Secções
Entrar

Padre Anselmo Borges: "Francisco era o Papa das periferias"

Pedro Henrique Miranda 22 de abril de 2025 às 07:00

O professor da Universidade de Coimbra, filósofo e padre católico acredita que Francisco será lembrado pela defesa da paz, fraternidade e ecumenismo, bem como das "periferias geográficas e existenciais".

Segunda-feira foi um dia triste para Igreja Católica, e em especial para a ala reformista da instituição, que tinha noPapa Francisco (1936-2025)a sua mais proeminente voz. Anselmo Borges, padre, professor e filósofo português, conta-se entre essas vozes, criticando a Igreja pela persistência do que considera injustiças para com o celibato obrigatório do clero ou a exclusão de mulheres de celebração da eucaristia. Celebra, ainda assim, o legado de Francisco na promoção da paz e da fraternidade, do diálogo interreligioso, dos avanços sociais e do combate à pedofilia, e acredita que, ainda que possa haver "tentativas de retrocesso", "a Igreja de Francisco continuará".

Que legado deixa o Papa Francisco?
Para mim, ficará na história, não apenas por aquilo que fez em ordem a uma revolução dentro da Igreja Católica, mas por toda a sua influência no mundo. Era uma figura querida por crentes e não crentes, um papa que constituía uma figura político-moral global, talvez a figura mais influente nesse sentido. Estava permanentemente a insistir na fraternidade e na paz, e tantas vezes falou contra os milhões para o armamento, que poderiam estar a ser utilizados para acabar com a fome no mundo ou o analfabetismo. Clamava contra uma economia que mata. Fica na história como o papa do ecumenismo - não é por acaso que escolhe o nome Francisco, em homenagem a S. Francisco de Assis e a sua máxima de "reparar a igreja". Fica na história, em última análise, como o papa das periferias geográficas - optou por visitar países esquecidos, sem grande relevância internacional - mas também das periferias existenciais, defendendo que a Igreja deveria estar aberta a todos. Em Fátima, dizia, olhando para a capelinha das aparições, que estava ali a figura da Igreja: sem muros, sem portas, aberta a todos.

Há a ideia de um papa progressista e liberal, mas também a noção de que não foi longe o suficiente, como, por exemplo, na questão da igualdade das mulheres na Igreja.
O Papa Francisco avançou reformas profundas dentro da igreja, implementou uma política de tolerância zero à pedofilia, declarou o clericalismo como uma peste, tentou por ordem na Cúria Romana - há discursos em que chega a falar de esquizofrenia dentro da Cúria. Havia escândalos financeiros dentro do banco do Vaticano, e ele instituiu regras. Acabou recentemente por colocar uma ministra na Cúria, pôs uma mulher como governadora do Estado do Vaticano. Mas algumas coisas ficaram por realizar: reconheceu que o celibato não é imperativo, mas não ousou acabar com o celibato obrigatório dos padres, e, por outro lado, as mulheres continuam a não poder presidir à Eucaristia. São duas carências que ficam no pontificado de Francisco.

E em relação ao casamento entre pessoas do mesmo sexo?
Apesar de tudo, creio que é o papa da inclusão: começou logo no princípio do pontificado, há 12 anos, a dizer "quem sou eu para julgar os homossexuais?", e mais recentemente permitiu uma bênção para casais do mesmo sexo. De facto, ficaram coisas por realizar, mas a mudança na Igreja depende de cada um dos seus membros. Só vai haver uma verdadeira revolução no dia em que cardeais, bispos, monsenhores, padres e os católicos em geral se perguntarem a si próprios: "Isto é bom para mim? Em que é que acredito?". A fé cristã é um ato pessoal de confiança no Deus de Jesus, cujo nome, segundo Francisco, é "Misericórdia".

Acha que foi feito o suficiente em relação aos escândalos sexuais que praguejaram a Igreja?
O Papa Francisco disse o que era preciso fazer: acabar com a peste do clericalismo, e tolerância zero para a pedofilia, o abuso de poder e o abuso de consciência. Houve, inclusivamente, pelo menos um cardeal que foi destituído. O último sínodo, sobre a própria sinodalidade, já teve a presença de mulheres com voz e voto. Portanto acho que o Papa encaminhou a Igreja no caminho certo. Ficaram por realizar a questão celibato, que não pode ser instituído como lei, e a discriminação das mulheres, que é contra os direitos humanos. Jesus não as discriminou, tinha discípulos e discípulas.

Como olha para a postura política de Francisco, que contrastou com alguns dos seus predecessores?
A postura de Francisco era claramente mais interventiva, mas sempre pugnou pela paz e pela união - mesmo nas últimas palavras que disse, no domingo, apelou à paz em Gaza. Todos os dias telefonava para a comunidade de Gaza, enviou representantes à Ucrânia e cogitou ir a Moscovo. No Sudão, chegou a pôr-se de joelhos diante de governantes para que restabelecessem a paz. Na dimensão do ecumenismo, visitou países de maioria islâmica e vincou a importância de estabelecer o diálogo ecuménico e interreligioso em prol da paz global. E na dimensão ambiental, toma o nome de Francisco não apenas para reparar a Igreja e reformar o que é preciso reformar: S. Francisco de Assis era o grande cantor da natureza, e o papa deixou uma encíclica, Laudato si', a favor da ecologia e da preservação da natureza como a nossa casa comum, prevenindo contra a crise climática.

Acredita que o novo pontificado representará uma reação da fação conservadora da Igreja ou a continuação do caminho traçado por Francisco?
Agora, haverá uma série de encontros, influências e mesmo intrigas, mas tenho a convicção de que não haverá retrocesso no essencial. Teremos um novo conclave daqui a um mês, e a única coisa que lhe posso dizer é que gostaria que o novo papa fosse asiático - mais concretamente, o cardeal Luis Antonio Tagle, que já foi presidente da Caritas Internacional e em quem o Papa Francisco confiava, e que hoje trabalha na Cúria à frente da Congregação para a Evangelização. Neste mundo global, a Igreja precisa de se ver a si mesma com outros olhos, a partir de outras culturas. Estou convencido que haverá tentativas de retrocesso, mas gostaria que não se voltasse atrás nas posições do Papa Francisco: uma Igreja sinodal, em que todos são co-responsáveis. Julgo que, no essencial, a igreja de Francisco continuará com estas características, e vai evoluir para ser cada vez mais aberta a todos, especialmente aos mais fracos e vulneráveis.

Descubra as
Edições do Dia
Publicamos para si, em três periodos distintos do dia, o melhor da atualidade nacional e internacional. Os artigos das Edições do Dia estão ordenados cronologicamente aqui , para que não perca nada do melhor que a SÁBADO prepara para si. Pode também navegar nas edições anteriores, do dia ou da semana.
Boas leituras!
Artigos recomendados
As mais lidas
Exclusivo

Operação Influencer. Os segredos escondidos na pen 19

TextoCarlos Rodrigues Lima
FotosCarlos Rodrigues Lima
Portugal

Assim se fez (e desfez) o tribunal mais poderoso do País

TextoAntónio José Vilela
FotosAntónio José Vilela
Portugal

O estranho caso da escuta, do bruxo Demba e do juiz vingativo

TextoAntónio José Vilela
FotosAntónio José Vilela