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Alergia ao leite: "Há muito a ideia de que 'só um bocadinho não faz mal' ou que é uma mania dos pais"

Lucília Galha 23 de julho de 2025 às 07:00

É a alergia alimentar mais prevalente na primeira infância e pode ser difícil de diagnosticar, porque há sintomas que confundem - mas deve ser levada a sério. Saiba a que sinais deve estar atento e que cuidados ter.

É a alergia alimentar mais comum entre os mais novos: afeta até 7,5% dos bebés. E a sua prevalência, à semelhança das outras alergias alimentares, está a aumentar. O diagnóstico nem sempre é fácil e suscita muitas dúvidas aos pais. Mas há casos que não deixam margem para dúvidas. Mensagens importantes: se diagnosticada, leve a sério os cuidados a ter e os alimentos a evitar. Outra: há tratamento e tem tendência a ser uma condição transitória. ÀSÁBADO, a médica imunoalergologista do Hospital CUF Descobertas, Marta Chambel, esclarece os principais mitos relacionados com este problema e tudo o que pais e educadores devem saber para proteger os filhos.  

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Por que razão a alergia ao leite de vaca é a mais prevalente na primeira infância?

Prende-se, sobretudo, com o facto de ser um dos primeiros alimentos introduzidos na dieta do bebé e também o seu alimento mais importante durante vários meses. Além disso, há também que ter em conta a imaturidade do sistema digestivo e do sistema imunológico.

Que percentagem de bebés apresenta este tipo de alergia?

A prevalência real não é conhecida e varia de acordo com vários fatores, por exemplo, a população estudada e os critérios de diagnóstico. Quando o diagnóstico é feito mediante questionário de sintomas, a prevalência é mais alta do que quando é feito por um médico, com recurso a testes cutâneos, análises, prova de provocação oral [procedimento médico usado para diagnosticar alergias a alimentos ou medicamentos]. De um modo geral afeta cerca 1% das crianças e, nos bebés até aos 12 meses, a prevalência é de 2 a 3%.

É uma alergia transitória ou fica para a vida?

A alergia a proteínas de leite de vaca (ALV) é tendencialmente transitória. Felizmente, a maioria das crianças com ALV (cerca de 80% dos casos) ultrapassa esta alergia entre os 3 e os 5 anos.

A que sinais é que os pais devem estar atentos?

O diagnóstico pode ser desafiante, mas, felizmente, são muitos mais os casos em que os sinais e sintomas não deixam margem para dúvidas. As cólicas são um desconforto habitual na primeira infância e a verdade é que raramente estão associadas à ALV. No entanto, casos raros existem e, em caso de dúvida, os pais devem procurar aconselhamento médico. Alguns dos sinais de alerta mais importantes e a que devemos estar atentos é a ausência de aumento de peso ou fezes com muito muco.

Como despistar relativamente a um desconforto intestinal comum?

É importante relembrar que, felizmente, na grande maioria dos bebés, o desconforto intestinal não é causado por ALV ou qualquer outra alergia alimentar. No entanto, se existir de facto suspeita de ALV como causa do desconforto intestinal, a confirmação do diagnóstico é clínica: dieta de evicção de proteína de leite de vaca durante duas semanas e avaliar o bebé após este período.

Nos bebés que são amamentados, a mãe deverá eliminar as proteínas de leite de vaca da sua dieta; nos bebés que bebem leite adaptado devem mudar para um leite isento de proteína de leite de vaca (fórmula extensamente hidrolisada ou, em casos muito pontuais, fórmula de aminoácidos).

A eliminação de proteínas de leite de vaca da dieta materna (caso seja amamentado) ou a alteração de leite adaptado para uma fórmula de leite extensamente hidrolisado (se o bebé estiver com leite adaptado) não deve ser feita de ânimo leve e sem aconselhamento médico.

Que desafios coloca esta alergia, que tipo de precauções os pais devem ter?

O principal desafio é mesmo evitar a ingestão e o contacto com proteínas de leite de vaca. Conviver com esta alergia implica vários cuidados que nem sempre são fáceis de pôr em prática: ler os rótulos de todos os alimentos e explicar à família, amigos, escolas e locais de restauração que não pode mesmo existir contacto ou ingestão do alimento. Existe ainda um longo caminho a percorrer para que, quem tem ALV, possa comer fora de casa despreocupadamente e sem risco de ter uma reação alérgica.

Infelizmente, existe ainda muito a ideia de que "só um bocadinho não faz mal" ou que a alergia ao leite é uma mania dos pais, ou ainda que ALV e intolerância a lactose são iguais – quando não são e não têm nada a ver uma com a outra, quer em relação aos sintomas quer em relação aos riscos em caso de ingestão ou contacto acidental.

Há tratamento, por exemplo, um género de dessensibilização?

Existe sim e representa um avanço incrível no acompanhamento e abordagem desta doença. Chama-se Indução de Tolerância Oral, e é muito importante – sobretudo em casos persistentes (em que não existe resolução natural e espontânea) – pois devolve a muitas famílias a qualidade de vida e a possibilidade de terem uma vida normal no que diz respeito à alimentação.

Alguns dos sinais de alerta mais importantes são a ausência de aumento de peso ou fezes com muito muco.

Marta Chambel, médica imunoalergologista do Hospital CUF Descobertas

Cargo

Dado o aumento da prevalência de alergias alimentares de forma geral, há cada vez mais casos deste tipo de alergias em bebés?

De um modo proporcional, sim. A prevalência de alergia alimentar aumentou e, proporcionalmente, a prevalência de ALV também.

O que justifica esse aumento?

O aumento de prevalência de casos de alergia alimentar é multifatorial e não há propriamente uma relação causa-efeito. Há vários fatores que podem influenciar, por exemplo: alterações ambientais, fatores epigenéticos (ou seja, fatores do ambiente que influenciam a manifestação de características genéticas), alterações no microbioma intestinal (por exemplo, pelo uso excessivo de antibióticos).

Estes casos precisam de acompanhamento médico regular?

Sim, e devem ser acompanhados por um médico imunoalergologista. É importante acompanhar os pais e ajudar nas dúvidas que vão surgindo, sobretudo em relação à evicção da proteína do leite de vaca e à introdução de novos alimentos. Além disso, a ALV pode ser apenas a primeira manifestação de doença alérgica que depois poderá tornar-se em como rinite, asma, eczema. É importante ir verificando se surgem sintomas sugestivos destas doenças.

Pode contar-me o caso mais impressionante que acompanhou?

Houve uma menina que acompanhei desde o primeiro ano de vida cuja ALV se manifestava por anafilaxia – tinha urticária, tosse e falta de ar quando ingeria ou contactava com proteína de leite de vaca. Fui acompanhando a evolução desta menina ao longo dos anos e, quando os valores da alergia já eram quase negativos, por volta dos 3 a 5 anos de idade, propus aos pais fazer uma prova de provocação oral – consiste em expor a criança ao alimento (neste caso o leite) em quantidades progressivamente maiores e em intervalos regulares, em ambiente hospitalar controlado e vigiado pela equipa médica e de enfermagem.

Deixo a nota de que a reintrodução de um alimento ao qual existiu alergia deve ser sempre feita em meio hospitalar e nunca em casa. Esta menina começou a prova, estava a correr bem e quando a dose cumulativa de leite de vaca atingiu 70ml começou a espirrar de forma repetida. Entre começar a espirrar, aparecer urticária e ter ficado prostrada e não reativa demorou menos de um minuto.

Fez adrenalina injetável (o tratamento de primeira linha nas reações anafiláticas) e a restante medicação e ficou bem. Falo sempre do caso desta menina para lembrar que, mesmo quando as análises da alergia ao leite já são negativas, a reintrodução deve ser sempre em meio hospitalar. Se não estivesse no hospital e não fosse medicada de imediato o desfecho poderia ter sido diferente. Pela gravidade que a situação pode acarretar, reforço sempre que é importante reintroduzir o alimento em hospital de dia e em condições de segurança.

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