Eram oito da manhã de 21 de Novembro de 2014 quando o advogado João Araújo entrou no avião com destino a Paris. Tinha de falar com José Sócrates, que se encontrava na capital francesa, e o telefone não era opção – há muito que o ex-PM estava sob escuta. Assim que encontrou o seu cliente, confirmou-lhe o que ele já antevia: no segundo em que metesse o pé em solo português, seria muito provavelmente detido.
No dia anterior, o filho de Sócrates ligara-lhe a partir de Lisboa. Aflito, queria dizer-lhe que a sua casa tinha sido alvo de buscas. E que o seu amigo Carlos Santos Silva, o motorista João Perna e o advogado Gonçalo Trindade tinham sido detidos no âmbito da Operação Marquês, que investigava alegados crimes de corrupção, branqueamento de capitais e fraude qualificada por parte do socialista.
Naquele instante de aflição, Sócrates sabia que não era expectável que lhe fosse dado tratamento especial. Não contava com essa "benesse" por parte do Ministério Público português. À sua espera, no aeroporto, teria, seguramente, a maior das humilhações da sua vida. Tinha de resistir, de evitar a prisão a todo o custo. Pediu ao advogado que informasse as autoridades nacionais de que se encontrava totalmente disposto a colaborar voluntariamente com a justiça. Eram 15h54 quando, à sua frente, João Araújo clicou na tecla "send" para remeter um e-mail dirigido ao director do Departamento Central de Investigação e Acção Penal (DCIAP), Amadeu Guerra. Dizia assim:
Incumbiu-me o meu constituinte, senhor engenheiro José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, de transmitir a V. Exa. o seguinte:
1- Chegou ao conhecimento dele encontrar-se em curso nesse Departamento Central de Investigação e Acção Penal uma investigação que o tem como suspeito e que, no âmbito dessa investigação, foram realizadas diversas buscas e detidas algumas pessoas.
2. Desconhecendo, embora, em concreto, o objecto dessa investigação, o meu constituinte tem o maior interesse em ser, com toda a possível brevidade, ouvido no âmbito dela, com vista a esclarecer o que deva e possa esclarecer.
3 – Apesar de, neste momento, se encontrar, por motivos da sua vida pessoal, ausente no estrangeiro, mais concretamente em Paris, dispõe-se a proceder aos acertos que forem necessários a comparecer onde e quando lhe for determinado para ser ouvido.
4 – Assim sendo, solicito a V. Exa que me faça, por este meio, notificar da primeira ocasião disponível para essa diligência, sem embargo de o senhor engenheiro José Sócrates se encontrar já a desenvolver os seus melhores esforços para apressar o seu regresso ao País para tender a qualquer necessidade de colaboração sua.
A angústia do ex-PM era tal que considerou que o mero envio de um e-mail não seria suficiente para alertar as autoridades. Tinha de esgotar todas as possibilidades, de demonstrar de forma muito clara que não planeava fugir, que se dirigiria pelo seu pé ao Ministério Público assim que chegasse a Portugal. João Araújo pegou no telemóvel e marcou o número de Amadeu Guerra. Perguntou-lhe se recebeu o e-mail. Negativo. Ainda assim, o director do DCIAP (Departamento Central de Investigação e Acção Penal) comprometeu-se a fazer chegar a informação a Rosário Teixeira, o procurador responsável pelo processo. Mas naquela fase dos acontecimentos já nada havia a fazer: o mandado de detenção fora emitido três dias antes e Rosário estava decidido a interrogar Sócrates o quanto antes.
Durante o dia, a dupla desesperou por uma comunicação do DCIAP a marcar uma inquirição ou um simples e-mail de resposta a confirmar a recepção do seu apelo. Em vão. Debatem o próximo passo a dar. Sócrates sentia que era seu dever regressar. E disse-o ao seu advogado:
- Eu fui Primeiro-Ministro, se não for eu a respeitar as instituições, quem é que as vai respeitar?
Quando, às 22h30, o avião da Air France aterrou na Portela, Sócrates ligou imediatamente o telemóvel. Fez uma chamada para um amigo ainda dentro do avião. A dada altura, interrompeu a ligação:
- Tenho de desligar, estão ali uns senhores à minha espera...
Os "senhores" eram inspectores da autoridade tributária e agentes da Polícia de Segurança Pública. Um dos polícias tirou-lhe educadamente o telemóvel. Outro deu-lhe ordem de detenção. Sócrates estava prestes a cair nas mãos da dupla mais mediática do sistema judicial português: o procurador Rosário Teixeira e o juiz de instrução criminal Carlos Alexandre.
A noite já ia longa quando Sócrates entrou, dentro de um veículo descaracterizado, no campus de justiça para ser constituído arguido. Desde que, poucos minutos antes, a SIC noticiara em primeira mão a sua detenção, as redacções transformaram-se num pandemónio. Alguns jornais, por já terem fechado a edição, não puderam dar a informação na edição em papel. Mas outros, como o Expresso, ainda foram a tempo. Nessa noite, o seu director, Ricardo Costa, apresentou, como habitualmente, o programa Expresso da Meia-Noite, na SIC Notícias. Terminada a emissão, entrou no carro e dirigiu-se para casa, situada na zona do Restelo. Mal acabara de pousar as chaves do automóvel quando o seu iPhone tocou. Do outro lado, alguém lhe deu a informação que lhe mudaria a noite. Sócrates fora preso. Difícil de acreditar; impossível de ignorar. Deu logo ordem para bloquear a impressão do Expresso – tinha de mudar a manchete - e deslocou-se para a SIC – a noite seria longa.
Ao mesmo tempo que as redacções dos principais títulos de média do país entraram em histeria, José Sócrates estava no campus de justiça a ser constituído arguido. Cumpridas todas as formalidades, desceu ao parque de estacionamento e ocupou o banco de trás de um veículo descaracterizado. Lá fora, o circo estava montado. No instante em que a sua figura surgiu, invulgarmente frágil, afundada no banco de trás do carro, os flashes das câmaras começaram a disparar. A alta velocidade, o veículo desapareceu na escuridão da noite. Próxima paragem: o edifício do Comando Metropolitano de Lisboa da PSP, situado em Moscavide, onde Sócrates passaria a noite. Entre os repórteres fotográficos presentes não havia dúvidas: aquilo que tinham acabado de reportar era História.
A entrada fez-se discretamente pela garagem. Já fora do carro, no piso -1, onde se situa a zona de detenção, foi pedido ao ex-PM que tirasse o cinto e os atacadores – duas medidas de prevenção destinadas a prevenir a possibilidade de suicídio. Percorreu um corredor estreito com cinco celas colectivas. Virou à direita, em direcção à zona das celas individuais, e ocupou uma das oito disponíveis. Quando, por fim, ficou isolado e olhou em seu redor, Sócrates terá chocado frontalmente com a sua realidade. Na noite anterior dormira no seu apartamento de luxo, situado numa das cidades mais glamorosas do mundo. Agora, à sua frente, o que via era um espaço decrépito, com pouco mais de 10 m2, uma pequena cama, uma casa de banho rudimentar e uma campainha para usar quando necessário. Levantou-se e tocou-a. Queria ir ao corredor fumar um cigarro, uma vantagem concedida pela PSP a todos os presos que não representam perigo. Também quis água. De sexta para sábado, foi o único detido a pernoitar ali. A solidão era total.
Pela manhã, barbeou-se e tomou o pequeno-almoço: pão com manteiga e um galão. Falou pouco com os agentes que acompanhavam, mas sempre que o fez manteve a cordialidade. Também quando acompanhou as buscas à sua casa manteve-se sorridente. Mais tarde, no Campus de Justiça, ocupou uma das celas de detenção, também no piso -1, e fez as mesmas refeições que os outros três detidos.
O interrogatório de Sócrates só começou às 9h38 de domingo, dia 23. Nesse dia, verificou-se uma pausa para almoço entre as 12h25 e as 13h15, com a audição a continuar até às 20h05. No dia seguinte, a sessão foi retomada às 10h07, registando-se pouco depois outro intervalo, entre as 11h52 e as 12h09. Durante a inquirição, que decorreu em ambiente de grande tensão, o juiz Carlos Alexandre confrontou o ex-Primeiro-Ministro com escutas alegadamente comprometedoras. A dada altura, Alexandre confrontou-o com uma conversa em que eram abordados aspectos da sua intimidade sexual. Sócrates explodiu. Desatou aos gritos e recusou-se a ouvir mais. Não estava disponível para ver a sua privacidade ser violentada daquela forma tão crua, tão intrusiva, tão imprevista – tão radical.
O interrogatório terminou às 12h34. Ao todo, o ex-governante foi ouvido durante 12h07. As alegações finais do MP e das defesas decorreram entre as 16h36 e as 19h46. A decisão de Carlos Alexandre sobre as medidas de coacção a aplicar a José Sócrates foi anunciada às 22h29. O antigo líder do PS ficaria em prisão preventiva, indiciado pelos crimes de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. No dia anterior, os restantes suspeitos do caso já tinham passado pelo crivo de Alexandre. João Perna, o seu antigo motorista, também estava preso, suspeito de posse de arma proibida, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. O advogado Gonçalo Trindade, depois de detido, ficou em liberdade, sujeito a termo de identidade e residência. E ao seu grande amigo Carlos Santos Silva fora aplicada a mesmíssima pena que a si: prisão preventiva pela alegada prática dos crimes de corrupção, fraude fiscal qualificada e branqueamento de capitais. A partir do instante em que foi detido, Sócrates sabia que o seu futuro estava directamente relacionado com o do seu amigo: se um cair, cairão os dois – e o inverso também é verdadeiro.
Eram 03h12 da madrugada de 26 de Novembro quando José Sócrates atravessou, sentado no banco traseiro de um Kangoo azul, os portões no Estabelecimento Prisional de Évora. A partir daquele instante, tornou-se oficialmente no preso preventivo mais famoso da história da democracia portuguesa. Estava cansado - física e mentalmente. Durante os 131 quilómetros que separam Évora de Lisboa, mudara várias vezes de viatura para despistar os jornalistas, ansiosos por uma imagem da sua desgraça. À chegada, cumpriu as formalidades rotineiras e foi-lhe atribuído o número de detido: seria o 44. Depois de conversar brevemente com alguns guardas, pediu-lhes, resignado:
- Deixem-me descansar...
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