Sábado – Pense por si

Marta Fonseca Ferreira
Marta Fonseca Ferreira Advogada
12 de maio de 2025 às 07:43

Os óculos do arguido

Tiago ajustou os óculos de armação metálica e olhou discretamente para a assistente social que se preparava para testemunhar. Era ela quem o tinha defendido na noite do incidente, garantindo à polícia que havia sido um mal-entendido. Mas agora estava ali, formal e profissional, prestes a testemunhar contra ou a favor dele. 

A sala de audiência do Tribunal Criminal do Porto estava lotada naquela tarde de março. O caso tinha atraído média atenção, não pelo crime em si - uma alegada agressão numa discoteca - mas pela identidade do arguido: Tiago Ferreira, professor universitário de filosofia, conhecido pelos seus artigos sobre ética e comportamento humano. 

"Podem sentar", disse a Juíza Dr.ª Mariana Sousa, assumindo o seu lugar na bancada central. 

Tiago ajustou os óculos de armação metálica e olhou discretamente para a assistente social que se preparava para testemunhar. Era ela quem o tinha defendido na noite do incidente, garantindo à polícia que havia sido um mal-entendido. Mas agora estava ali, formal e profissional, prestes a testemunhar contra ou a favor dele. 

"Processo número 89/2024, Ministério Público contra Tiago Ferreira", anunciou o escrivão. 

"Chama-se a senhora Beatriz Costa", comandou a juíza. 

Uma mulher de cerca de trinta anos entrou na sala. Vestia um fato azul-escuro, o cabelo castanho escuro preso num coque impecável. Quando os seus olhos encontraram os de Tiago, houve um breve momento de reconhecimento mútuo. 

Beatriz fez o juramento perante a Constituição e sentou-se na cadeira de testemunha. As suas mãos tremiam ligeiramente enquanto organizava os papéis. 

"Senhora Beatriz", começou o Procurador Dr. João Santos, "pode dizer-nos a sua profissão?" 

"Sou assistente social no Hospital de São João, setor de emergência." 

"E estava de serviço na noite de 15 de janeiro?" 

"Sim. Fui chamada para avaliar uma situação na discoteca 'Plano B', por volta da uma da manhã." 

Tiago inclinou-se ligeiramente para a frente. Lembrava-se perfeitamente daquela noite. A música alta, as luzes intermitentes, e depois... o mal-entendido que tinha escalado rapidamente. 

"Pode descrever o que encontrou quando chegou ao local?", perguntou o procurador. 

Beatriz olhou para os autos, mas Tiago suspeitou que ela também se lembrava perfeitamente sem precisar de consultá-los. 

"Encontrei duas pessoas - o arguido e o alegado ofendido - a serem acalmados pelos seguranças. O ambiente estava tenso, havia muito barulho e confusão." 

"E qual foi a sua primeira impressão?" 

"Havia sinais de uma altercação física. O sr. Rodrigues tinha um corte no lábio, e o arguido... o Professor Tiago tinha os óculos partidos." 

Os olhos de Tiago dirigiram-se instintivamente para as lentes que usava agora - novas, mas da mesma armação. Tinha insistido em mantê-la como recordação. 

"Procedeu a alguma avaliação psicológica no local?" 

"Sim. Falei separadamente com ambas as partes. O sr. Rodrigues estava visivelmente agitado e sob efeito de álcool. Quanto ao Professor Tiago..." 

Beatriz parou, olhando brevemente para ele. 

"Quanto ao arguido?" 

"O Professor Tiago estava visivelmente abalado, mas completamente sóbrio. Ele... ele insistia que havia sido um mal-entendido." 

"Pode elaborar sobre esse alegado mal-entendido?" 

Beatriz respirou fundo. Este era o momento que ambos tinham estado a antecipar. 

"Segundo o arguido, o sr. Rodrigues tinha assumido uma postura agressiva com uma jovem no bar. O Professor Tiago tentou intervir verbalmente, mas no escuro da discoteca e com a música alta, houve uma escalação física." 

"O sr. Rodrigues contesta esta versão." 

"Sim, contesta. No entanto..." 

O procurador levantou uma sobrancelha. "No entanto?" 

"Durante a minha avaliação individual, perguntei ao sr. Rodrigues sobre a jovem em questão. Ele... não conseguiu fornecer uma descrição consistente dela." 

Tiago sentiu um aperto no peito. Beatriz estava a ajudá-lo, sutilmente, profissionalmente, mas ajudando. 

A advogada de defesa, Dr.ª Isabel Marques, levantou-se. 

"Senhora Beatriz, na sua experiência profissional, quão comum é encontrar situações onde o álcool afeta a perceção dos eventos?" 

"Muito comum. O álcool pode distorcer tanto a memória quanto a perceção do que realmente aconteceu." 

"E qual era o seu diagnóstico sobre o estado do Professor Tiago nessa noite?" 

Beatriz olhou diretamente para Tiago. "O Professor demonstrava sinais típicos de shock pós-traumático leve. Ele repetia constantemente que não queria magoar ninguém, que apenas estava a tentar ajudar." 

"Mais alguma observação relevante?" 

"Sim. O Professor passou a maior parte do tempo a preocupar-se com o estado da outra pessoa, perguntando se precisava de cuidados médicos. Não é um comportamento típico de alguém com intenções agressivas." 

O procurador retomou o interrogatório. 

"Senhora Beatriz, houve algum desenvolvimento posterior a esta situação?" 

"Sim. Três dias após o incidente..." 

"Pode elaborar?" 

Beatriz hesitou, olhando novamente para os seus papéis, mas Tiago sentiu que havia algo mais. 

"Recebi uma carta do Professor Tiago. Ele queria saber como estava o sr. Rodrigues e se precisava de ajuda médica adicional." 

A sala ficou em silêncio. 

"Isso é comum na sua experiência profissional?" 

"Não. É... incomum que um alegado agressor se preocupe genuinamente com o bem-estar da alegada vítima." 

Durante um breve intervalo, quando os magistrados se retiraram para deliberação, Beatriz permaneceu na sala. Tiago aproveitou para se aproximar. 

"Beatriz?" 

Ela virou-se, surpreendida. 

"Desculpa, sei que é inapropriado, mas... obrigado por teres sido tão profissional." 

"Eu... apenas disse a verdade, Professor." 

"Tiago. Podes chamar-me Tiago." 

Beatriz sorriu brevemente. "Aquela noite... foi a primeira vez que vi alguém chorar por ter magoado outra pessoa, mesmo que sem intenção." 

"Eu ensino ética. Como poderia viver comigo mesmo sabendo que magoei alguém de propósito?" 

"Por isso guardei os teus óculos." 

Tiago piscou, confuso. "Como?" 

"Os óculos partidos. Tinha-os recolhido como possível prova, mas... quando vi como estavas genuinamente preocupado, guardei-os com a intenção de tos devolver." 

Ela abriu a sua pasta e tirou um pequeno envelope. 

"Ainda os tenho." 

Quando os juízes regressaram, havia uma energia diferente na sala. 

"Após análise das provas e testemunho apresentado", começou a juíza Dr.ª Mariana Sousa, "o tribunal conclui que não existem provas suficientes para sustentar a acusação de agressão. O alegado altercado parece ter sido resultado de um mal-entendido amplificado pelo consumo de álcool de uma das partes." 

Tiago sentiu o alívio inundar o seu corpo. 

"No entanto", continuou a juíza, "o tribunal gostaria de deixar uma nota sobre a importância do testemunho da assistente social, cuja avaliação profissional e objetiva foi determinante para este veredito." 

Do lado de fora do tribunal, Beatriz esperava junto aos degraus. 

"Professor... Tiago", disse ela quando ele apareceu. "Estes são teus." 

Entregou-lhe o envelope com os óculos partidos. 

"Porque os guardaste?" 

"Porque vi nos teus olhos naquela noite algo que reconheço no meu trabalho todos os dias - compaixão genuína. E pensei que um dia poderiam ser importantes." 

Tiago abriu o envelope e olhou para os óculos partidos. Uma das lentes estava completamente estilhaçada, a armação torta. 

"Sabes", disse ele, "dou aulas sobre a importância da perceção e como vemos o mundo. Estes óculos... ensinaram-me mais sobre isso do que qualquer livro." 

"Como assim?" 

"Às vezes vemos apenas aquilo que esperamos ver. Mas aquela noite, mesmo com os óculos partidos, consegui ver claramente o que estava a acontecer. E tu também." 

Beatriz sorriu. "Talvez possamos jantar algum dia? Fora do contexto profissional? Tenho curiosidade em ouvir mais sobre as tuas aulas de ética." 

"Gostaria muito. Mas aviso já - vou usar os óculos novos." 

"Ainda bem. Apesar de eu ter guardado os antigos, prefiro ver-te bem." 

No seu apartamento no centro do Porto, Tiago e Beatriz jantavam num domingo à noite. Na parede, emoldurados lado a lado, estavam os óculos partidos e uma fotografia do dia em que se conheceram - a primeira vez que saíram depois do julgamento. 

"Sabes", disse Beatriz, servindo vinho, "algumas vezes penso em como as coisas mais significativas da minha vida aconteceram quando estava de serviço." 

"E eu penso em como o pior dia da minha vida se transformou no melhor." 

"Exagero filosófico?" 

"Realidade empírica. A partir daquela noite, comecei a ver o mundo de forma diferente. E tu fizeste parte disso." 

"Nós duas fizemos parte disso", disse Beatriz, pegando nos óculos de Tiago da mesa. "Eu, que te ajudei a ver a verdade naquela noite, e ela", apontou para os óculos partidos na parede, "que te ensinou que às vezes precisamos de ver através das rachas." 

Tiago beijou-a suavemente. "Prometes nunca mais trabalhar em discotecas aos sábados?" 

"Só se prometeres nunca mais tentar ser herói sem os teus óculos." 

"Prometido. Mas guardo sempre os partidos para me lembrar." 

"Para te lembrares do incidente?" 

"Para me lembrar do dia em que encontrei alguém que via além das aparências." 

Um ano depois, numa pequena cerimónia no Palácio do Bolhão, Tiago e Beatriz casaram. O padre fez uma referência discreta à forma inusitada como se conheceram. 

"Hoje celebramos não apenas a união de duas pessoas", disse na homilia, "mas também a prova de que até nos momentos mais difíceis, quando nossa visão está temporariamente comprometida, podemos encontrar clareza através dos olhos de quem nos compreende verdadeiramente." 

Na receção, alguém perguntou a Tiago pelo presente invulgar em cima da mesa - uns óculos partidos numa pequena caixa de vidro. 

"São uma lembrança", explicou ele. "Do dia em que aprendi que às vezes precisamos de ver o mundo com os olhos partidos para encontrar aquilo que realmente importa." 

Beatriz, ao seu lado, acrescentou: "E eu aprendi que salvar pessoas não acontece apenas no hospital. Às vezes acontece numa sala de tribunal, quando decidimos ver a verdade em vez do óbvio." 

E todas as noites, quando Tiago tirava os óculos antes de dormir, olhava para os partidos na parede e sorria, grato pelo mal-entendido que tinha mudado a sua vida para sempre. Beatriz, deitada ao seu lado, sabia exatamente no que ele estava a pensar e apertava-lhe a mão, uma prova silenciosa de que algumas vezes os melhores inícios surgem dos piores momentos. 

Na manhã seguinte, quando voltava a colocar os óculos novos, Tiago via o mundo com uma clareza que nunca tinha tido antes - a clareza de quem encontrou alguém que o via exatamente como era, imperfeito mas com intenções puras. 

E Beatriz, no seu turno no hospital, continuava a ajudar pessoas em momentos de crise, mas agora sabia que algumas das melhores histórias da sua vida começariam fora das paredes do hospital, numa sala de tribunal onde dois estranhos se reconheceram através de lentes partidas e almas transparentes. 

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