Há quinze anos, no auge do Caso Mondego, o então inspetor Miguel Viegas e a procuradora Leonor Matos tinham cruzado uma linha. O envolvimento pessoal que surgira entre noites de trabalho intenso e a adrenalina de uma grande investigação tinha sido tão intenso quanto breve.
A procuradora Leonor Matos observava a cidade de Coimbra pela janela do seu gabinete no Departamento de Investigação e Ação Penal. Lá fora, o Mondego seguia o seu curso imperturbável, enquanto os telhados vermelhos e as torres da Universidade compunham a paisagem que tinha sido o cenário da sua vida profissional durante quase quatro décadas.
Em duas semanas, aquela vista seria apenas uma memória. Após trinta e oito anos de dedicação ao Ministério Público, chegara a hora de pendurar a toga. O gabinete já começava a mostrar sinais da iminente transição — algumas estantes esvaziadas, caixas discretamente empilhadas num canto, uma planta nova que um colega lhe trouxera com a mensagem "para a nova fase".
O telefone interrompeu os seus pensamentos.
"Doutora Leonor? O Diretor do DIAP pediu para falar consigo urgentemente." A voz da secretária soava invulgarmente tensa.
Leonor suspirou. Nas últimas semanas, tinha delegado gradualmente os seus casos mais complexos, preparando uma transição suave. Só retinha alguns processos simples, quase como um ritual de despedida.
No gabinete do Diretor, Dr. António Campos, Leonor encontrou não apenas o seu superior, mas também um homem que ela não via há mais de quinze anos. O inspetor-chefe Miguel Viegas da Polícia Judiciária parecia mais velho, naturalmente — o cabelo antes negro agora salpicado de grisalho nas têmporas, os olhos mais marcados por rugas de expressão — mas mantinha aquela mesma presença intensa que ela lembrava tão bem.
"Leonor," o diretor cumprimentou-a formalmente, "sei que está de saída, mas surgiu um caso... delicado. O inspetor-chefe Viegas pediu especificamente por si."
Miguel levantou-se, estendendo a mão. "Doutora Leonor. Há muito tempo."
A frieza profissional do cumprimento não conseguia disfarçar completamente a familiaridade de quem, em tempos, partilhara muito mais que casos criminais.
"Inspetor-chefe," respondeu ela com igual neutralidade. "O que traz a Polícia Judiciária ao nosso humilde DIAP?"
"Um caso que só podia ser seu," respondeu ele, abrindo uma pasta. "O último, talvez, mas certamente um que lhe interessa."
Nas duas horas seguintes, Leonor ouviu atentamente enquanto Miguel apresentava os contornos do caso: um esquema de corrupção sofisticado envolvendo fundos europeus destinados à recuperação de património histórico. No centro da investigação, uma rede que desviava milhões através de obras fictícias em monumentos nacionais, com conexões que chegavam a figuras proeminentes de Coimbra.
"Mas por que eu?" perguntou Leonor quando ele terminou. "Temos procuradores jovens, com energia para um caso desta envergadura."
"Porque tudo começou há vinte anos," respondeu Miguel. "Com o Caso Mondego. O seu caso."
Leonor sentiu um calafrio percorrer-lhe a espinha. O Caso Mondego fora o seu primeiro grande processo, a investigação que definira a sua carreira. Uma investigação de corrupção municipal que acabara abruptamente quando a principal testemunha desaparecera sem deixar rasto.
"Encontraram o Lopes?" perguntou, sentindo a boca subitamente seca.
"Não exatamente," respondeu Miguel. "Encontrámos o seu arquivo. Um armazém em Espanha, cheio de documentos. E entre eles, provas que ligam aquele caso a este. Os mesmos atores, Leonor. Vinte anos depois, ainda a operar."
O diretor do DIAP pigarreou discretamente. "Compreendo que está prestes a aposentar-se, Leonor. Se preferir passar isto a outro procurador..."
"Não," interrompeu ela com uma firmeza que surpreendeu a si própria. "Se há uma ligação com o Caso Mondego, quero ser eu a fechar este círculo."
Ao sair do gabinete, Miguel acompanhou-a pelo corredor. "Precisamos trabalhar juntos nisto," disse ele. "Como nos velhos tempos."
Leonor deteve-se, encarando-o diretamente. "Os velhos tempos acabaram há quinze anos, inspetor-chefe. Agora é apenas trabalho."
"Claro," respondeu ele, com um sorriso contido. "Apenas trabalho."
Nas semanas que se seguiram, Leonor adiou a sua aposentação. O que era para ser um simples adiamento de duas semanas transformou-se num compromisso indefinido à medida que a investigação se aprofundava. O caso revelou-se um labirinto complexo de empresas-fantasma, contratos públicos manipulados e políticos corruptíveis.
E no centro de tudo, trabalhando mais horas do que a prudência aconselharia, estava Leonor, com Miguel sempre por perto.
"Precisamos entrevistar o Nogueira," insistiu ela numa tarde particularmente tensa, referindo-se a um antigo vereador agora convertido em empresário influente. "Ele é o elo entre os dois casos."
"É arriscado," contrapôs Miguel. "Ele tem proteções políticas. Se avançarmos sem provas sólidas..."
"Não me fale de riscos," interrompeu Leonor com irritação. "Passei a minha carreira inteira a calcular riscos, a equilibrar o que é certo com o que é possível."
"E por vezes a pagar o preço," observou Miguel calmamente. "Como no Caso Mondego. Como connosco."
O silêncio que seguiu era carregado de memórias não resolvidas. Há quinze anos, no auge do Caso Mondego, o então inspetor Miguel Viegas e a procuradora Leonor Matos tinham cruzado uma linha. O envolvimento pessoal que surgira entre noites de trabalho intenso e a adrenalina de uma grande investigação tinha sido tão intenso quanto breve. Quando o caso desmoronara, também a relação sucumbira sob o peso do fracasso profissional partilhado.
Miguel fora transferido para Lisboa, Leonor permanecera em Coimbra, e ambos tinham seguido vidas separadas. Ele casara-se (e divorciara-se, como ela viria a descobrir); ela dedicara-se exclusivamente à carreira, recusando até as promoções que a levariam para longe da cidade que considerava sua.
"Isto não é sobre nós," disse ela finalmente. "É sobre justiça tardia."
"Sempre foi sobre justiça para si," respondeu ele com um sorriso enigmático. "É por isso que pedi especificamente por si para este caso. Ninguém mais teria a mesma... obstinação."
Numa tarde de outono particularmente dourada, quando as folhas caídas formavam um tapete ao longo das margens do Mondego, Leonor recebeu Miguel no seu gabinete. Nas paredes, já não restavam os habituais diplomas e certificados — apenas marcas mais claras na pintura denunciavam onde estiveram pendurados durante décadas.
"Temos uma confissão," anunciou ele sem preâmbulos, colocando um dossiê sobre a mesa. "O adjunto do Nogueira aceitou colaborar. Temos tudo — nomes, datas, montantes, esquemas de transferência. Tudo."
Leonor folheou o documento, os olhos experientes identificando rapidamente os detalhes cruciais. "Com isto, podemos finalmente avançar com as acusações formais."
"Sim," concordou Miguel, sem o entusiasmo que seria de esperar. "O seu último caso está resolvido, Procuradora."
Leonor ergueu os olhos, surpreendida pelo tom. "Parece desapontado, Inspetor-chefe."
"Não com o resultado," esclareceu ele. "Apenas com o timing."
"Timing?"
Miguel sentou-se na cadeira em frente à secretária, com uma informalidade que contrastava com a tensão dos últimos meses. "Demoramos vinte anos para resolver o Caso Mondego. Mais dois meses para desmantelar esta rede. E agora, quando finalmente fechamos o círculo, você está de saída."
"A justiça não se importa com os nossos timings pessoais," respondeu ela, mas sem a aridez habitual. Havia um tom quase melancólico na sua voz.
"E você, Leonor? Importa-se?"
A pergunta pairou no ar por alguns segundos. Leonor levantou-se, caminhando até à janela — o seu posto de observação favorito durante tantos anos.
"Sabe por que nunca saí de Coimbra?" perguntou ela, aparentemente mudando de assunto. "Por que recusei promoções para Lisboa, para a Procuradoria-Geral?"
"Lealdade à cidade?" aventou ele.
"Em parte," admitiu ela. "Mas principalmente porque aqui, neste gabinete, com esta vista, sempre senti que o trabalho era real. Que fazia uma diferença tangível num lugar que conheço intimamente. Não queria ser apenas uma procuradora — queria ser a procuradora de Coimbra."
"E foi. Uma lenda, até."
Ela sorriu, virando-se para ele. "Lendas são para livros, Miguel. Eu queria apenas fazer o meu trabalho bem feito. E agora, com este caso resolvido..."
"Pode ir embora com consciência tranquila?"
"Talvez," concedeu ela. "Embora a consciência de um procurador nunca esteja completamente tranquila. Há sempre mais um caso, mais uma injustiça."
"E mais uma vez, não respondeu à minha pergunta," observou Miguel com um sorriso conhecedor. "Típico de procurador — responder com filosofia quando confrontado com o pessoal."
Leonor não pôde evitar um sorriso. "E você, Inspetor-chefe? O que fará depois deste caso?"
"Volto para Lisboa. Tenho uma equipa para liderar, casos acumulando na minha secretária."
"A sua família está lá?"
"Não tenho família," respondeu ele simplesmente. "O casamento durou menos que a maioria das minhas investigações."
Um silêncio confortável estabeleceu-se entre eles — o tipo de silêncio possível apenas entre pessoas que, apesar do tempo e das circunstâncias, ainda partilham uma conexão fundamental.
No dia da operação policial que desmantelaria finalmente a rede de corrupção, Leonor acordou antes do amanhecer. O céu ainda estava escuro quando ela chegou ao posto de comando improvisado num antigo armazém nos arredores de Coimbra. Dentro do edifício aparentemente abandonado, dezenas de agentes da Polícia Judiciária preparavam-se para executar mandados de busca e detenção simultâneos em quinze locais diferentes.
Miguel, com um colete à prova de bala sobre a camisa, estava inclinado sobre uma mesa grande onde um mapa da cidade e arredores mostrava os pontos de intervenção marcados a vermelho.
"Procuradora," cumprimentou, notando imediatamente a sua presença. "Não esperava vê-la aqui tão cedo."
"Não perderia isto por nada," respondeu ela, aceitando o café que um jovem agente lhe oferecia. "Vinte anos é muito tempo para esperar por um desfecho."
Miguel assentiu, compreendendo o peso daquelas palavras. "Temos equipas posicionadas em todos os locais-chave. O Nogueira será detido na sua residência de férias na Figueira da Foz. O presidente da empresa de reabilitação patrimonial no seu escritório em Coimbra. Os restantes alvos estão todos sob vigilância desde ontem à noite."
"E os documentos?" perguntou Leonor, referindo-se aos registos financeiros que constituíam o cerne material das provas.
"Equipa especializada no escritório de contabilidade. Temos informação que existem cofres com documentação física que nunca foi digitalizada."
Leonor bebeu um gole de café, sentindo a familiar mistura de ansiedade e determinação que precedia operações importantes. Mas hoje, havia algo mais — uma sensação agridoce de encerramento, o conhecimento de que este seria, realmente, o seu último grande caso.
"Nervosa?" perguntou Miguel, baixando a voz enquanto os outros agentes se movimentavam ao redor, absortos nos seus preparativos.
"Cautelosa," corrigiu ela. "Já vi casos aparentemente sólidos desmoronarem por detalhes técnicos. E este tem demasiadas ramificações importantes."
"Desta vez, não falharemos," garantiu ele com uma convicção que Leonor quase invejou.
Às seis da manhã, com a primeira luz do dia penetrando pelas janelas do armazém, Miguel deu o sinal. As equipas partiram em silêncio, cada uma com objetivos precisos e instruções claras.
"Nós vamos para onde?" perguntou Leonor, apanhando Miguel de surpresa.
"Nós?"
"Se pensa que vou ficar aqui a aguardar relatórios, não me conhece tão bem quanto julga, Inspetor-chefe."
Um sorriso breve iluminou o rosto de Miguel. "Vamos para a sede da Fundação Restauro Nacional. É onde acreditamos que estão os documentos mais sensíveis."
A Fundação ocupava um palacete renovado no centro histórico de Coimbra, uma localização prestigiosa para uma instituição que se apresentava como defensora do património nacional. A ironia não escapava a Leonor — usar a preservação do património como fachada para o desvio de fundos destinados precisamente a esse fim.
No caminho, no banco de trás de um carro policial anónimo, Leonor e Miguel permaneceram em silêncio, cada um absorto nos seus pensamentos. Apenas quando avistaram o edifício da Fundação, Miguel falou:
"Se tudo correr como planeado, teremos o suficiente para sustentar acusações contra pelo menos doze pessoas. Incluindo dois antigos autarcas e um deputado."
"E se não correr como planeado?" perguntou Leonor, sempre a procuradora cautelosa.
Miguel virou-se para ela, com uma intensidade no olhar que transcendia o profissional. "Então continuaremos a lutar. Não vou deixar este caso escapar entre os dedos. Não outra vez."
A operação na Fundação foi meticulosa. Enquanto os especialistas forenses examinavam computadores e documentos, Leonor observava, ocasionalmente oferecendo orientação jurídica sobre o que poderia ou não ser apreendido sob os termos do mandado.
Foi perto do meio-dia, quando a operação já decorria há horas, que um dos técnicos chamou Miguel com urgência. Leonor seguiu-o até uma pequena sala nos fundos do edifício, aparentemente um arquivo.
"Encontrámos isto atrás de um painel falso," explicou o técnico, mostrando uma pasta antiga amarelecida pelo tempo.
Miguel abriu-a com cuidado, e Leonor sentiu o coração acelerar ao ver o cabeçalho: "Projeto Revitalização Mondego - 2003". Era o projeto no centro do seu antigo caso, o mesmo que tinha desmoronado quando a testemunha-chave desaparecera.
"Meu Deus," murmurou ela, incapaz de esconder a emoção. "São os documentos originais. Os que desapareceram há vinte anos."
"Com assinaturas, carimbos oficiais, tudo," confirmou Miguel, folheando cuidadosamente. "Isto é... isto é a peça que faltava, Leonor."
Os olhos de ambos encontraram-se num momento de compreensão partilhada. Não era apenas sobre o caso atual — era sobre redenção, sobre finalmente fechar uma ferida profissional que tinha marcado ambas as carreiras.
As horas seguintes passaram numa agitação de atividade. Relatórios chegavam de todas as equipas: Nogueira detido sem incidentes; o presidente da empresa de reabilitação tentara fugir mas fora intercetado; cofres abertos, documentos apreendidos, computadores confiscados. Uma operação limpa, eficiente, bem-sucedida.
Quando finalmente regressaram ao posto de comando, já era noite. O armazém, antes um formigueiro de atividade, agora estava mais calmo, com apenas alguns agentes processando evidências e organizando relatórios.
"Parabéns, Procuradora," disse Miguel formalmente, na presença dos outros. "Uma operação exemplar."
"O mérito é da equipa," respondeu ela, igualmente formal. "Excelente trabalho, Inspetor-chefe."
Mas mais tarde, quando a maioria dos agentes já tinha partido e apenas uma equipa mínima permanecia para vigilância, Leonor encontrou Miguel sozinho, contemplando o mapa onde os pontos vermelhos agora estavam marcados com pequenas bandeiras de "operação concluída".
"O que sente?" perguntou ela, aproximando-se.
"Alívio," admitiu ele. "Satisfação. E uma estranha sensação de vazio."
"Conheço bem essa sensação," sorriu Leonor. "É o que acontece depois de perseguir algo por tanto tempo. Quando finalmente o alcançamos, surge a pergunta inevitável: e agora?"
"E agora?" repetiu Miguel, virando-se para encará-la. "Essa é a questão, não é? Para mim, é voltar a Lisboa, mergulhar no próximo caso. Para si..."
"Para mim, é finalmente seguir em frente," completou ela. "Aposentar-me sabendo que não deixei pontas soltas. Pelo menos, não esta."
O silêncio que se seguiu era carregado de palavras não ditas, de possibilidades nunca exploradas. Vinte anos antes, tinham sido jovens profissionais impulsionados pela ambição e idealismo. Depois, colegas separados por circunstâncias e escolhas. E agora? O que eram agora um para o outro?
"Sabe," começou Miguel hesitantemente, "sempre me perguntei como seria a nossa vida se o Caso Mondego tivesse corrido de forma diferente. Se não tivéssemos... se eu não tivesse..."
"Se não tivesse escolhido Lisboa?" completou Leonor suavemente.
"Foi a decisão mais racional," defendeu-se ele, uma justificação ensaiada ao longo de anos. "A minha carreira estava em jogo. E você deixou bem claro que Coimbra era o seu lugar."
"Era," concordou ela. "Naquela altura, era."
Miguel estudou-a por um momento. "E agora?"
Leonor sorriu, um sorriso que carregava anos de experiência, de autoconhecimento duramente conquistado. "Agora estou pronta para novas paisagens. Talvez não para começar de novo — somos velhos demais para isso — mas para... continuar. Em algum lugar diferente."
"Lisboa tem boas vistas," sugeriu ele, tentando soar casual, mas com uma vulnerabilidade que não conseguia esconder completamente. "Não é o Mondego, mas o Tejo tem o seu encanto."
"Ouvi dizer," respondeu ela, igualmente a tentar manter a leveza. "E tem bons restaurantes, segundo me contam."
"Os melhores," confirmou ele. "Poderia mostrar-lhe alguns. Como agradecimento profissional pelo sucesso desta operação conjunta, claro."
"Claro," concordou ela, e ambos sorriram pela transparência da desculpa. "Um jantar profissional seria apropriado."
"E depois," continuou Miguel, dando um passo mais ousado, "talvez outros jantares, menos profissionais."
Leonor permitiu-se um momento de verdadeira consideração. Aos sessenta e dois anos, não era ingénua quanto às possibilidades e limitações de novos começos. Tinha construído uma vida satisfatória em torno da sua carreira, dos seus poucos amigos próximos, das suas rotinas cuidadosamente cultivadas. Mudar agora, especialmente por causa de um homem — mesmo que fosse alguém com quem partilhava uma história complexa — não era uma decisão a tomar levianamente.
"Um passo de cada vez, Inspetor-chefe," respondeu finalmente. "Começamos pelo jantar profissional e vemos onde nos leva."
Três meses depois, Leonor Matos, agora oficialmente aposentada do Ministério Público, sentava-se numa esplanada em Cascais, observando o Atlântico. A sua pequena casa alugada ficava a poucos minutos dali — suficientemente perto de Lisboa para jantares frequentes na cidade, suficientemente longe para manter a independência que sempre valorizada.
"Café?" Miguel sentou-se ao seu lado, colocando duas chávenas na mesa.
"Obrigada," sorriu ela. "Alguma novidade do caso?"
"A juíza de instrução validou todas as provas. O julgamento deve começar no próximo trimestre." Ele fez uma pausa, saboreando o café. "A equipa sente a sua falta. Dizem que nenhum outro procurador tem o seu... toque."
"Lisonja," descartou ela, mas com um sorriso satisfeito. "E Lisboa? Está a adaptar-se bem?"
"Surpreendentemente bem," admitiu Leonor. "Acho que estava mais pronta para mudanças do que imaginava."
O vento marítimo agitou os cabelos grisalhos de ambos, e por um momento, sentados ali com vista para o oceano, pareciam apenas um casal comum de aposentados — não um inspetor-chefe da Polícia Judiciária e uma ex-procuradora que tinham dedicado as suas vidas à perseguição da justiça.
"Sabe o que penso às vezes?" disse Miguel, contemplando o horizonte. "Que talvez o timing tenha estado certo, afinal. Há vinte anos, éramos demasiado ambiciosos, demasiado focados nas nossas carreiras para darmos espaço a algo mais."
"E agora somos demasiado velhos e teimosos?" brincou ela.
"Agora," corrigiu ele, tomando a mão dela com uma ousadia que ainda estava a aprender a expressar, "agora sabemos o suficiente para valorizar as segundas oportunidades quando elas aparecem. Mesmo que venham com algumas rugas e cabelos brancos incluídos."
Leonor apertou a mão dele, sentindo a familiaridade reconfortante daquele contacto que, surpreendentemente, se tinha tornado parte da sua nova rotina nos últimos meses.
"Sabes," disse ela, abandonando o formal "você" pela primeira vez, "para alguém que persegue criminosos de colarinho branco, ocasionalmente dizes coisas bastante poéticas."
Miguel riu, um som que Leonor descobrira adorar. "Apenas quando a audiência o merece, Senhora Procuradora."
E ali, com o sol de inverno lançando uma luz dourada sobre o mar, Leonor pensou que talvez a justiça tivesse o seu próprio timing, afinal. Não apenas nos tribunais e nas investigações complexas, mas também nas questões do coração. Às vezes, um caso levava vinte anos para ser resolvido. E às vezes, uma história de amor precisava exatamente desse tempo para encontrar o seu verdadeiro início.
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."
A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.
"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.
O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
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Agora, com os restos de Idan Shtivi, declarado oficialmente morto, o gabinete do ministro Paulo Rangel solidariza-se com o sofrimento do seu pai e da sua mãe, irmãos e tias, e tios. Família. Antes, enquanto nas mãos sangrentas, nem sequer um pio governamental Idan Shtivi mereceu.
Na Europa, a cobertura mediática tende a diluir a emergência climática em notícias episódicas: uma onda de calor aqui, uma cheia ali, registando factos imediatos, sem aprofundar as causas, ou apresentar soluções.
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
No meio da negritude da actualidade política, económica e social em Portugal e no resto do Mundo, faz bem vislumbrar, mesmo que por curtos instantes, uma luz.