E assim, naquele mesmo tribunal onde tantas empresas encontravam o seu fim, uma história diferente começava. Uma história onde os números negativos se transformaram em possibilidades positivas, onde um credor se tornou um parceiro
No Palácio da Justiça do Porto, majestoso edifício da Cordoaria com a sua fachada neoclássica imponente, a Dr.ª Isabel Teixeira subia as escadas de granito com o coração mais pesado que a sua pasta de documentos. Hoje era o dia da assembleia de credores do seu processo de insolvência, e embora já tivesse perdido quase tudo - a empresa de família, a casa no Foz, até o seu orgulho - ainda lhe restava enfrentar os seus credores cara a cara.
O salão nobre do tribunal, com os seus painéis de madeira escura e os lustres de cristal que testemunhavam décadas de dramas judiciais, estava já repleto quando ela entrou. O Administrador de Insolvência, Dr. Matos Silva, organizava os seus papéis na mesa principal, enquanto os vários credores se acomodavam nas cadeiras dispostas em semicírculo.
Foi então que o viu. Miguel Santos, CEO do maior credor do seu processo - a empresa que detinha mais de 60% das dívidas da sua falida empresa têxtil - estava sentado na primeira fila. Não o via pessoalmente desde aquela última reunião desastrosa, há oito meses, quando ele ainda tentava negociar um plano de pagamentos que pudesse salvar ambas as empresas.
"Processo de Insolvência nº 2024/2389.0T8PRT", anunciou o Administrador de Insolvência. "Requerente: Isabel Maria Teixeira. Início da assembleia de credores para apreciação do relatório e deliberação sobre o destino da massa insolvente."
Isabel sentou-se no lugar designado, tentando ignorar os olhares dos presentes. A sua empresa têxtil tinha mais de cinquenta anos de história, fundada pelo seu avô numa altura em que o Norte ainda era o coração pulsante da indústria portuguesa. Agora, tudo o que restava eram dívidas e memórias.
O Dr. Matos Silva começou a apresentar o seu relatório, detalhando o inventário da massa insolvente e as perspetivas de recuperação. Isabel mal ouvia, perdida em pensamentos sobre como tinha chegado ali. A pandemia, a crise energética, os problemas com fornecedores chineses... tinha sido a tempestade perfeita.
"Quanto à proposta apresentada pelo credor Santex Internacional..." a voz do Administrador trouxe-a de volta à realidade. Isabel endireitou-se na cadeira. A Santex era a empresa de Miguel.
"Propõe-se a aquisição da totalidade dos ativos da massa insolvente, incluindo as instalações fabris e toda a maquinaria, com manutenção dos postos de trabalho existentes e..."
Isabel virou-se bruscamente para olhar Miguel. Ele mantinha-se impassível, mas os seus olhos encontraram os dela por um momento. Eram os mesmos olhos castanhos que, há oito meses, tinham demonstrado tanta preocupação quando ela explicara a situação desesperada da empresa.
Durante o intervalo regulamentar da assembleia, Isabel refugiou-se na antiga biblioteca do tribunal, agora usada como sala de consulta processual. O cheiro dos livros antigos de direito comercial trazia-lhe memórias das aulas na faculdade, quando tudo parecia possível.
"Alguns destes códigos são mais antigos que as nossas empresas juntas," disse uma voz familiar atrás dela. Miguel estava encostado à porta, segurando dois copos de água do dispensador do corredor.
"A minha proposta não é hostil," continuou ele, aproximando-se. "Lembras-te do que te disse naquela última reunião?"
Como poderia esquecer? Tinha sido num restaurante em Matosinhos, com vista para o mar. Ele tinha dito que acreditava no potencial da empresa, que era uma questão de reestruturação, de nova gestão...
"Precisavas de alguém com experiência no mercado internacional," continuou ele. "Alguém que percebesse que algumas tradições valem a pena preservar."
Isabel aceitou o copo de água, os seus dedos roçando momentaneamente nos dele. "Por que não me disseste que ias apresentar esta proposta?"
"Porque precisava que fosse completamente transparente. Sem suspeitas de favorecimento ou acordos prévios." Ele fez uma pausa. "E porque queria provar-te que nem todos os credores são abutres à espera do fim."
De volta à assembleia, enquanto os credores discutiam a proposta, Isabel observava o perfil de Miguel. Como não tinha percebido antes? Todas aquelas reuniões tensas, as tentativas de negociação... ele não estava apenas a proteger o seu investimento. Estava a tentar protegê-la.
Quando a votação finalmente aconteceu, a proposta da Santex foi aprovada por larga maioria. O plano previa não só a manutenção da marca e dos trabalhadores, mas também um lugar para Isabel na nova administração - "pela sua experiência inestimável no setor", justificou Miguel formalmente.
Ao final da tarde, quando o sol poente tingia de dourado as pedras do Palácio da Justiça, Isabel encontrou um pequeno envelope no seu lugar. Dentro, um cartão com a caligrafia elegante de Miguel:
"Dizem que das cinzas nasce a fénix. Jantamos em Matosinhos? Conheço um lugar com a melhor vista para planear futuros..."
E assim, naquele mesmo tribunal onde tantas empresas encontravam o seu fim, uma história diferente começava. Uma história onde os números negativos se transformaram em possibilidades positivas, onde um credor se tornou um parceiro, e onde a insolvência de uma empresa levou à solvência de dois corações.
O processo foi arquivado meses depois, com todos os carimbos e formalidades necessários. Mas o verdadeiro final feliz não estava nos autos - estava na forma como duas pessoas descobriram que alguns ativos não podem ser quantificados em balanços contabilísticos.
E dizem que, ainda hoje, quando há assembleias de credores no Palácio da Justiça do Porto, alguns funcionários mais antigos contam a história de como, às vezes, a melhor forma de recuperar uma empresa é também recuperar a esperança.
O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
Na prática, discutia-se uma máquina de lavar roupa. A filha, Leonor, seis anos, vivia com a mãe, via o pai de quinze em quinze dias e às quartas-feiras à tarde. O pai pedia alteração ao regime para incluir uma noite adicional por semana. A mãe aceitava a alteração, com uma condição: que a roupa voltasse lavada.
A estante continuava no apartamento que partilharam durante anos. Ela saíra há oito meses, depois de uma separação silenciosa, feita de rotinas que deixaram de se sincronizar. Ele ficara. Nenhum dos dois mencionara a estante nos dias da divisão prática. Nem na devolução das chaves. Nem na última mensagem trocada.
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