, regressou com prestígio académico reforçado mas, no início dos anos 2000, encalhou na maior polémica da sua carreira, quando duas crónicas publicadas na imprensa portuguesa revelaram cópias quase literais de textos da
New Yorker.
O escândalo apagou-a das colunas, retirou-lhe plataformas, gerou ataques ferozes de colegas, ainda que tenha mantido um defensor fiel em Vasco Pulido Valente, que lhe pediu publicamente: “
Volta, princesa.” Nunca voltou por completo. Ainda assim, regressos esporádicos — livros, crónicas, participações televisivas — voltaram a sinalizar uma autora inquieta, talentosa, capaz de transcender qualquer queda. E se os regressos não lhe chegarem, deixemos que a obra o faça.
Segundo romance de Clara Pinto Correia, e o primeiro a conquistá-la verdadeiramente para o grande público,
Agrião! é uma narrativa frenética, juvenil, urbana, cheia de humor e desassossego. É habitualmente descrito como um romance de formação acelerado: a história acompanha uma protagonista que navega entre o ímpeto da independência e o choque com a realidade adulta, num registo que mistura irreverência pop, observação social e um certo caos sentimental. O tom desabrido, quase insolente, é aquele que anunciava uma voz incomum, culta, rápida, brincalhona, capaz de captar a energia de um País em transição. Foi com
Agrião! que Clara Pinto Correia passou a ser notada para lá da academia e dos círculos literários mais atentos.
Romance responsável pelo salto definitivo para o estrelato, uma ficção sentimental e irónica, sobre um jovem jornalista que é enviado para um Alentejo que desconhece para descortinar o mistério por trás da morte de um militar alemão. A escrita é veloz, musical, cheia de apartes, autorreflexões e nuances de humor que lhe deram popularidade instantânea. Publicado quando a autora tinha apenas 25 anos, tornou-se um caso literário: elogiado quase unanimemente, vendeu amplamente, marcou uma geração de leitores e foi adaptado ao cinema em 1991, por Jorge Paixão da Costa. É um livro que retrata um Alentejo conservador na ressaca do PREC e que tornou a sua autora, por um breve momento, numa pop-star literária.
Publicado numa fase em que Clara Pinto Correia fazia malabarismo entre a investigação científica, a escrita e a vida familiar entre os Estados Unidos e POrtugal,
Os Mensageiros Secundários é um romance de ambição. Construído a partir do conceito biológico de “mensageiros secundários” — moléculas que, dentro das células, transmitem sinais decisivos —, o livro articula ciência, história, introspeção e narrativa íntima para pensar como pequenas forças, quase invisíveis, condicionam vidas inteiras. Alternando histórias pessoais com reflexões sobre corpo, memória e destino, este romance simboliza uma autora mais madura e mais experimental, capaz de cruzar mundos que dominava, nomeadamente o literário e o científico. Teve impacto mediático pela voz distinta que trazia e pela forma como refletia o percurso fragmentado da própria autora.