Tomada de posse: Alerta, alerta, então há por aí risco de pântano?
Marcelo Rebelo de Sousa quer "estabilidade sem pântano". Não se vendam, portanto. Quem? O Presidente fez um “exame” ao governo (deu má nota, mas não chumbou o aluno) e apresentou-lhe trabalhos de casa novos. Mas quer, sobretudo “alternativa clara” - parece portanto que Rui Rio ainda não a deve ter construído. E diz que à segunda vai ser "mais difícil", mas "o mesmo". Claro, nem sempre foi - e não apenas neste ponto.
A DÚVIDA
Na descida, a pé, até à Assembleia da República, Marcelo Rebelo de Sousa, a caminho da tomada de posse, antecipou assim os próximos cinco anos: "Os segundos mandatos são sempre mais difíceis." Difíceis? Não. Em regra, no segundo mandado, os presidentes estiveram sempre bastante muito mais à vontade, mais livres para intervir, do que nos primeiros. Nenhum se mostrou mais tolhido ou em apertos do que na estreia. Isso gerou, sim, mandatos de maior tensão com os governos em funções – mas isso é outra coisa e é discutível que a dificuldade, nesses casos, recaia do lado de Belém. Marcelo só pode antever maiores "dificuldades" se porventura admitir implicitamente maior tensão face aos outros atores do poder. E isso ver-se-á.
Marcelo é neste momento um mistério, porque o Presidente que antecipa um mandato mais difícil é também aquele que termina o seu discurso a garantir que é o mesmo de 2016 e até "o mesmo de ontem". Sobre essa, que é uma das grandes questões sobre o segundo mandato, as palavras nada nos garantem, mais vale falarmos daqui a cinco anos. Como dizem os ingleses, the proof is in the pudding.
A MIRAGEM
Marcelo Rebelo de Sousa deixou cinco missões para o seu segundo mandato e vale a pena olhar para a que colocou em primeiro lugar. Disse-nos que "queremos continuar a viver em democracia" e "preferimos a liberdade à opressão". Mas o mais interessante foram os ingredientes que apontou como constituintes dessa democracia. Não hesitou em lembrar que houve duas eleições em pandemia (presidenciais e, antes, as regionais) e em destacar que umas (as regionais), "com subida da oposição em relação ao governo. Isto é democracia". De facto, nos Açores a direita chegou ao poder, destronando o PS. Teve o apoio do Chega, numa solução admitida por Marcelo e muito criticada pela oposição. E, reiterou Marcelo, "isto é democracia".
No continente, Marcelo não pareceu convencido de que "esta democracia", ou seja, a possibilidade de alternância, seja uma realidade. O Presidente deixou claro que é necessário que exista uma "alternativa clara na governação". Fica implícito que ela ainda não existe e que é preciso construi-la. Rui Rio é quem está no lugar para a fazer - e parece que para o presidente, ainda não chegou lá.
Uma das expressões usadas por Marcelo foi a de uma "estabilidade sem pântano". Para se perceber do que fala talvez valha a pena fazer a genealogia do termo. Foi usado por António Guterres no momento em que se demitiu de primeiro-ministro, na sequência de um resultado desastroso nas autárquicas de 2001 e em que percebeu que não tinha condições para continuar a governar com um governo minoritário. Depois ter já tido dois orçamentos aprovados in-extremis pelo deputado Daniel Campelo, em troca de promessas de estradas e da manutenção de uma fábrica de queijo em Ponte de Lima, o futuro que se avizinhava, com uma minoria reenfraquecida nas urnas, era passar cada orçamento a um preço cada vez mais alto e com embaraço crescente para a (in)dignidade do governo: o pântano. Recuou.
De que fala agora Marcelo quando diz que não quer o pântano? De condições de governabilidade, à esquerda ou à direita. Da negociação dos orçamentos à esquerda, em que o último teve já momentos de leilão de feira, com 1493 propostas finais dos partidos a entrar e 277 a serem aprovadas (face a 248 entradas e 142 aprovadas no OE para 2016)? Ou referia-se antes à probabilidade de a direita, se quiser governar, ter de formar uma "caranguejola" com todos, e com, pelo menos, apoio parlamentar do Chega – que de resto já reclama ministérios? Isto, quando Marcelo até dedicou bastante atenção (indireta, naturalmente) a André Ventura, defendendo uma democracia "com tolerância " e com "todos os portugueses" (eis a indireta)? E quando a solução nos Açores já teve momentos de instabilidade?
Quer à esquerda, quer à direita, no horizonte da governação, só há mesmo pequenos pântanos. Os desejos de Marcelo parecem nas condições imediatas difíceis de realizar.
De novo, fica a dúvida sobre o grau de intervenção que quererá ter. Mas isso não seria um discurso na Assembleia da República a clarificar. A resposta, seja ela qual for, será sempre dada noutras instâncias. Como no papel que terá tido, por exemplo, a incentivar Carlos Moedas a avançar em Lisboa.
O EXAME
Marcelo começou por fazer uma análise ao seu primeiro mandato. Talvez haja aqui um lapso: a primeira parte do discurso, na realidade, fez lembrar os exames de Marcelo na TSF, em que dava notas aos visados, mas aqui, em xeque, não esteve ele próprio, mas o governo. O presidente pareceu ter preocupações de equilíbrio: disse bem e disse mal.
"Portugal continuou o caminho das contas públicas equilibradas" e ao mesmo tempo conseguiu reforçar setor público, sairia até do procedimento de défice excessivo em 2017, "atenuaria suavemente a pobreza e algumas desigualdades sociais", mas fê-lo a um custo elevado, "adiando investimentos ou intervenções mais profundas", nas infraestruturas, na Justiça, no reforço do SNS. A ‘nota’ final ao governo não parece alta. Fez um retrato de uma governação com boas intenções mas semi-falhada.
A seguir, apresentou um caderno de encargos ao executivo de António Costa. Não só na pandemia ("ampliar vacinação, a testagem e o rastreio", evitar nova exaustão, desconfinar com sensatez e sucesso, "recuperar os adiamentos nos doentes não covid, estabilizar SNS") e não apenas em 2021, mas nos anos que se seguem: "Teremos de reconstruir a vida das pessoas", no emprego, nos rendimentos, nos laços sociais, nas vivências e nos sonhos. Para isso, será necessário "usar os fundos europeus com clareza estratégica, boa gestão e eficácia".
De novo, Marcelo parece fazer um aviso, mas a ficar aquém da clareza. Usar com "clareza estratégica"? Sim, mas a estratégia está definida e é clara. Marcelo concorda com ela? Sobre isso, o discurso foi omisso, hoje, como noutros dias: não se sabe em concreto o que pensa o Presidente da República sobre a receita escolhida pelo governo para aplicar a ‘bazuca europeia’. É legítimo que Marcelo possa não querer pronunciar-se sobre opções que são da governação. Mas, se não o faz, que sentido há em pedir clareza estratégica, se não é para avaliar a estratégia? Se for má, mas clara, o presidente nada diz e apenas exige que seja executada à risca?
Marcelo pediu também uma reforma administrativa, na justiça, nomeadamente no combate à corrupção. Em que sentido? Em cada ponto limitou-se a lançar temas, não lhes apontou um caminho. Como se viu pelas reações dos partidos, com Catarina Martins (BE, que teve uma candidata a correr contra Marcelo), que aplaudiu o tom "com todos" do discurso, e Francisco Rodrigues dos Santos (CDS, que apoiou Marcelo) a criticar a ausência de uma crítica ao plano da bazuca, o caminho importa.
O de Marcelo ainda não ficou claro desta vez.
Foi-o apenas na definição, coerente com o primeiro mandato, da sua visão do papel de presidente, com "rejeição de messianismos presidenciais", "no respeito pela diferença e pelo pluralismo" e "com qualquer maioria parlamentar". Veremos por onde entra a dificuldade.
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Boas leituras!