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Vânia está há 7 anos na Síria: “Senhor ministro salve as minhas meninas”

Nuno Tiago Pinto 27 de dezembro de 2024 às 07:00

Há quase sete anos que Delfina Lopes luta para retirar Vânia Lopes e as suas duas filhas, de 8 e 7 anos, de um campo de detenção na Síria. À SÁBADO garante que estava tudo tratado com o anterior governo para as trazer para Portugal mas que o atual executivo parou o processo. O Ministério dos Negócios Estrangeiros liderado por Paulo Rangel desmente esta versão e garante que o caso está a ser acompanhado.

"Os curdos foram falar com a minha filha. Disseram-lhe para se preparar que Portugal as ia buscar. A mim disseram-me para procurar casa para elas e entre maio e junho andei em Lisboa e Palmela a procurar um sítio para ficarmos. Mas desde que o novo governo tomou posse não me disseram mais nada. Nem me responderam às cartas. Pararam tudo". O desabafo é feito à SÁBADO, entre soluços, por Delfina Lopes, que vai mais longe e garante: "Se não tivesse mudado o Governo elas já estavam cá". 

GORAN TOMASEVIC/Reuters

Elas são Vânia Lopes Cherif e as duas filhas, Eya e Aicha, de 8 e 7 anos, que estão desde o início de 2018 detidas no campo de Roj, na Síria, sob controlo das Forças Democráticas Curdas, uma milícia que se celebrizou pelo papel fundamental no combate ao Estado Islâmico (EI). As três pertencem ao grupo de mulheres e cerca de 20 crianças filhas de portugueses que se juntaram grupo terrorista e cujo destino tem sido objeto de um intenso mas discreto e sigiloso debate entre o governo e as forças e serviços de segurança nacionais.  

Durante muito tempo, Delfina Lopes manteve a discrição que lhe foi sendo pedida, enquanto lhe garantiam que o assunto estava a ser tratado. Agora, diz, tudo mudou. "Desde maio que não me dizem nada. Estou farta de telefonar para eles. Fui há dois meses ao Ministério dos Negócios Estrangeiros (MNE) e escrevi cartas ao ministro e ao primeiro-ministro mas nem me responderam. Estou desesperada. A minha filha está muito doente. Anda com febre, diarreia, perde sangue. No outro dia teve que levar uma injeção e mal pode andar", conta. A situação tende a piorar com o inverno rigoroso da região e diz que não consegue compreender porque é que tudo mudou. "Estavam a preparar tudo. Os curdos falaram com a minha filha, ela fez as malas e deu tudo o que não precisava, ficou sem nada para este inverno", garante.

Contactado pela SÁBADO, o gabinete do ministro Paulo Rangel dá uma versão diferente: "O Governo tem acompanhado o estado em que cidadãs nacionais ou luso-descendentes se encontram em campos de detenção na Síria. Um eventual repatriamento deve sempre observar condições únicas de segurança e de plena integração em território nacional, envolvendo diversas entidades nacionais e estrangeiras. Não foi ainda tomada qualquer decisão, como também nenhuma decisão definitiva havia sido tomada pelo anterior Governo." Acrescenta ainda que "estão a ser consultadas diversas entidades para assegurar as devidas condições de segurança e avaliar eventuais riscos de radicalização, envolvendo igualmente parceiros europeus e internacionais. O assunto está a ser gerido com a discrição, a responsabilidade e a sensibilidade que exige." 

Viagem para a Síria e prisão 

Vânia Lopes, nascida em Carrazeda de Ansiães, vivia com a mãe na Suíça. Trabalhava como hospedeira no aeroporto de Genebra. Foi lá que conheceu Malik Cherif, um franco tunisino com quem viria a casar-se. "Se me perguntar como via o meu genro, digo-lhe que era uma pessoa maravilhosa. Tratou-me como se fosse mãe dele e à minha filha ainda melhor", diz Delfina Lopes. "Um dia disseram-me: ‘mãe, vamos de férias para a Turquia, queres vir?’ Eu disse que não, que preferia ir a Andorra ver a minha outra filha e os netos. Isto foi em 2015 e nunca mais a tornei a ver", lamenta.  

Durante quase três anos não teve notícias nem da filha nem da neta. "Dei-as por mortas muitas vezes", diz. Até que já no início de 2018 foi contactada: soube que Vânia tinha tido uma outra menina e que estavam todas presas no campo de Roj na Síria, para onde tinham sido levadas pelas forças curdas depois de tentarem fugir do território do Estado Islâmico.  

Desde então que Delfina Lopes tenta retirar a filha e as netas da Síria. Chegou a interpor uma Intimação para Proteção de Direitos, Liberdades e Garantias no Tribunal Administrativo de Lisboa. Na ação, consultada pela SÁBADO é descrito que Vânia "sobrevive" em "condições desumanas e degradantes, que se agravam de dia para dia e que" levaram ao agravamento do estado de saúde que a faz "incorrer em risco de morte". A ação cita inúmeras normas do Direito nacional e internacional para fundamentar a repatriação de Vânia e das filhas. 

O MNE opôs-se imediatamente a qualquer repatriamento. Depois de enquadrar os riscos jurídicos, humanitários e de segurança decorrentes do regresso da Síria de jihadistas ou dos seus familiares, alegou que os tribunais administrativos são incompetentes para apreciar a intimação uma vez que a repatriação é um ato político; que Delfina Lopes não tinha legitimidade para apresentar a intimação em nome da filha e netas e também não provou a urgência do repatriamento; que repatriar um nacional é um "ato discricionário da administração" que não é suscetível de intimação judicial; e que não é possível uma repatriação para Portugal que teria como destino final Espanha (onde Delfina Lopes vive). 

Na decisão, o tribunal entendeu que o repatriamento de um nacional não poderia ser considerado um ato político, porque visa a proteção de determinada pessoa, mas entendeu que Delfina Lopes não tinha legitimidade para interpor a ação - esta teria de dar entrada em nome da própria Vânia Lopes Cherif, o que não é possível por a mulher estar retida num campo na Síria onde não existe autoridade reconhecida ou representação diplomática portuguesa. 

Após a decisão judicial, Delfina Lopes tentou recorrer às autoridades espanholas – país onde vive – e às francesas – de onde a neta mais velha é nacional. Todavia, todas responderam que cabe a Portugal resolver o problema. "Ela tem a ficha limpa em Portugal, Espanha e em França", garante à SÁBADO. "Se Portugal não as quer, aqui onde eu estou querem-nas. Pensam que a minha filha é uma terrorista mas não é. Se o povo não a quer eu trago-a comigo e às minhas meninas também. Eu tendo o apoio do povo tenho tudo aqui. Mas não as consigo trazer." 

Nos últimos meses escreveu ao primeiro-ministro a pedir ajuda: "Senhor Montenegro, preciso do meu governo para salvar uma filha e duas netas que correm risco de vida." Escreveu também ao ministro dos Negócios Estrangeiros, Paulo Rangel, a descrever as condições miseráveis de vida nos campos da Síria. "Passam muito frio, não tem mantas e a tenda está rota e entra água. Deram tudo porque estava previsto sair no verão. Estou esgotada, cansada desta luta. Vivo cada dia com medo de receber uma má notícia (…). Já foram bem castigadas por tudo o que teve de passar. Foi torturada com cigarros e muito mais. Ela não matou ninguém. Podem acusá-la do que quiserem, o único pecado foi por os pés nesse maldito país enganada e isso não quer dizer que seja uma terrorista. Só espero que tirem as minhas meninas imediatamente antes que aconteça uma desgraça". E pede a Paulo Rangel ajuda para "salvar as minhas meninas".

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