Nunca conheci um homem livre. Já conheci muitos animais livres, vi-os com os meus olhos. Mas homens, nenhum. Os homens livres não estão à vista, porque enlouqueciam os outros e enlouqueciam-se a si próprios. Cedemos sempre em alguma coisa, para fazermos parte.
NINGUÉM É QUEM DIZ que é. Somos todos personagens mas fazemos disso o segredo mais mal guardado da história. Inventamos o que queremos ser para que nos aceitem como fazemos de conta que somos. Não é fácil ser-se alguém no meio de tanta gente que espera de nós mais do que aquilo que nascemos para ser. Acordamos nós próprios, e a partir daí vamos despertando várias características que nos permitem passar pelos dias sem que nos achem loucos, ou pior do que isso. Alguém que seja o que é sem cedência nenhuma, tem tanto de livre como de perigoso, porque mostra que não tem nada a perder. E quem não tem nada a perder, é perigoso por ser tão livre. A liberdade para sermos o que queremos é uma luta que não nos leva a lado nenhum, porque não é para essas pessoas que o mundo está feito. Mal uma criança nasce, é ensinada sobre o que deve e não deve ser, o que deve e não deve fazer, o que deve e não deve dizer. Os pais fazem o melhor que podem e falham sempre. É essa a principal função dos pais: uma sucessão ininterrupta de tentativa/erro que faz com que educar seja ao mesmo tempo deseducar. Nenhum pai nem nenhuma mãe acerta, porque cada pai e cada mãe faz o melhor que sabe, e o melhor que sabe é criar nos filhos uma personagem que os ajude a passar entre os pingos da chuva, e a ter uma vida feliz apesar de tudo. Apesar deles. É contrariar a natureza para poder fazer parte dela. Alguém que seja o que nasceu sem ser educado para o que o espera – e esperam dele –, é tido como um selvagem. E os selvagens não sobrevivem aos tempos que correm, porque são selvagens num mundo que é ainda mais selvagem pela violência que é precisa só para estar nele. Instagram, Tik Tok, Facebook, YouTube são tudo ferramentas que fazem com que a fasquia seja tão alta que é intransponível. Estão cheios de pessoas que se fazem passar por outras pessoas. Tentam desesperadamente que olhem para elas, mas para isso é preciso que não sejam vistas como são, mas como querem ser vistas. Pessoas que deixam de gostar de si próprias, para que os outros possam gostar um bocadinho delas, e tentar assim equilibrar o desequilíbrio.
Lutamos contra nós próprios todos os dias, contra instintos animais que nos violentam por dentro e que são mastigados até saírem delicados. Somos animais domados, porque de outra forma não podíamos sair à rua. O que nos cansa nos dias não são os outros, somos nós. Nós cansamo-nos porque representar cansa. Se fossemos todos o que somos sem filtros, o que seria de nós e dos outros? Ser-se o que se é dá mais luta do que a frase sugere, por isso é que nos rendemos ao mundo. Traz menos perguntas, menos olhares, menos julgamento, menos tempo perdido a explicar o porquê dos porquês. Somos mais livres a sermos o que não somos. Quando vemos alguém atravessar-se à frente do destino e a ser ela própria, o que nos incomoda é a nossa falta de coragem, mas também o medo que nos dá a ideia desse mundo em que as regras deixariam de o ser. A liberdade é cara, embora não pareça. O preço é alto para quem não aceitou fazer parte como linguagem universal. Dir-se-ia que uma tribo que vive no meio do nada é mais livre porque está fora das normas que a sociedade foi escrevendo ao longo dos tempos, mas não. Também lá se estabeleceram outras normas, para que essa tribo pudesse durar no tempo. Também eles são o que lhes disseram desde sempre que seriam.
Juan Cavia
Nunca conheci um homem livre. Já conheci muitos animais livres, vi-os com os meus olhos. Mas homens, nenhum. Os homens livres não estão à vista, porque enlouqueciam os outros e enlouqueciam-se a si próprios. Cedemos sempre em alguma coisa, para fazermos parte.
Dizer a alguém “sê tu próprio” é atirá-lo por uma ribanceira abaixo. Não sermos nós próprios é ainda o que faz com que seja possível estarmos todos juntos. “Sê o máximo de ti próprio que conseguires” talvez seja mais justo, e deixa espaço para que quem ouve não seja levado ao desespero. Alguém que leve à letra o “sê tu próprio”, acaba a viver sozinho numa montanha, longe de toda a gente, isolado de quem não está preparado para o que lhe pediu. Um dia vi um documentário sobre um homem que viveu durante 31 anos sozinho numa ilha, a tomar conta dela. Afastava os turistas que tentavam ir lá estragar o que não era deles. Nem dele. Ele tentou ser ele próprio e lutou por isso até ser expulso e mandado para um apartamento, onde nunca mais foi o mesmo. Agora, para não enlouquecer, faz de conta que é o que esperam dele. Ser ele próprio fez com que enganasse o mundo durante muito tempo, mas nem isso o salvou do que queriam que ele fosse.
Na melhor das hipóteses, somos o que conseguimos. E mesmo isso já dá luta que chegue.
Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico
Nunca conheci um homem livre. Já conheci muitos animais livres, vi-os com os meus olhos. Mas homens, nenhum. Os homens livres não estão à vista, porque enlouqueciam os outros e enlouqueciam-se a si próprios. Cedemos sempre em alguma coisa, para fazermos parte.
Uma pessoa obesa, que alimente os filhos com comidas que criam vícios alimentares perigosos, está não só a matar-se a si própria, como está a dar ferramentas aos filhos para que sigam o mesmo caminho. Se isso faz pior do que fumar à porta de um restaurante? Diria que sim. Ainda assim não carece de lei, carece de educação
Naquele tempo que não volta a acontecer, os verões tinham mais do que três meses, eram do tamanho da minha infância toda, e cabiam lá bicicletas, jogos de futebol, o cheiro a figueira, joelhos esfolados, ladeiras que pareciam fáceis de subir, e amigos que eram só daquela altura do ano.
Somos o que dizemos, ainda que possamos dizer o contrário do que pensamos. Ou somos o que pensamos e dizemos aquilo que queremos ser. Qual das duas versões somos nós, a que pensamos ou a que falamos?
É preciso ver de perto para perceber que os alentejanos não são lentos, são é mais espertos do que nós porque já viram muitos chegar e partir. Guardam-se para quem está para ficar, e fazem-se despercebidos para quem tem a arrogância de achar que o Alentejo tem de ter a pressa de Lisboa ou do Porto.