É no momento entre a fotografia ser tirada e a confirmação de como ela ficou que vive o verdadeiro estado de alma de uma pessoa. Sai a máscara e instala-se uma letargia, é o corpo a fazer contas de cabeça.
Numa viagem a Córdoba, depois de visitar a Mesquita-Catedral de Córdoba, dei por mim sentado no chão, à saída, a olhar para as pessoas que estavam a tirar fotografias a elas próprias. A Mesquita não sabia, mas estava a ser usada. Aparecia no fundo da imagem a pedir para não se esquecerem dela. Como se o monumento fosse atirado para o lugar de importância que aquela pessoa, sem saber, lhe tinha atribuído. Multidões que se arrastavam pela fachada, em segundo plano, a entrarem sem querer em várias fotografias ao mesmo tempo. A quantidade de pessoas que temos em fotografias nossas sem elas saberem. Feitas reféns de lembranças que não são delas, em casas que não são delas, a fazerem parte de uma alegria que não é delas. Quando se quiser voltar a essas imagens, serão as únicas pessoas no álbum que não envelheceram, que ficaram para sempre com aquela idade.
Quanto às fases da fotografia, eis as conclusões a que cheguei: a cara começa rasa de emoções, perdida, sem saber o que está prestes a acontecer-lhe. Só quando levantam o braço com o telemóvel é que surge uma alegria nascida de contrariedades, feita de esforço e vontade de imortalizar um momento com um sorriso descartável. Uma cara que se estica nas bochechas, para perpetuar uma felicidade que pode estar lá, mas tantas vezes num tom menor. Tiram a fotografia, baixam o braço, e a cara volta a um sítio confuso, o riso foi embora mais rápido do que acontece quando é verdadeiro. Escondeu-se não se sabe bem onde, uma espécie de sombra que volta e que devolve uma seriedade de quem não sabe o que lhe aconteceu. O rosto a tentar perceber porque o esticaram tanto, se por dentro o corpo não lhe pedia isso. Quando o riso é verdadeiro deixa um rasto de vários segundos, até a cara se recompor e os músculos se renderem, num breve eclipse. Confirmam com um ar grave como ficou o resultado, e repetem o processo, o cabelo não estava tão bem como se esperava, houve um olho que ficou meio fechado, o sorriso não está tão bonito como se fosse verdadeiro. É no momento entre a fotografia ser tirada e a confirmação de como ela ficou que vive o verdadeiro estado de alma de uma pessoa. Sai a máscara e instala-se uma letargia, é o corpo a fazer contas de cabeça. Antigamente as caras das pessoas nas fotografias eram circunspectas, cheias de gravidade. Ao que parece existiam várias razões para isso, mas não se chegou a nenhum consenso sobre qual era a principal. Por um lado, havia muitas pessoas com dentes estragados – ou com falta deles – que optavam pelo caminho mais seguro e mantinham a cara trancada, não fosse o sorriso trair a boca. Outra teoria aponta para o processo demorado que era tirar uma fotografia. Desde que chegavam até poderem ir embora tinham de ficar imóveis, para não estragarem aquela feitiçaria que imortalizava uma imagem no tempo. Se se mexessem a fotografia ficava arrastada, turva, como se o tempo tivesse uma vertigem. O processo de tirar uma fotografia podia demorar cerca de 20 minutos, e os protagonistas não se podiam mexer, para não comprometerem a qualidade do resultado final. As pessoas iam desistindo do sorriso até deixarem a cara ir com calma encontrar a sua verdade, sincronizada com o que se passava na cabeça. É possível que tenha sido nessa época que se recolheram as imagens mais verdadeiras de que há memória. Forçar um sorriso era um esforço demasiado duro que punha muita coisa em risco. Só mais tarde, nos anos 20, é que o sorriso começou a aparecer nos retratos. Não porque as pessoas tenham ficado mais felizes a partir de 1920, mas simplesmente porque o tempo de duração de tirar uma fotografia passou a ser consideravelmente inferior. Foi o progresso que trouxe o sorriso à fotografia, não foi a alegria.
Juan Cavia
Mas mudam-se os tempos. Ninguém quer imortalizar a tristeza. A tristeza tem má fama. A alegria tem melhor reputação, fica bem em molduras, na imagem de fundo do telemóvel, na secretária do escritório, nos álbuns que hão-de ser a história de uma família. Acrescenta em dias bons e salva em dias maus. Quantos retratos felizes foram tirados em dias tristes? O sorriso nas fotografias é breve, mas serve para camuflar tudo o que há de nublado dentro e à volta. É tão fácil fazer um sorriso, e assim fica a alegria imortalizada. Um dia li que para sorrimos usamos cerca de 17 músculos da cara. Esse é o número de músculos que nos vai salvando de sermos loucos. Ou, pior ainda, de nos chamarem loucos. É por isso que hoje em dia desconfio sempre. Se virem alguém a rir numa fotografia, tenham cuidado: é bem possível que vos esteja a mentir. E ainda bem.
Texto escrito segundo o anterior acordo ortográfico
Nunca conheci um homem livre. Já conheci muitos animais livres, vi-os com os meus olhos. Mas homens, nenhum. Os homens livres não estão à vista, porque enlouqueciam os outros e enlouqueciam-se a si próprios. Cedemos sempre em alguma coisa, para fazermos parte.
Uma pessoa obesa, que alimente os filhos com comidas que criam vícios alimentares perigosos, está não só a matar-se a si própria, como está a dar ferramentas aos filhos para que sigam o mesmo caminho. Se isso faz pior do que fumar à porta de um restaurante? Diria que sim. Ainda assim não carece de lei, carece de educação
Naquele tempo que não volta a acontecer, os verões tinham mais do que três meses, eram do tamanho da minha infância toda, e cabiam lá bicicletas, jogos de futebol, o cheiro a figueira, joelhos esfolados, ladeiras que pareciam fáceis de subir, e amigos que eram só daquela altura do ano.
Somos o que dizemos, ainda que possamos dizer o contrário do que pensamos. Ou somos o que pensamos e dizemos aquilo que queremos ser. Qual das duas versões somos nós, a que pensamos ou a que falamos?
É preciso ver de perto para perceber que os alentejanos não são lentos, são é mais espertos do que nós porque já viram muitos chegar e partir. Guardam-se para quem está para ficar, e fazem-se despercebidos para quem tem a arrogância de achar que o Alentejo tem de ter a pressa de Lisboa ou do Porto.