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Transição de género nas escolas: há um guia para os pais que a querem travar

Marisa Antunes 20 de dezembro de 2025 às 17:18

Associação de juristas lança directrizes para as famílias que suspeitam de doutrinação ideológica junto dos filhos.

Podem os alunos, menores, das escolas públicas e privadas em Portugal exigir aos professores que aceitem um nome auto-atribuído e o uso de pronomes de género oposto ao seu sexo biológico, sem o consentimento e conhecimento dos pais? Podem. E uma vez tendo conhecimento e não consentindo, os pais podem pedir às escolas para contrariar a exigência dos filhos? Nem por isso, de acordo com o novo guia inclusivo para a comunidade LGBTI+ que prevê, em última instância, a possibilidade de os pais serem denunciados à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) por transfobia, correndo o risco de perderem a tutela dos seus filhos. 
Luís Guerreiro
O modelo replica outros, semelhantes, aplicados, no meio de muita controvérsia, em estabelecimentos escolares de países como o Canadá, a Austrália ou em alguns estados dos EUA, por exemplo, e já estava contemplada no manual Direito a Ser nas Escolas, aprovado pelo PS - que foi contestado pela Direita em fevereiro deste ano. Entretanto, há pouco mais de dois meses, a Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (CNPDPCJ), afeta ao ministério da Segurança Social, com o apoio da Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, lançou o Guião de Boas Práticas para a Promoção dos Direitos e Proteção de Crianças e Jovens LGBTI+ feito pela Casa Qui, uma associação LGBT, que defende, no capítulo referente às boas práticas (pág. 14), o seguinte: “não revelar a identidade de género (...) da criança ou jovem à sua família sem a autorização da mesma”; em caso de “violência familiar, seja ela verbal, psicológica ou física (…) da criança ou jovem, comunicar a situação à Comissão de Proteção de Crianças e Jovens (CPCJ) local, sempre que possível em articulação e com o conhecimento da vítima”.   Mas será bem assim? Serão os pais obrigados a acatar este tipo de diretrizes escolares, mesmo que emanadas do Governo? “Não. A Constituição da República Portuguesa, tal como várias convenções internacionais ratificadas por Portugal, reconhecem que a família é a célula fundamental da sociedade e que são os pais os primeiros responsáveis pela educação e desenvolvimento dos filhos. Não compete ao Estado substituir-se a eles”, defende Afonso Teixeira da Mota, presidente da associação SALL, Defesa da Liberdade, que lançou esta semana o Guia de Direitos dos Pais na Escola. A instituição, filial da americana Alliance Defending Freedom, presente em vários países (soma já algumas vitórias judiciais nesta matéria) e maioritariamente constituída por juristas, elencou todos os artigos que dão força de lei aos direitos dos pais e reuniu-os num guia que pode ser acedido através do seu portal e usado como argumentação junto das direcções escolares.  Para os pais de Maria (nome fictício), o guia do SALL chegou tarde. A filha, que estudou na escola artística António Arroio, em Lisboa, “iniciou a sua transição de género em termos sociais com o apoio de toda a comunidade escolar do estabelecimento”, lamenta o progenitor (que pede confidencialidade), realçando que só tiveram conhecimento que a filha “se identificava como um rapaz” durante uma reunião de pais.  “A professora usava um nome masculino e olhava insistentemente para nós, que não estávamos de todo a perceber o que se estava a passar. No final da reunião abordámos a professora e ela explicou-nos, um pouco embaraçada, que aquele era o nome ‘social’, masculino, escolhido pela nossa filha. Foi assim que soubemos que ela se identificava como trans”, conta ainda o responsável, um dos fundadores do grupo de pais da plataforma internacional Genspect - em Portugal, Juventude em Transição - que visa alertar para a necessidade de uma cuidada abordagem psicoterapêutica para jovens com questões identitárias. Uma abordagem que, na sua opinião, é essencial fazer antes de iniciarem o processo de transição sexual assente em terapia hormonal e em cirurgias irreversíveis de redesignação de sexo. A Genspect, uma organização presente em mais de 30 países (Europa, Canadá, Estados Unidos, Austrália, etc), reúne médicos, psicólogos, pessoas detrans (que se arrependeram da transição) e famílias com filhos em questionamento identitário.  Afonso Teixeira da Mota, da SALL, lamenta que estes pais não tenham recorrido à associação para fazer valer a sua voz contra a escola. “Os pais podem sempre recorrer a nós. Para casos como este, da António Arroio, nós iríamos bater-nos, juridicamente, para que os pais pudessem exercer os seus direitos parentais”, sublinhou ainda o advogado.  A SÁBADO contactou a direcção da Escola António Arroio, mas até à hora do fecho da peça, não obteve resposta. Recentemente, a escola esteve sob os holofotes das redes sociais pois tinha como aluna Carolina Torres (Noori), uma jovem igualmente com questões identitárias. Carolina esteve desaparecida durante várias semanas, suscitando uma busca desesperada dos pais - o seu corpo apareceu sem vida há pouco mais de um mês.  

O alerta viral de uma mãe

Na conferência da SALL esteve também Filipa Fernandes, a mãe de Oeiras que se tornou inesperadamente viral nas redes sociais por confrontar Isaltino Morais, o presidente camarário, com a transmissão do conteúdo do filme animado Família Biscoito, da Amplos, associação LGBTI+, integrado numa ação da Oeiras Educa+, na turma do seu filho, de oito anos, sobre a diversidade sexual e o conceito de identidade de género.  “Em local algum do email que recebi da professora vem referido que as crianças iriam ver um vídeo com o selo da Amplos. No email que enviaram aos pais apenas se refere que esta pessoa externa iria assegurar uma acção que ‘aborda a importância de fazer respeitar os outros, a questão da justiça, da não violência e do cuidado em proteger o ambiente que nos rodeia”, contou a mãe, na conferência, realçando que o vídeo é “introduzido de forma subtil” e que “nem a professora tinha noção do conteúdo do vídeo”.  Por parte de Isaltino Morais e do vereador da Educação da câmara de Oeiras já veio a garantia que o vídeo da “Família Biscoito” da Amplos, vai ser retirado dos conteúdos escolares de todas as escolas do concelho, tal como a SÁBADO já tinha noticiado. 

Multiplicam-se os processos judiciais

Apesar de só agora a discussão começar a ser feita por cá, há muito que o tema é escalpelizado em outros países, principalmente nos Estados Unidos, onde existem vários casos judiciais em curso interpostos por pais indignados com as políticas de inclusão colocadas em prática nas escolas no tempo da administração Biden; ou no Reino Unido, por exemplo, onde grupos de pais processaram o Estado por colocar em prática diretrizes semelhantes às existentes no guião da Comissão Nacional de Promoção dos Direitos e Proteção das Crianças e Jovens (e subscrito pelos ministérios da Segurança Social, Educação e Juventude). Keir Starmer, o primeiro-ministro trabalhista, acabaria mesmo por determinar que todas as questões ideológicas fossem retiradas dos currículos escolares, uma reforma de conteúdos que já tinha começado a ser feita pelos Tories antes de perderem as eleições. Vários estudos, o mais importante dos quais será o Cass Report, uma avaliação de várias investigações usadas pela medicina de afirmação de género, já tinham dado conta do efeito explosivo das transições sociais no número de casos de jovens que concluem na íntegra o processo de transição de género (incluindo a toma de hormonas e cirurgias de redesignação de sexo). Praticamente todas as crianças e jovens envolvidos no mega-escândalo médico que viria a determinar o encerramento do maior hospital de medicina de género da Europa, o Tavistock, em Londres, iniciaram a sua jornada nas escolas.   

O que dizem pais, escolas e o CDS

Perguntámos à Confederação Nacional das Associações de Pais (Confap) se existem queixas de pais sobre o assunto. E qual o número. Apesar da nossa insistência, ao longo de três dias, Mariana Carvalho, a presidente da instituição, nunca se mostrou disponível para responder. Tentámos igualmente perceber qual a opinião da representante dos pais sobre o guião da CNPDPCJ, elaborado pela Casa Qui, e se as diversas associações de encarregados de educação de escolas de todo o país conhecem já o teor do mesmo (por divulgação da Confap), mas tal não foi também possível.  Na anterior polémica, a propósito das supostas ‘amarras ideológicas’ sinalizadas pelo primeiro-ministro, Luís Montenegro, da disciplina de Cidadania e do manual Direito a Ser nas Escolas que promove a transição social de menores nas escolas sem o consentimento dos pais (página 17), em tudo similar ao atual guião, Mariana Carvalho não viu “malefícios”, defendendo, em declarações ao jornal Público, que o  documento  está “a tentar garantir que a escola seja um espaço de bem-estar, acolhedor e seguro”.  Já Filinto Lima, presidente da da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP) referiu à SÁBADO que “as escolas cumprem a legislação emanada superiormente, ajustando as respostas às necessidades de cada comunidade educativa, tentando garantir o bem estar físico e psicológico dos discentes”. Já quanto “às questões relacionadas com o género”, estas “são trabalhadas na disciplina de Cidadania e Desenvolvimento, bem como no abordadas no Programa de Educação para a Saúde (PES), em articulação com as unidades de saúde local (a presença frequente de enfermeiros nas escolas promove uma gestão mais eficaz destas situações) e a tutela”,  um processo que ainda estará a decorrer. A ANDAEP, recorde-se, pediu o veto presidencial à lei da autodeterminação de género nas escolas, que Marcelo Rebelo de Sousa viria a concretizar. A SÁBADO contactou também o grupo parlamentar do CDS-PP, o único que questionou o Governo sobre o atual guião, sobre a possibilidade de este "contradizer o compromisso assumido pelo primeiro-ministro e as orientações políticas deste Governo" quanto ao que os centristas descrevem como “promoção de ideologia de género nas escolas portuguesas”.  A resposta a esta questão ainda não chegou, com o prazo a terminar formalmente no próximo dia 21, adiantou fonte oficial do grupo parlamentar, mas o CDS voltou a sublinhar que defende “a prioridade das famílias na educação das crianças, consagrando o papel insubstituível dos pais na educação dos seus filhos”.  Em nota enviada à redacção, o CDS-PP refere que a sua posição “está em linha com a Declaração Universal dos Direitos Humanos, que proclama que “aos pais pertence a prioridade do direito de escolher o género de educação a dar aos filhos” (art. 26.º), bem como a Convenção Europeia dos Direitos do Homem e a Convenção Internacional sobre os Direitos da Criança”. Os centristas citam ainda alguns dos artigos da Constituição da República Portuguesa, igualmente referenciados no guia elaborado pela SALL como o art. 36.º (“os pais têm o direito e o dever de educação e manutenção dos filhos”) e o art. 68.º ( “os pais e as mães têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação”.  Questionámos também o ministério da Educação mas não obtivemos resposta até ao fecho da edição.  A Associação de Defesa da Liberdade SALL foi a entidade que fez o pedido formal à Provedoria da Justiça a requerer a inconstitucionalidade da lei contra as terapias de conversão. Este pedido foi aceite pela então Provedora da Justiça, Maria Lúcia Amaral, atual ministra da Administração Interna, há cerca de oito meses e aguarda ainda resposta do Tribunal Constitucional.  

As respostas às dúvidas dos pais:

A introdução de matérias assentes no conceito de ‘identidade de género’ na disciplina de Cidadania tem causado polémica em Portugal, com os defensores a alertarem para a necessidade e respeito da sociedade perante a diversidade sexual das minorias e os críticos a alegarem que se trata de mera doutrinação ideológica inapropriada para menores.  No guia que elaboraram para os pais, a associação SALL - cuja missão  “assenta na defesa da liberdade de pensamento, expressão e educação por meios legais e recurso a vias judiciais”, segundo a sua plataforma - , elencou algumas respostas às principais dúvidas dos pais que vão chegando à associação: 

O meu filho é obrigado a frequentar aulas denominadas de “educação sexual” ou “formação cívica”?

Estas aulas ensinam às crianças que o género é fluido, que é uma construção social, e que existem várias identidades de género. Isto é contrário às minhas crenças. Em Portugal, a liberdade religiosa e a garantia de educação de acordo com as convicções morais e religiosas dos pais estão protegidas pela Constituição e pela legislação ordinária. Esta proteção visa assegurar que a educação escolar respeite os direitos fundamentais dos alunos e das suas famílias, garantindo o pluralismo de ideias e a liberdade de consciência.  (Art. 41 e 43, da Constituição da República Portuguesa (CRP) Desta forma, qualquer disciplina ou conteúdo que possa ser interpretado como uma imposição ideológica, religiosa ou contrária às convicções morais dos pais e dos alunos entra em confronto com as garantias constitucionais de liberdade religiosa e de educação. Além disso, a Lei da Liberdade Religiosa (Lei n.o 16/2001) reforça o princípio da inviolabilidade da liberdade de consciência e religião, prevendo, no artigo 11, que os pais têm o direito e podem assegurar a educação religiosa e moral dos filhos de acordo com as suas convicções. Adicionalmente, a referida lei também permite a objeção de consciência em relação a matérias e deveres que contrariem a própria consciência (art 12). Por outro lado, o Decreto-Lei n.o 55/2018, que estabelece o regime jurídico do currículo dos ensinos básico e secundário, determina que a escola deve promover a formação integral dos alunos, respeitando a diversidade cultural e religiosa. Assim, o currículo escolar não pode ser imposto de forma a violar a liberdade religiosa e de consciência, sendo obrigação das escolas respeitar a pluralidade de crenças. Concluindo, o Estado e as escolas não podem obrigar os alunos a frequentarem aulas ou disciplinas que contrariem as suas convicções religiosas e morais, sendo assegurado o direito à objeção de consciência e à recusa de participação nesses conteúdos. Esse equilíbrio entre a autonomia educativa do Estado e a liberdade religiosa e moral das famílias é essencial para garantir uma educação que respeite a diversidade e os direitos fundamentais de todos.

Quero educar o meu filho em casa, mas o Estado opõe-se a essa opção porque considera que as crianças têm de estar integradas socialmente. É mesmo assim?

Os pais têm o direito de educar os filhos em casa, de acordo com os seus princípios morais, religiosos e filosóficos, uma liberdade reconhecida pela legislação portuguesa. De acordo com a Constituição da República Portuguesa, no artigo 43.o, é garantida a liberdade de aprender e ensinar, assegurando aos pais o direito de orientar a educação dos filhos segundo as suas convicções. Esta possibilidade, conhecida como educação doméstica, está regulamentada pelo Decreto-Lei n.o 70/2021, que estabelece as condições para a prática deste regime, como a obrigatoriedade de inscrição em uma escola que supervisione o processo educativo e a avaliação periódica dos alunos.

Numa ocasião em que a minha filha apresentou sinais de alguma confusão em relação ao seu sexo biológico e ao que entendia ser o seu “género verdadeiro” (masculino), a escola forneceu-lhe informação sobre “transição de género” e sobre “bloqueadores de puberdade”, sem que me solicitasse consentimento prévio ou que me informasse. É legal?

A prestação de informação a menores sobre assuntos tão sensíveis como a expressão da sua sexualidade ou sobre intervenções médicas deve sempre ser precedida de informação e consentimento dos pais. Além dos textos normativos já referidos, a Lei n.o 15/2014, de 21 de março, que estabelece os direitos e deveres do utente dos serviços de saúde, assegura que qualquer prestação de cuidados de saúde deve ser precedida de informação ao paciente e do seu consentimento livre e esclarecido. No caso de cuidados de saúde a menores, a informação prévia deve ser prestada aos pais, enquanto representantes legais dos menores, a quem também cabe prestar o consentimento prévio. Por isso, a prática acima descrita constitui uma violação muito grave dos direitos dos pais e da família.
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