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Foi para Medicina aos 30, não é especialista, trabalhou sempre à hora: quem é o líder dos tarefeiros

Bruno Faria Lopes 20 de novembro de 2025 às 07:00

Nuno Figueiredo e Sousa, até aqui sem perfil público, preside à nova associação que tem poder para paralisar as urgências. "Dr. Lipito", a alcunha dada por amigos, é de Chaves e formou-se em Espanha. Faz "50 a 60 horas" por semana, diz à SÁBADO. Quer limitar os intermediários através dos quais os hospitais contratam tarefeiros.

Nuno Figueiredo e Sousa tinha desligado o telemóvel durante a noite, como faz sempre, e quando acordou naquela quinta-feira viu algo fora do comum: tinha 386 mensagens. As notícias nessa manhã revelavam que o até aí desconhecido médico de 48 anos fora escolhido para presidir à futura Associação de Médicos Prestadores de Serviços – o nome ainda está pendente de autorização –, um novo movimento orgânico de , com poder negocial para da maioria dos hospitais públicos.
Nuno Figueiredo e Sousa, líder da nova associação de médicos tarefeiros, quer negociar com o Governo
“A pressão distingue o carvão do diamante e não me tira o sono”, afirma à SÁBADO. “Faço este trabalho com muita vontade porque uma parte dos médicos terá finalmente representação”, junta. Depois da primeira reunião com o bastonário da Ordem dos Médicos, ontem no Porto, segue-se a reunião com a ministra da Saúde na manhã do dia 27 de novembro. É uma estreia do médico, oriundo de Chaves, como protagonista público num setor politicamente sensível como a Saúde. Os clínicos que representa trabalham à hora e viram cerca de 70% dos casos nas urgências no ano passado, segundo um inquérito da Ordem dos Médicos, noticiado pelo Expresso. Os tarefeiros também fazem consultas e cirurgias, nota Figueiredo e Silva, mas as urgências são o principal. Em 2024 representaram 1,4% da despesa do SNS ou 213 milhões de euros. Dois fatores puseram-nos na mira da ministra Ana Paula Martins: a imposição das Finanças para que a Saúde corte despesa em 2026; e o facto de ganharem valores mensais muitas vezes , o que gera desmotivação e saídas para ir trabalhar à hora (opção mais cara para o SNS). Nuno Figueiredo e Sousa, um dos 25% de médicos que trabalha só como tarefeiro, chegou tarde à carreira: tinha 30 anos quando entrou no curso de Medicina na Universidade de Santiago de Compostela, na região espanhola da Galiza. “Antes disso fiz Direito até ao 4º ano, mas sempre quis ser médico”, conta. Os amigos, a dada altura, puseram-lhe uma alcunha, "Dr. Lipito", que surge sob o seu número na rede social Whatsapp ("sou Nuno Filipe", explica bem humorado). Um programa da SIC em 2013, Perdidos e Achados, mostra-o acabado de chegar a Compostela em 2007, ainda nos primeiros dias em Espanha – e, seis anos mais tarde, nas urgências do hospital Pedro Hispano, em Matosinhos.
"Grande parte [das pessoas] vai [às urgências] por dá cá aquela palha" nuno figueiredo e sousa
Nessa altura já era prestador de serviços à hora e nos últimos doze anos não teve vínculo ao SNS. O primeiro trabalho foi no hospital de Leiria e passou também pelas urgências do hospital de Penafiel. Figueiredo e Sousa não tirou qualquer especialidade após o curso, fazendo assim parte do principal contingente de clínicos tarefeiros: os que não têm especialidade (como medicina interna, cirurgia, medicina geral e familiar, entre muitas outras). “Não tenho especialidade por opção”, afirma. “Ter especialidade implica tempo de formação, mas todos saímos licenciados em Medicina”, responde quando a SÁBADO pergunta pelo facto de médicos sem especialidade serem um pilar das urgências. O inquérito da Ordem indica que os doentes vistos por médicos tarefeiros são quase todos os que têm pulseira azul (não urgente) e verde (pouco urgente), a maior parte dos amarelos (urgente) e alguns dos laranjas que não são encaminhados para a especialidade aplicável. Nuno Figueiredo e Silva – que, de passagem, afirma que “grande parte [das pessoas] vão [à urgência] por dá cá aquela palha” – refere que pelo menos uma parte dos tarefeiros, como ele, continua a estudar em paralelo com o trabalho. "Depende da vontade de aprender", diz.

"95% dos contratos para entrar no SNS foram recusados"

O novo líder dos prestadores de serviço trabalha hoje como tarefeiro no Hospital de Santo António, no Porto - refere que faz 36 horas semanais, espalhadas por três noites fixas por semana. O Santo António não é dos hospitais que mais precisam de tarefeiros para compor as escalas das urgências e o valor praticado por hora está em 30,8 euros, segundo o Diário de Notícias (em hospitais com maior escassez ou no caso de médicos especialistas o valor pode ser mais do dobro).  O horário médio de Nuno Figueiredo e Sousa equivale, grosso modo, a uma remuneração média bruta de 4.430 euros mensais (este é um valor a título ilustrativo – a SÁBADO não confirmou o valor com o médico). O médico ainda faz 10 horas de urgência na Casa de Saúde da Boavista às segundas-feiras (uma instituição que pertence à Congregação das Irmãs Franciscanas Hospitaleiras da Imaculada Conceição) e está a progredir numa área que, não sendo ainda uma especialidade médica, tem cada vez mais mercado: a medicina regenerativa, que pratica numa clínica privada no Porto. “A medicina funcional integrativa [como prefere chamar-lhe] é mais virada para a prevenção: estilo de vida, exercício físico, a componente alimentar, suplementos face a défices”, explica. Ao todo, diz, trabalha "50 a 60 horas por semana". Pela frente tem, para já, a conclusão do processo de formalização da associação, cujo nome “aguarda a aprovação no registo” – a seguir vêm os estatutos e aspetos como o financiamento, que Figueiredo e Silva não sabe ainda detalhar. “Foi tudo muito em cima do acontecimento”, conta. A associação foi uma reação quase imediata, através a mobilização massiva de médicos tarefeiros num canal de Whatsapp, contra a intenção do Governo de cortar nos valores pagos. Esta intenção é um recuo face ao que o próprio Ministério da Saúde pôs em prática ainda em junho passado, quando permitiu que os hospitais com maiores dificuldades em compor as urgências pagassem até 50% acima do limite definido.
"Fiz Direito até ao 4º ano, mas sempre quis ser médico" nuno figueiredo e sousa
O novo dirigente prefere manter-se em silêncio sobre a margem negocial que dará ao Governo, mas adianta um dos pontos que pretende pôr na agenda negocial: a limitação do papel das empresas de intermediação, através das quais os hospitais contratam tarefeiros. “Estas empresas ficam com uma parte significativa [do pagamento] e batalharemos por haver uma ligação direta [entre os tarefeiros e os hospitais]”, afirma. Figueiredo e Sousa disputa a ideia de que a generalidade dos tarefeiros ganhe “muito mais” do que os médicos do quadro. “Não têm férias [pagas], a obrigatoriedade fiscal é maior, com a Segurança Social, e temos ainda os seguros obrigatórios”, elenca.  À saída da reunião de ontem com o bastonário, Nuno Figueiredo e Sousa afirmou que uma das intenções é negociar a integração dos tarefeiros nos quadros dos hospitais. Na véspera da reunião, contudo, lembrou à SÁBADO que "95% dos contratos propostos a médicos prestadores para as urgências foram negados pelos prestadores porque os valores eram muito inferiores aos que se recebe [à hora]" - o valor a pagar ao abrigo dos novos contratos será, naturalmente, um dos pontos centrais das negociações. Para já a atitude é acelerar, procurando saber o que o ministério liderado por Ana Paula Martins quer pôr no decreto-lei. Os tarefeiros, diz Figueiredo e Sousa, não disseram que fariam greve – isso seria formalmente impossível, dado que não têm contrato. “Retirámos a disponibilidade”, detalha. Em termos práticos, o impacto para a formação das equipas de urgência é o mesmo.  "Vamos sobretudo para ouvir e estamos dispostos a trabalhar com a tutela para encontrar soluções", afirma. No horizonte está um potencial braço de ferro entre o Governo e mais um órgão de defesa de interesses na Saúde. 
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