Um papiro do século II d.C. com a estratégia de um procurador conta como dois homens tentaram fugir aos impostos devidos após a venda de um escravo com técnicas ainda hoje utilizadas.
Em 1789 Benjamin Franklin escreveu uma carta onde afirmava "nada no mundo é certo exceto a morte e o pagamento de impostos". Mas um papiro descoberto no deserto da Judeia (atual Israel e Jordânia) e que foi agora analisado mostra que tão certo como o pagamento de impostos é a tentativa de fuga aos ditos. Pelo menos desde o século II d.C.
Hendrik Schmidt/picture-alliance/dpa/AP Images
De acordo com o jornal norte-americano The New York Times na Roma Antiga a fuga aos impostos era um crime tão grave que as penas para quem o fazia variavam entre multas pesadas, exílio permanente, trabalhos forçados em minas de sal e, no pior dos casos, damnatio ad bestias, ou seja, uma execução pública em que os condenados eram devorados por animais selvagens. Um papiro descoberto há algumas décadas mas só agora decifrado revela a estratégia desenvolvida por um procurador da Roma antiga para lidar com um caso de evasão fiscal. De acordo com as notas, em causa estava um esquema de fuga aos impostos que envolvia a falsificação de documentos num negócio de venda/libertação de escravos. Os acusados eram suspeitos de tentar evitar o pagamento dos impostos devidos em negócios de escravos, simulando uma libertação que nunca aconteceu.
As notas identificam os suspeitos como Gadalias, o filho de um notário com ligações à elite administrativa local e que já havia sido condenado por vários crimes, e Saulos, seu "amigo e colaborador" e suposto cérebro do golpe. O drama jurídico decorreu durante o domínio do imperador Adriano, por volta de 130 d.C., revela o estudo publicado na revista científica Tyche, da Universidade de Viena.
"O papiro reflete a desconfiança com que as autoridades romanas viam os seus súbditos judeus", disse Anna Dolganov, historiadora do Império Romano do Instituto Arqueológico Austríaco, que decifrou o pergaminho. A investigadora refere que os dois arguidos poderiam estar envolvidos na preparação de uma revolta contra o império romano (Bar Kochba). O seu trabalho revela como as instituições romanas e o direito imperial podiam influenciar a administração da justiça num contexto provincial onde relativamente poucas pessoas eram cidadãos romanos. Os investigadores calculam que os dois arguidos fossem de origem judaica.
Apesar da origem do papiro ser desconhecida, Dolganov suspeita que tenha sido encontrado em meados do século XX em Nahal Hever, um desfiladeiro de paredes íngremes a oeste do Mar Morto, onde alguns rebeldes envolvido com a Bar Kochba se refugiaram.
Dolganov refere, em entrevista ao New York Times, que o processo de decifrar o papiro foi moroso já que as letras "são minúsculas e densamente compactadas" e o grego em que está escrito o documento "é cheio de termos jurídicos". "Não ajuda o facto de só termos a segunda metade, ou menos, do original", disse ainda a investigadora.
Dolganov contactou advogados fiscais modernos que explicaram que o processo de evasão usado por Gadalias e Saulos não diferia muito da forma como hoje em dia se foge a impostos. Houve transações de ativos falsificadas e ocultação de ativos.
O caso contra Gadalias e Saulos foi reforçado por dados fornecidos por um informador que avisou as autoridades romanas - e o texto sugere mesmo que o informador era o próprio Saulos, que denunciou um outro parceiro de negócios - Chaereas - para se proteger numa investigação financeira que se aproximava, naquilo que se pode considerar uma delação premiada.
De acordo com os dados recolhidos, Saulos terá vendido ficticiamente escravos a Chaereas, retirando-os da Judeia e passando-os para a Arábia. "Assim, no papel, os escravos desapareciam na Judeia, mas nunca chegavam à Arábia, tornando-se invisíveis para os administradores romanos", explica Dolganov. "A partir de então, todos os impostos devidos sobre estes escravos podiam ser evitados".
O império romano tinha um sistema sofisticado de controlo da propriedade de escravos e de cobrança de vários impostos, que ascendiam a 4% sobre a venda de escravos e a 5% sobre as libertações dos mesmos. "Para libertar um escravo no império, era necessário apresentar provas documentais da propriedade atual e anterior do escravo, que tinham de ser registadas oficialmente. Se algum documento estivesse em falta ou parecesse suspeito, os administradores romanos investigavam", refere a investigadora.
O papiro não revela o veredito final. Mas uma coisa é certa: a fuga dos impostos no império romano era uma questão de vida ou morte.
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"O afundamento deles não começou no Canal; começou quando deixaram as suas casas. Talvez até tenha começado no dia em que se lhes meteu na cabeça a ideia de que tudo seria melhor noutro lugar, quando começaram a querer supermercados e abonos de família".