Num debate quezilento e centrado quase só na vida profissional de Marques Mendes, o inexperiente Gouveia e Melo apertou o experiente Marques Mendes como até aqui ninguém fez. É de duvidar, contudo, que este era o debate que o eleitorado ali em disputa queria ver.
No arranque do debate entre Henrique Gouveia e Melo e Luís
Marques Mendes, o moderador José Alberto Carvalho ensaiou um preâmbulo: têm havido "acusações mútuas", mas ele tinha ali um “guião” com questões políticas
que esperava que ajudasse os espetadores a distinguirem os candidatos. O apelo caiu
em saco roto. Gouveia e Melo, que numa inversão do que vimos noutras contendas
dominou a iniciativa no debate, não largou o percurso “opaco” de “lobista” de Marques
Mendes na advocacia de negócios, pondo o adversário quase sempre à defesa e a chamar-lhe
“André Ventura” e “desesperado com as sondagens”. É incerto se a estratégia rendeu
votos junto eleitorado visado pelo almirante mas, num debate quezilento e centrado
quase só nesta questão, o inexperiente Gouveia e Melo encostou o experiente
Marques Mendes à parede como até aqui ninguém tinha feito nos debates televisivos.
Gouveia e Melo vs. Marques MendesRuben Sarmento/Medialivre
Gouveia e Melo teve primeiro a palavra e mostrou ao que
vinha: explorar as zonas cinzentas do percurso de Marques Mendes que, depois de
sair da política, foi ganhar a vida como consultor de uma firma de topo na advocacia,
a Abreu Advogados, pela qual foi muito bem pago. Na primeira intervenção apontou
que a lista de clientes revelada por Marques Mendes era “só uma parte do
universo” do candidato – e listou o facto de esses clientes serem mais do que o
que indicou nas resposta iniciais sobre o assunto, a sua recusa em dizer as
áreas nas quais trabalhou na Abreu ou a forma como disse numa entrevista que
não se lembrava de ter sido sócio de uma empresa que foi visada num processo relacionado
com os vistos gold.
“Está aqui à minha frente e tem de explicar aos portugueses”,
afirmou. "Deveria dizer qual é a sua profissão”,
juntou, não dando tempo, contudo, para a resposta. Levantando o livro “Os
Facilitadores”, de Gustavo Sampaio, sobre “como as empresas de advogados
misturam política, negócios e interesses”, Gouveia e Melo concluiu. “Não é que
seja contra a lei”, afirmou, tem a ver “com ética e o posicionamento”.
Marques Mendes levava uma estratégia de defesa: depois dos
elogios iniciais ao homem “do tempo da vacinação”, avançou para o retrato de
quem “delapidou enorme capital de popularidade e prestígio”, “uma desilusão”,
que “não trouxe nada de novo à política”, nem “experiência governativa” – trouxe
sobretudo “politiquice e insinuações permanentes”, atirou. O ângulo começou por
ser o de que Gouveia e Melo está preocupado “com as sondagens” e, por isso, “está
transformado em André Ventura”, um insulto que sugere que neste debate se
jogava uma contenda no mercado eleitoral moderado (se era um sinal, o almirante não o viu).
Mendes repetiu que nunca foi ouvido pela Justiça “sobre coisíssima
nenhuma” no processo dos vistos gold, esclareceu com uma "conferência" o objeto
de uma ida a Angola em 2024 e apontou que foi alvo de “uma denúncia anónima
arquivada pela Procuradoria Geral da República”. Quando o moderador recentrou a
questão na Abreu Advogados, Mendes afirmou que “não há relação de promiscuidade
entre politica e negócios” porque “nos últimos 18 anos” não teve nenhum cargo
político. “Dediquei-me à advocacia, que é a minha profissão. Tenho de trabalhar”,
disse.
Mas que trabalho fez? “Trabalho jurídico”, apontou, sem dar
qualquer detalhe, tal como já tinha respondido em outubro e em novembro à
SÁBADO. Gouveia e Melo não deixou cair a bola e continuou no assunto em termos ainda mais diretos. “O Dr. Marques Mendes é um lobista e facilitador de negócios
e deve aceitar isso”, afirmou. “Que serviços jurídicos fez? Foi a alguma barra
[de um tribunal], defendeu algum cliente? Não. Abre portas”, atirou. “O Dr. Marques
Mendes é um lobista e um facilitador de negócios e deve aceitar isso”, juntou. A
tática foi, com frequência, concluir com “o senhor quando vai para a presidência
não pode ser refém de interesses pessoais” e contrapor com a sua “folha” na Marinha.
Mendes foi obrigado a mudar ligeiramente a abordagem, seguindo
o que fizera com sucesso contra João Cotrim de Figueiredo: “o senhor não vai
atirar a pedra e esconder a mão, diga um exemplo em concreto de conflitos de
interesses”, desafiou. Mas Gouveia e Melo pareceu preparado para essa linha de argumentação. “O senhor em vez de se vitimizar tem de dizer quais são
os clientes e interesses que defendia”, ouviu de volta. “Dê-me um exemplo
concreto”, insistiu, naquela que não seria a última vez. Mendes foi repetindo que
Gouveia e Melo - que a dada altura pareceu sugerir que Mendes "conseguira" um arquivamento ultra rápido, tendo depois recuado - é “um homem desesperado”, “pior do que André Ventura e Cotrim de
Figueiredo” e que estava a centrar o debate em “insinuações”.
“O meu trabalho é honesto, limpo, dentro de toda a legalidade
e ética e nunca tive um problema de impostos”, afirmou Marques
Mendes, já o debate ia a mais de dois terços. Como contra-argumento lembrou que
Gouveia e Melo tem na sua campanha “Luís Bernardo, que é um general da
politiquice”, e que de resto “a candidatura é uma espécie de porto de abrigo de
socráticos [de Sócrates, o ex-primeiro-ministro, não de filósofos]”. Luís
Bernardo foi um dos ex-assessores de José Sócrates em São Bento e tem tido a sua
dose de problemas com a justiça na sua vida empresarial.
O moderador conseguiu, a custo, reorientar o debate para a
política já perto do fim – mas é de duvidar que, nessa altura, ainda houvesse foco
em quem via o debate para pensar em políticas públicas. Gouveia e Melo acusou Marques
Mendes de ter “posições redondas” e “incoerências” e Mendes atacou a ligeireza
com que Gouveia e Melo disse que o poder de demitir o governo deveria ser
exercido quando houvesse uma diferença grande entre o programa e a prática
(Gouveia e Melo disse que não o disse, mas, de facto, escreveu-o num jornal este ano). “O senhor não
preza um sentido de responsabilidade”, sublinhou Marques Mendes.
Já se estava no terreno da política, mas ainda houve uma troca acesa de farpas
sobre a idoneidade de Marques Mendes, com Gouveia e Melo a dizer novamente que
o seu adversário é um “facilitador” e Mendes a responder “eu não sou menos
sério do que o senhor e não sou um facilitador e um lobista”, repetindo que
estava perante “insinuações”.
Quem venceu o debate? Se “vencer” for controlar o
debate e pôr o adversário à defesa então venceu Gouveia e Melo. Mas se “vencer”
for sair do debate com mais votos, não é certo que o predomínio tão grande do
tema centrado na idoneidade de Mendes seja benéfico para Gouveia e Melo junto do eleitorado
moderado que ambos disputam. O candidato com carreira militar parece ter sentido isso quando,
nas declarações à CNN depois do debate, centrou mais a mensagem no que tem para “dar
ao país”. Para Marques Mendes, o confronto dsconfortável mostrou que o seu percurso continuará a estar no centro da pré-campanha durante mais tempo.
O embaraço
Marques Mendes, encostado à parede, a insistir várias vezes na pergunta "dê-me um exemplo de conflito de interesses" em que ele tivesse estado envolvido, quando essa não era a questão alegada pelo adversário - e quando ele argumenta não poder dizer que interesses defendeu na Abreu Advogados.
KO
“Que serviços jurídicos fez? Foi a alguma barra [de um tribunal], defendeu algum cliente? Não. Abre portas. O Dr. Marques Mendes é um lobista e um facilitador de negócios e deve aceitar isso”, atirou Gouveia e Melo, depois de Marques Mendes ter respondido que ganhou cerca de 700 mil euros em dois anos por "trabalho jurídico". Não foi um KO - Mendes continuou a defender-se - mas foi o golpe mais direto do debate.
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