Medicamento para a asma ligado a problemas mentais. Portugal espera decisão europeia
Estudo preliminar do regulador dos EUA aponta para efeitos no cérebro do Singulair e dos genéricos de montelucaste. Por cá, Infarmed lembra que bula já tem um alerta e que se aguarda avaliação da EMA nos primeiros meses de 2025. Médico aconselha a manter a toma dos medicamentos com atenção redrobada.
Cientistas da agência norte-americana do medicamento (FDA, na sigla em inglês) chegaram à conclusão de que um popular medicamento usado em doentes com asma pode estar ligado a problemas de saúde mental sérios. Esta descoberta ainda preliminar foi divulgada numa apresentação científica que a Reuters reviu, há cerca de duas semanas. Por cá, o medicamento com o nome comercial de Singulair e genericamente vendido como montelucaste também é vendido e está a ser avaliado pela Agência Europeia do Medicamento (EMA), indicou o Infarmed àSÁBADO. As conclusões são esperadas "para os primeiros meses de 2025".
Os investigadores descobriram que o medicamento se liga a vários recetores do cérebro que são fundamentais para o funcionamento psiquiátrico. O Singulair, lançado pela Merck em 1998, tem sido comummente receitado para se obter "um reforço anti-inflamatório" em doentes com asma, sendo sempre usado em conjunto com os inaladores, explicou à SÁBADO o pneumologista Luís Rocha. Lembrando que é "largamente usado desde os finais da década de 1990 em doentes dos 6 meses até à idade adulta", o especialista apontou que não conhece nenhum caso em que tenham existido problemas.
O também diretor do serviço de pneumologia do IPO do Porto indicou ainda que, por cá, "não tivemos conhecimento de nada em termos de Infarmed. Não nos foi comunicada a monitorização de risco, nem do Singulair nem dos genéricos". Porém, explicou que é o que, por norma, acontece até ficar estabelecido se há risco efetivo ou não. Como, aliás, aconteceu no caso dos EUA, que não vai suspender o fármaco nem mudar a bula para já. "Ainda não é um estudo publicado e revisto pelos pares, é uma avaliação preliminar", justificou o pneumologista.
Quando entrou no mercado, foi descrito como tendo os mesmos efeitos adversos que um medicamento placebo e que a sua distribuição no cérebro seria "mínima". Porém, até 2019 já tinham sido descritos nos fóruns online ou reportados à FDA milhares de episódios neuropsiquiátricos, incluindo dezenas de casos de suicídio, em doentes que tomavam o medicamento.
Estes reportes não determinam se há uma causa-efeito entre o medicamento e os efeitos secundários descritos, mas a FDA usa-os para determinar se são necessários mais estudos aos riscos que a substância pode apresentar. Assim, depois de uma primeira análise e novas investigações científicas, a FDA decidiu colocar uma "caixa negra" com o aviso de que o montelucaste poderia estar ligado a riscos sérios de saúde mental como pensamentos suicidas ou mesmo suicídio. O mesmo acontece por cá, onde o aviso consta do folheto informativo, como lembrou o Infarmed na resposta à SÁBADO.
Ao mesmo tempo que tomou esta medida, a agência norte-americana criou um grupo interno de peritos para estudar as razões pelas quais o medicamento pode desencadear efeitos secundários neuropsiquiátricos. Os resultados, que ainda são preliminares e não foram publicados, foram apresentados a uma audiência limitada no encontro do Colégio Americano de Toxicologia, que decorreu em Austin (Texas), a 20 de novembro.
"Ligação significativa" a recetores cerebrais
Jessica Oliphant, diretora-adjunta do Centro Nacional de Investigação Toxicológica da FDA, disse no evento que os testes laboratoriais mostraram uma "ligação significativa" do montelucaste a múltiplos recetores encontrados no cérebro. A entidade norte-americana também confirmou que uma investigação científica ainda em fase inicial mostra que o montelucaste consegue entrar no cérebro dos ratos. Sendo necessários mais estudos para se perceber como é que a substância se acumula no sistema nervoso, apontou Jessica Oliphant, citada pela Reuters. "Estes dados indicam que o montelucaste está mais elevado nas regiões cerebrais conhecidas por estarem envolvidas [em efeitos psiquiátricos]", apontou.
Apesar destes dados, a FDA ainda não vai alterar o folheto informativo do medicamento. Em Portugal aguarda-se a decisão da EMA, conforme indicou o Instituto Nacional do Medicamento (Infarmed). "Este assunto (eventos neuropsiquiátricos persistentes associados à utilização de montelucaste) está em discussão no Pharmacovigilance Risk Assessment Committee (PRAC) da Agência Europeia de Medicamentos, esperando-se a divulgação das suas conclusões para os primeiros meses de 2025."
A Merck não respondeu às questões colocadas pela Reuters, mas a sua subsidiária que comercializa o Singulair, a Organon, emitiu um comunicado onde refere que mantém a confiança na segurança do medicamento. "A informação na bula do Singulair tem informação apropriada quanto aos seus benefícios, riscos e reporte de reações adversas", referiu a empresa.
Em Portugal, o médico Luís Rocha referiu que "não há razões para alarme". Sendo comum as autoridades não informarem quando se fazem estas avaliações de risco, por ainda não estar nenhum efeito confirmado. "Vou aguardar que surjam indicações das autoridades. Normalmente temos que medir a segurança do doente e o valor comercial do produto, é preciso avaliar tudo e quando há certezas age-se", descreveu.
Aos doentes que tomam este substância aconselhou a que estejam atentos "a sinais ou sintomas de efeitos do fármaco", devendo comunicar qualquer alteração "ao seu médico e suspender a toma se for caso disso". "Se nunca teve nada, deve continuar a tomar até indicação em contrário", defendeu.
Os casos mais graves
Nos Estados Unidos foram reportados milhares de casos de doentes, incluindo crianças, que reportavam depressão, pensamentos e comportamentos suicidas, ou outros problemas psiquiátricos, todos depois de terem começado a usar o montelucaste.
Entre 1998 e 2019, a FDA tinha contabilizado 82 suicídios ligados à toma destes fármacos, reportados à sua base de dados. Pelo menos, 31 deles envolviam pessoas abaixo dos 19 anos.
Um dos que reportou esse efeito foi Robert England, depois do suicídio do seu filho de 22 anos, em 2017. Nick estava a tomar o medicamento há duas semanas e começou a ter problemas de sono. Segundo o pai, era um jovem saudável até essa altura.
"Ele estava a tomar o medicamento há apenas uns dias, literalmente uns dias", contou Robert England à Reuters. "O que aconteceu mudou completamente as nossas vidas."
A par destas denúncias, nos EUA, existem ainda alguns processos pendentes que acusam a Merck de saber desde o início dos potenciais riscos e de os ter menorizado nos relatórios enviados aos reguladores.
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