Estes lares não são para velhos
Bruno Nogueira Humorista
16 de março

Estes lares não são para velhos

Envelhecer é romântico para quem vê de fora, e duro para quem vê de dentro. Os casos de velhices felizes são miragens, por isso é que se partilha tanto quando se descobre uma história dessas, como se alguém tivesse fintado o mundo.

Na melhor das hipóteses, vamos todos envelhecer. Se tudo correr bem chegamos a velhos, e depois morremos. Escrito assim pode não parecer, mas esta é a versão boa. Não é uma versão que pareça particularmente feliz, mas até agora é a melhor que temos. Se conseguirmos chegar até velhos, estamos a falar de uma vida longa. Fazemos sempre as contas por alto, quando pensamos no futuro. “Quando for velho” é uma aposta que fazemos com o destino, na esperança de ganhar. A nossa arrogância faz com que olhemos para os 50 anos como a “meia idade”, o meio caminho de alguma coisa, sonhando às escondidas que vamos durar até aos 100 anos. É provável que isso não aconteça, que o nosso corpo nos traia antes disso, e nos roube anos que íamos jurar que eram nossos. Primeiro fazemos planos de filhos, e depois de netos, não pensando por um minuto que esses planos são a nossa distracção contra a nossa maior fraqueza: a de não controlarmos absolutamente nada, e de esses projectos serem só uma manobra para afastar a suspeita de dias maus com a esperança de dias bons. Nunca sonhei os 100, sempre fiz planos para uma vida que me levasse até aos 80 anos. É possível que já esteja a querer muito mais do que a minha conta, mas como a minha avó Maria morreu aos 82 anos, imagino sempre aquela que teria sido a melhor idade para ela morrer antes de começar um longo e escusado caminho de sofrimento, e essa idade teria sido os 80. Subtraí esses dois anos de dor, e desenhei para mim uma vida autónoma, sem sofrimento, e que terminará a tempo de o meu corpo estar no domínio de todas as suas funções, e a cabeça lúcida e presente. As minhas contas mudaram há pouco tempo, porque o meu pai – agora com 81 anos – está em surpreendente boa forma. Portanto, já ganhei um ano em relação às minhas contas iniciais. Mas essas contas não são minhas por inteiro, são contas de quem acha que sabe da matemática da vida, e que não tem em conta o incerto – mas certo – fim que está sentado à nossa espera.

Envelhecer é romântico para quem vê de fora, e duro para quem vê de dentro. É no equilíbrio dessas duas visões que quem envelhece encontra a alegria possível para continuar a tentar o espanto das pequenas coisas. Os casos de velhices felizes são miragens, por isso é que se partilha tanto quando se descobre uma história dessas, como se alguém tivesse fintado o mundo.

As notícias que apareceram nestas últimas semanas sobre as condições em que as pessoas são tratadas em alguns lares de idosos, chocaram-me por não me chocarem. Chocaram-me porque não eram uma novidade. Já todos sabíamos que aconteciam casos destes, mas não queríamos ser confrontados novamente com essa realidade tão desumana. Idealizamos a nossa velhice sem dor, sem cheiro, com pessoas boas a tomarem conta de nós. Não queremos acreditar que possa haver alguém que olhe para um idoso numa cama, vulnerável, dependente de ajuda e em fim de vida, e pense na melhor forma de o humilhar ainda mais. É uma imagem tão grotesca que nos fazemos cegos e surdos para não vermos nem ouvirmos o que está mesmo à nossa frente.

Juan Cavia
Este país não é para velhos. As famílias destes velhos não são para velhos. E logo por azar, estes lares de idosos também não são para velhos. Os velhos lutam contra eles próprios e contra o mundo. É difícil ter força para ir sozinho a tantas batalhas, numa idade em que as batalhas já não deviam ser contra eles, mas sim por eles.

Ver um idoso doente e acamado e provocar-lhe terror de viver, configura o grau zero da dignidade humana. Não do idoso, mas de quem provoca um horror desses. A cobardia de destratar alguém que está numa luta desigual com a morte, com pavor da noite e dos fantasmas que ela traz, e achar que ao matar o futuro daquele velho, afugenta a sua própria velhice e morte.

Infelizmente a justiça poética nem sempre se aplica, e o fim de quem faz mal nem sempre é mau, como nos filmes. No entanto, aquela cabeça há-de envelhecer com muitos demónios, e o que ela fez vai tratar de a acordar em noites que vão parecer ter o dobro do tamanho. A ideia de maltratarmos o nosso futuro diz muito sobre quem comete uma brutalidade destas. Maltratar presente e futuro, tudo ao mesmo tempo. É preciso ter-se muito pouca vontade de viver, e de ver viver. É ignorar que quando se é velho e se está numa cama a sofrer, não se quer viver muito mais. Só se quer passar o tempo que resta com dignidade e amor, e experimentar dias que quase parecem bons. Tirar isto a alguém, é uma das maiores maldades que posso imaginar. É de quem ainda não percebeu que um dia também ela própria será velha. Mas aí, se tudo correr bem, sofrerá as dores dela e de todos aqueles que fez sofrer.

Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico

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