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Melanie Tavares: "Mesmo as situações mais comuns podem tornar-se traumáticas"

Lucília Galha 20 de abril de 2025 às 10:00

A psicóloga clínica teve um trauma na infância e parte da sua experiência para ajudar adultos e crianças a superarem estas situações. Num livro publicado recentemente fala da importância de não minimizar o sofrimento, nem usar o discurso "isso depois passa". E dá dicas de como procurar ajuda.

Aquele episódio aos 10 anos mudou a sua vida. Melanie Tavares presenciou a morte súbita de uma amiga e quase 40 anos depois recorda-se de tudo com clareza. Lembra-se do episódio em si e do pânico com que viveu depois disso - as crises de ansiedade, o medo de morrer "a qualquer altura". Esse evento fez com que perdesse vivências e momentos importantes da sua infância e adolescência mas acabou, mais tarde, por indicar-lhe um caminho: do trauma nasceu a sua vocação, a psicologia. 

A especialista, que trabalha no Instituto de Apoio à Criança, parte da sua própria história de vida para mostrar que há formas de cada pessoa ser ajudada - face a uma experiência que se tornou "emocionalmente impactante". Embora também reconheça que existem situações em que "a dor é tão profunda que a pessoa pode nunca recuperar".

O seu livro De tanto sofrer, esqueci-me de viver, editado pela Planeta, e que vai ser apresentado a 21 de abril, deixa pistas e estratégias para identificar e compreender os traumas, e também para saber ajudar quem possa estar a passar por esta situação. 

O que define um trauma?
O trauma pode ser definido como uma experiência emocionalmente impactante. Não se refere ao acontecimento em si, mas à forma como a pessoa o vive, sente e perceciona. Habitualmente causa um sofrimento psicológico e emocional profundo que poderá inclusive refletir-se na saúde física e que condiciona a forma com que a pessoa se posiciona na sua vida nas várias esferas: pessoal, profissional, social, etc.

Qual é a diferença entre o trauma nas crianças e nos adultos?
As crianças não possuem os mesmos recursos internos que os adultos para gerir e lidar com a adversidade. Muitas vezes nem são capazes de identificar os sentimentos e muito menos organizá-los num discurso verbal que lhes permita dar sentido ao seu sofrimento e permitir ao adulto avaliar a situação – tornando a ajuda mais difícil.

Por outro lado, tudo o que acontece numa idade precoce influencia o desenvolvimento integral da criança, e não poucas as vezes, bloqueios emocionais, interferem nas funções e capacidades cognitivas da criança, podendo comprometer as suas competências.

Os adultos possuem uma maior capacidade de reflexão e entendimento daquilo que foi o acontecimento e ainda que não consigam identificá-lo imediatamente, têm os recursos suficientes para uma análise e interpretação dos seus acontecimentos de vida. No entanto o trauma dos adultos tem um impacto também bastante significativo.

O que pode causar o trauma numa criança?
Para uma criança, o trauma pode ser causado por qualquer experiência adversa. Relembro que mais importante que o acontecimento, é a forma com que encara, sente e a interpreta o acontecimento. As situações mais comuns podem impactar tornando-se traumáticas, como a perda de um ente querido, de um animal de estimação, o abuso (físico, emocional ou sexual), negligência afetiva, separação dos pais, experiências de bullying, acidentes graves, exposição a situações de risco ou violência doméstica.

Tudo depende da perceção da criança, da sua vulnerabilidade emocional, das caraterísticas da sua personalidade, da sua maturidade, do seu suporte familiar e até da sua capacidade de compreender a situação.

Qualquer evento traumático, por maior ou menor que possa parecer, se não for devidamente trabalhado, poderá ser uma cicatriz para toda a vida.

Melanie Tavares, psicóloga clínica

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Como é que pais/cuidadores podem perceber se determinado episódio ou vivência foi traumático para os filhos?
Estando atentos a determinados sinais, nomeadamente mudanças no comportamento, como medo excessivo, dificuldade em dormir (com pesadelos frequentes ou insónias), alterações de humor, regressão de comportamentos (como voltar a chuchar no dedo ou fazer xixi na cama), evitamento de determinadas situações, lugares ou pessoas, apatia, agitação motora, perda de interesse em brincadeiras, entre outros. Poderá também demonstrar dificuldade em falar sobre o que aconteceu ou revelar-se emocionalmente fechada.

Diz no seu livro que de qualquer trauma é possível retirar algo positivo. Como interpretar isso à luz de uma violação, de um abuso sexual de menores, etc.
Esta ideia baseia-se no conceito de resiliência e superação. Obviamente que a afirmação assenta no princípio de que a pessoa conseguiu recuperar do trauma e está implícita no seu processo terapêutico. Quando a pessoa já foi capaz de se reorganizar e reconstruir a sua vida, já foram ultrapassadas as limitações inertes ao trauma. Quando a pessoa já conseguiu reconstruir a sua vida, encontrar novos significados e até desenvolver uma maior força emocional.

Isso não significa que o abuso ou a violação sejam "positivos", mas sim que a pessoa pode, eventualmente, usar a experiência para crescer, ajudar outros ou encontrar um novo sentido para sua vida. Claro, cada caso é único, e o processo é profundo e complexo.

Qual é a diferença entre um trauma e um medo ou fobia?
O trauma é uma experiência profunda que deixa uma marca emocional duradoura e pode afetar a pessoa de diversas formas. Já os medos e fobias são respostas exageradas ou irracionais a um estímulo específico, que não têm necessariamente de estar ligados a um evento traumático.

Por exemplo, podemos ter medo de andar de avião, mas se esse medo for exacerbado ao ponto de limitar as viagens neste meio de transporte, então poderá tornar-se uma fobia. Se a pessoa passou por uma experiência adversa durante uma viagem de avião e não consegue sequer aproximar-se de um avião, pode ter um trauma relacionado a esse evento.

Há traumas impossíveis de resolver?
Embora a maioria dos traumas possam ser tratados com apoio terapêutico e esforço pessoal, há casos em que a dor pode ser tão profunda que a pessoa nunca mais consegue recuperar. Penso naquele que, no meu entender, não tem bom prognóstico: a perda de um filho, sobretudo se for filho único. Não acredito que esses pais consigam recuperar da dor, acredito que possam sobreviver, mas não viver a partir desse acontecimento.

No entanto, qualquer evento traumático, por maior ou menor que possa parecer, se não for devidamente trabalhado, poderá ser uma cicatriz para toda a vida. Sem apoio psicológico para uma resignificação da dor compromete a capacidade de encontrar um sentido que a liberte do sofrimento.

Como se cura um trauma?
A cura do trauma envolve um processo complexo e, nalgumas situações, duradouro. Presume apoio psicológico, por vezes medicação que alivie sintomatologia associada, suporte familiar e social. O mais importante é dar tempo e espaço, criar um ambiente seguro para que a pessoa possa processar as suas emoções e experiências. 

Como é que os pais podem ajudar os filhos numa situação de trauma?
Podem ajudar criando um ambiente seguro e acolhedor. É importante ouvir a criança sem pressa, sem corrigir ou minimizar os sentimentos dela, validar os sentimentos da criança, procurar ajuda profissional, promover o diálogo e ter uma escuta ativa. Garantir rotinas de sono, alimentação, higiene. Incentivar os contactos com os pares, nomeadamente em contextos lúdicos. Garantir uma relação de confiança com a criança para que esta possa estar confortável para partilhar medos e angústias.

Há casos em que a dor pode ser tão profunda que a pessoa nunca mais consegue recuperar.

Melanie Tavares, psicóloga clínica

No livro refere vários truques para situações de ansiedade, como rasgar papel ou segurar na mão cubos de gelo. Por que razão resultam?
Esses truques funcionam porque ajudam a pessoa a conectar-se ao momento presente, distraindo a mente das sensações desconfortáveis que remetem para o evento traumático ou o que ele espoleta. O ato físico de rasgar papel ou segurar cubos de gelo ativa o sistema nervoso e pode ajudar a reduzir a intensidade emocional associada à ansiedade. No fundo é distrair a mente com um estímulo físico que a faça focar na ação.

Diz que o processo dói. "Tudo o que arde, cura", como diz a sabedoria popular.
A ideia refere-se ao processo terapêutico que, muitas vezes, sobretudo na fase inicial, causa desconforto, intensidade emocional, desorganização das emoções. A pessoa poderá sentir-se bastante desconfortável, está a reviver a dor e todas as emoções implícitas, mas isso faz parte do processo. A dor emocional é parte do processo de cura.

Há um reviver das memórias traumáticas, mas só esse enfrentamento e elaboração poderá levar ao final pretendido. Temos de deixar fluir e acolher de forma apaziguar a energia emocional associada ao trauma.

Como devemos lidar com os traumas dos que nos são próximos?
É essencial ser empático e paciente. Os traumas têm bastante impacto quer na família, quer nos amigos e muitas vezes no próprio local de trabalho (na relação com os colegas, na produtividade e assiduidade).

Devemos ouvir sem julgar e não minimizar o sofrimento – nunca insinuar que o acontecimento é desproporcional aos efeitos. Deve oferecer-se apoio, mas sem tentar acelerar o processo. Não deve remeter o discurso para frases como "isso é uma questão de tempo, depois passa".

Deixar a pessoa falar do que sente sem forçar detalhes. Não questionar diretamente, deixar que a pessoa se sinta confortável para partilhar. Encorajar o pedido de ajuda profissional, se necessário.

Qual foi a história que mais a marcou?
Todas as histórias de crianças que perderam os pais. Só tive casos em que perderam o pai. É muito difícil assistir ao sofrimento das crianças que perdem uma das figuras afetivas estáveis, de referência – na infância, os pais são vistos como securizantes e protetores.

Elaborar um luto com uma criança implica uma adaptação ao seu mundo e às suas crenças. Sem recurso à fantasia, mas adaptando a sua realidade de acordo com a sua maturidade que, algumas vezes, não corresponde à idade cronológica.

Temos de assegurar que a criança não cristaliza as emoções, não desenvolve um bloqueio emocional que condicione o seu desenvolvimento integral. As mães passam a ser o suporte principal e na maioria das vezes, elas próprias muito fragilizadas pela perda e pela ideia de que não vão ser capazes de acolher e dar suporte ao luto dos filhos.   

É mais difícil resolver o trauma numa criança?
Sim, devido à sua falta de competências e recursos emocionais para compreender o que aconteceu. No entanto, as crianças também têm maior plasticidade cerebral, o que pode facilitar a cura quando recebem o suporte adequado. O trabalho com uma criança geralmente exige paciência e técnicas específicas, nomeadamente muitas estratégias lúdicas.

Diz que é capaz de recordar todas as crianças que passaram por si. Essas histórias não a "assombram"?
Levo-as sempre no meu coração. Ainda as guardo, muitas já são adultas e já me trouxeram os filhos. Eu própria faço terapia para me ajudar a lidar e a encontrar a melhor estratégia para ajudar aquela criança e família, que está sempre implicada mesmo que indiretamente, no processo.

Isto não significa que não me afete, porque também me doi, mexe com os meus sentimentos, sobretudo desde que fui mãe. Mas não interfere na racionalidade inerente à minha conduta profissional, nem na minha vida pessoal. Sou humanista, rejo-me pela empatia e relação humanizada, não sou indiferente à dor, mas não impacta o meu bem-estar e saúde mental.

Por último, fale-me da sua própria história e de como o seu trauma acabou por definir a sua vida.
O meu trauma ajudou-me a encontrar um caminho, a descobrir uma vocação, a definir um projeto de vida. Ajudou-me a perceber a verdadeira dimensão de um evento traumático. O impacto que tem e quanto pode limitar a nossa capacidade de viver. De tanto sofrer, esqueci-me de viver os melhores momentos da minha infância e adolescência, as melhores experiências dos 10, 11, dos 13. Impactou muitos anos.

Acredito que os profissionais que já vivenciaram um trauma ou outra questão de saúde mental, estão mais aptos a compreender a dimensão do sofrimento do outro. E também acredito que a relação terapêutica ajuda a fazer o caminho de forma mais segura, serena e confiante.

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