Sábado – Pense por si

Catarina Martins, a senhora meio milhão de votos

Maria Henrique Espada
Maria Henrique Espada 25 de junho de 2016 às 09:30

Recorde o perfil da líder do Bloco de Esquerda, depois de ela ter conseguido um recorde de votos para o seu partido

Na noite de domingo, no cinema São Jorge, em Lisboa, o telefone de Catarina Martins não parou de tocar. Um dos telefonemas foi já no fim da jornada eleitoral, de Fernando Rosas, que não passou pela festa que transbordava para a varanda sobre a Avenida da Liberdade porque tinha estado a analisar os resultados na TVI. Só ligou quando entrou no táxi: "Ela estava satisfeita, mas também não é de entrar em euforias. Disse-me: ‘Os problemas vão começar agora.’" Rosas, um histórico do Bloco de Esquerda, diz, claramente satisfeito com o desempenho: "Estou como o Chico [Francisco Louçã], tiro-lhe o chapéu. Tiro-lhe o chapéu." Nessa noite, pouco antes, Louçã passara pelo São Jorge e tinha dito que Catarina era "a heroína desta campanha". Depois recusou mais declarações, sobre o futuro, "a Catarina é que vai dizer, tenho imenso gosto em ouvi-la". Luís Fazenda, outro fundador, também lá esteve, mas discreto, nem falou. Era a noite de Catarina, os ex-dirigentes apenas fizeram o respectivo beija-mão. O sucesso foi internacional. Pouco depois das projecções ligou Pablo Iglesias, do Podemos espanhol. O grego Alexis Tsipras também ligou, mas não logo nessa noite. O Bloco de Esquerda, depois de uma sucessão difícil de Francisco Louçã, de uma direcção paritária (dizia o BE) ou bicéfala (diziam os media), de dois maus resultados (legislativas de 2011 e europeias de 2014) e de ficar reduzido a oito assentos no parlamento, conquistou 19 deputados e 549.153 votos (10,2%). Foi o melhor resultado de sempre do partido e transformou-o na terceira força política do País, depois do PSD e do PS. Às 8 da noite, quando as televisões anunciaram as projecções com um resultado próximo disto – mas ainda aquém – a sala explodiu em palmas. Um militante, sentado nas mesas frente às televisões, suspirou: "Viva a Catarina!" Mudar de vida Terça-feira, 11 da manhã. Catarina pede desculpa pelo ligeiro atraso, que não é costume, na sede do BE em Lisboa, mas está visivelmente adoentada e tomou uns anti-histamínicos para conseguir cumprir a agenda. É a primeira vez que se vai fisicamente abaixo. Durante a campanha foi dito que tinha aprendido a colocar a voz. Ela ri-se: "Aprendi a colocar a voz aos 13 anos, quando fiz o meu primeiro curso de teatro. Bebo dois litros de água natural por dia, desde 1994, quando comecei a fazer profissionalmente coisas que exigiam ter a voz. Há coisas que não preciso de aprender." Sabe falar no tom certo para ser ouvida e fazer isso durar toda a campanha. Outros mostraram mais dificuldades: "Acontece a todos, um dia perdi a voz, há muitos anos, em palco, porque estava doente. Mas à partida há coisas que serão mais fáceis." Terá sido das poucas coisas em que ter sido actriz profissional pode, admite, ter ajudado na política. Em tudo o resto, a vida de Catarina Martins mudou radicalmente desde que assumiu a solo, sem a parceria de João Semedo, a liderança (embora o BE não use este termo) do partido. A actriz que vivia no Porto, ou melhor, num apartamento em Gaia, que ainda está a pagar, passou a ficar metade da semana em Lisboa quando foi eleita deputada, em 2009. No início da última sessão legislativa (e também do ano lectivo), a família mudou-se toda para a capital. O marido, Pedro Carreira, também actor, e ainda ligado à companhia portuense Visões Úteis, que ambos dirigiram, veio com as filhas, agora com 9 e 13 anos, para Lisboa. Vivem em Campo de Ourique e é Catarina que muitas vezes leva as miúdas à escola. Mas mesmo mais perto, só foram pontualmente à campanha da mãe: estiveram no almoço em Lisboa, no Pavilhão Atlântico, a mais nova mais entusiasmada com as bandeiras, a mais velha sem achar grande graça ao folclore. E foi tudo. Catarina faz o possível por marcar as fronteiras. É capaz de contar que usou as férias da família para escrever o livro Mitos Urbanos (de manhã, enquanto as filhas não acordavam), mas já acha melhor não revelar o local onde esteve (só que foi em Portugal) porque isso põe em causa a privacidade da família. Durante a campanha, os avós, paternos e maternos, "que embora não morem na mesma cidade estão presentes sempre que for preciso", deram uma ajuda. O marido, que também é militante do BE, apareceu algumas vezes. Esta semana as filhas disseram-lhe: "Ainda bem que já acabou." Do palco para a AR Como é que uma actriz do Porto vai parar a São Bento, Lisboa? "A culpa é do João", costuma responder Catarina à óbvia pergunta. O acima acusado, João Teixeira Lopes, assume sem problemas: "Em 2005 convidei-a para ser minha número dois na candidatura à câmara do Porto." Estava feito. Já a conhecia, quer como espectador de teatro, quer porque, como deputado, tinha a área cultural e Catarina, que dirigia a Plateia (Associação de Profissionais das Artes Cénicas) impressionava-o pelo empenho: "Era muito activa. Eles pediam para ser ouvidos, enviavam petições..." Pouco depois tornou-se militante. Na verdade, Catarina já tinha tentado inscrever-se antes, mas foi a inépcia de um BE ainda mal organizado que a deixou a bater à porta: em 2002 enviara um pedido de inscrição por email, a que ninguém deu seguimento. Como aparentemente estava mesmo destinada a entrar no BE, à segunda conseguiu ser militante. Começou, como no teatro, reivindicativa. Marisa Matias ainda se lembra que só a conheceu pessoalmente numa convenção do Bloco de Esquerda, há uns bons anos, e que estiveram as duas à conversa, "acabadas de nos conhecer", a debater como reivindicar mais espaço de intervenção para as mulheres dentro do próprio Bloco. O percurso de Catarina está cheio de curvas apertadas. Se "actriz" não é a profissão mais frequente numa ficha de deputado, as probabilidades também dão como remoto que uma estudante de Direito em Coimbra desista do curso para ir fazer teatro numa companhia fundada por si própria, no Porto. Foi o que ela fez. Achou Direito aborrecido, mas integrou o CITAC (Círculo de Iniciação Teatral da Academia de Coimbra) e percebeu que era teatro que queria fazer. Fundou, com amigos, o Visões Úteis e, em 1994, começaram a trabalhar, no Porto. Foi já aí que se formou em Línguas e Literaturas Modernas. José Wallenstein, um dos encenadores convidados, definiu à SÁBADO, em 2012, de forma certeira o papel de Catarina: "Era uma mulher de armas, aquilo era um grupo pequeno e ela parecia ser a energia física do grupo, tinha uma atitude de levar as coisas para a frente." Fazia de tudo, da dramaturgia à encenação, produção e operação de som – talvez não seja assim tão diferente de uma campanha eleitoral. A sua última personagem em palco foi em 2009, na peça O Anzol, da catalã Gemma Rodríguez, estreada no Teatro Municipal de Vila Real. Catarina era Lena, com um pai alcoólico que não vê há dois anos. Personagens em perda mas que "não perdem a esperança de apanhar o anzol da felicidade", reza o texto – uma perspectiva que o BE decerto aprovaria.O piano e a matemática Mas se Catarina saiu do teatro, o teatro nunca saiu dela: mesmo em Lisboa, João Semedo ficava surpreendido com a frequência com que ela lhe dizia que tinha ido ao cinema ou ao teatro. Nogueira de Regedoura, no concelho de Santa Maria da Feira, parece um lugar remoto para encontrar as origens da dirigente de um partido que parecia atrair em particular algumas elites urbanas. Mas é de lá a família da mãe de Catarina, Rosa, e era na casa da avó, professora de piano (a neta também aprendeu música), que Catarina passava as férias grandes de Verão com os primos, a subir às árvores ou a ler. Foi nessa casa que um tio-avô do PCP foi morto pela PIDE. Era uma família politizada e à esquerda, embora de várias esquerdas e com muita discussão política. Já o pai, Arsélio Martins, tem origem numa família de agricultores. O avô emigrou para o Brasil, a avó ficou a criar os filhos. Em 2007, Arsélio, professor de Matemática, esteve nas notícias, o que ainda não acontecia à filha: recebeu o Prémio Nacional do Professor. Entregue pelo primeiro-ministro. Uma televisão deu assim o acontecimento: "Sócrates premiou professor bloquista" – era deputado municipal em Aveiro, pelo BE. Os pais de Catarina foram professores cooperantes em São Tomé, e depois em Cabo Verde, primeiro em São Vicente e depois na Praia. Ela fez lá os primeiros anos de escola, com o irmão mais velho, João, e veio depois para Aveiro com os pais quando estes regressaram a Portugal. Com uma simples carrinha preta Ainda antes da campanha, já os comentadores elogiavam a perfomance mediática de Catarina. Até os de direita, como Marcelo Rebelo de Sousa e Pedro Santana Lopes. Os jornais escreviam sobre se e como tinha mudado de estilo e de visual, mas em tom positivo: tudo parecia ir melhor na campanha bloquista liderada por Catarina Martins, 42 anos e apenas seis de experiência parlamentar. No debate televisivo com Paulo Portas, opinião unânime dos analistas, fez um brilharete. "Cada debate foi preparado isoladamente, com a equipa habitual, e consultei pessoas diferentes", diz. Falou com Francisco Louçã, que já tinha debatido com Passos e com Portas, João Semedo enviou-lhe por email (foi operado às cordas vocais) notas e pesquisas sobre temas que tinha analisado, e foi ver os antigos debates de Louçã. Fez o trabalho de casa, mas não só: "Havia uma estratégia para os debates, que analisámos entre nós, e que era ir ao ponto mais fraco do programa [do adversário] e explicar o que queríamos que acontecesse após as eleições. Eu não fiz parte das jotas, não treinei aquelas coisas de ganhar discussões pelo argumento, tinha era temas que queria colocar na agenda política para a campanha, como a segurança social." E aqui põe finalmente de lado a modéstia: "Não creio que tenhamos sido malsucedidos." João Semedo concorda: "[Os restantes líderes] foram para os debates com ela a pensar que iam ser favas contadas e levaram pela frente com uma Catarina superbem preparada, de raciocínio rápido, politicamente muito eficaz." Catarina reconhece que ter escrito um livro, que retrata a situação do País em várias áreas, foi importante: "Actualizei as linhas e as trajectórias com os dados do primeiro semestre de 2015 e para os debates tinha tudo muito fresco." Ah, e sorriu nos debates. Se muito ou pouco é uma questão subjectiva, mas seguramente mais do que nos confrontos quinzenais com o primeiro-ministro. Justifica: "Tivemos essa discussão entre nós: achámos que o que falta ao País é esperança, portanto fazer uma campanha zangada com o que está mal não traz nada novo, porque isso já as pessoas sentem. Precisam de sentir que há quem tenha esperança de que o País seja viável. E isso também tem a ver com o tom." E com o sorriso. Garante que, ao contrário do que o seu sucesso fez suspeitar, não recebeu qualquer tipo de media training. Nem mudou de guarda-roupa. A fotógrafa do BE, Paulete Matos, apenas se encarrega discretamente de que não apareça com os colarinhos das camisas desalinhados. Na carrinha preta alugada que andava na estrada – era essa a caravana do BE e mais nada – iam com ela Jorge Costa, dirigente do BE (foi agora eleito deputado), Pedro Sales ou Catarina Oliveira (assessores de imprensa), Ricardo Moreira, o director de campanha, Paulete Matos, a fotógrafa do BE, e o condutor, um amigo de Catarina, Luís Ribeiro, que se voluntariou para a campanha: e era esta a "máquina". Ainda por cima, com uma líder estreante, que fazia as suas primeiras legislativas. Mas pareceu funcionar bem nas ruas, como tinha funcionado nos debates. "Percebemos que ela conseguiu naturalmente encontrar um registo próprio" a falar com as pessoas. Catarina costuma dizer que não gosta de "desfiles" em que não se fala com as pessoas, mas conseguiu impor um ritmo em que de facto falava mesmo com elas. E as pessoas iam ter com ela. Alguns dirigentes ficaram espantados. "As pessoas vinham tocar-lhe, falar-lhe, contar a sua história, o Francisco Louçã não gerava este tipo de emotividade", admite Teixeira Lopes. E adianta uma teoria: "Talvez por ser mulher, pequenina, afectiva, e muito simples e directa a falar, sem retóricas ideológicas." Ficou tão feliz com a arruada no Porto que lhe disse que ali era o "catarinistão". E viu algo inesperado: "Aquelas mulheres mais velhas, do povo – admitamos que não era um meio em que o BE tivesse muita penetração – adoram-na, vêm meter-se com ela a toda a hora." Trabalho em equipa Catarina gosta de trabalhar em equipa e todas as pessoas com quem a SÁBADO falou lhe apontam, sem excepção, a capacidade de ouvir o que lhe dizem e de daí retirar o que lhe pode ser útil. Mas se ouve, também fala: foi sempre muito interventiva nas reuniões, ainda antes de ser líder. Os bloquistas que a conhecem parecem convencidos de que o sucesso do efeito-Catarina vai continuar. Fernando Rosas nota como na noite eleitoral "antecipou -se, tomou a iniciativa", ao marcar a sua posição e desafiar o PS a fazer o mesmo. João Semedo diz que ela tem, "apesar da aparência frágil, nervos de aço e resistência física e mental". Talvez tenha, porque no parlamento, quando ela fala o CDS costuma começar a fazer barulho: há um arco acústico na arquitectura da sala que leva o som directamente aos ouvidos de Catarina, que muitas vezes tem de pedir aos colegas que lhe digam o que está Passos Coelho a responder, porque não consegue, mesmo, ouvir. Ainda assim, ninguém notou nunca que esse "ruído" lhe afectasse o discurso. E Fernando Rosas garante que o sucesso não lhe sobe à cabeça: "Ela nunca embarca em euforias, tende sempre para a prudência. A campanha deu-lhe confiança mas não a envaideceu." No fim de uma jornada que se sabia ter sido de sucesso, quando lhe perguntou sobre o que esperava, a líder do BE respondeu que estava "moderadamente optimista, vamos ver". Sábado, dia de reflexão, achou que ia conseguir descansar e dormir até tarde. Não conseguiu, acordou na mesma às 7 da manhã, como se fosse dia de campanha. Não ficou a sofrer com a antecipação do dia seguinte. Foi arrumar a roupa das miúdas. Artigo publicado na edição n.º 598, de 15 de Outubro de 2015.

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