No Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, decorria naquela manhã um processo que fazia sorrir até o mais sério dos magistrados. Os dois réus estavam sentados lado a lado. À esquerda, José Carvalho, arquiteto. À direita, Luísa Santos, restauradora de arte.
No imponente Tribunal Judicial da Comarca de Coimbra, onde séculos de sabedoria jurídica pareciam impregnar as próprias paredes, decorria naquela manhã um processo que fazia sorrir até o mais sério dos magistrados. O Dr. Manuel Ribeiro, juiz de direito com trinta anos de experiência e conhecido pelo seu rigor absoluto, olhava por cima dos óculos de leitura para os autos que tinha à sua frente, tentando manter a compostura profissional que a sua posição exigia.
"Processo nº 876/2023, Tribunal Judicial de Coimbra, Juízo Local Cível," anunciou o escrivão. "Autor: Condomínio do Edifício Mondego Residence. Réus: Sr. José Carvalho e Sr.ª Luísa Santos."
Os dois réus estavam sentados lado a lado, embora com uma distância estudada entre eles. À esquerda, José Carvalho, arquiteto de cinquenta e poucos anos, com cabelo grisalho meticulosamente penteado e um fato cinzento impecável. À direita, Luísa Santos, restauradora de arte de idade semelhante, com cabelo castanho apanhado num coque elegante e um vestido discreto mas obviamente de bom gosto.
"Meritíssimo," começou o Dr. Paulo Mendes, advogado do condomínio, "os factos são simples e irrefutáveis. Os réus, proprietários de apartamentos contíguos no quinto andar do Edifício Mondego, envolveram-se numa disputa que resultou em danos à propriedade comum e perturbação da paz do condomínio."
O juiz assentiu, folheando o processo.
"Segundo consta dos autos," continuou o advogado, "no dia 14 de março deste ano, o Sr. José Carvalho decidiu remodelar a sua varanda. Para tal, encomendou e instalou azulejos tradicionais portugueses na parede exterior, incluindo a parte que faz fronteira com a varanda da Sr.ª Luísa Santos."
"Meritíssimo," interrompeu a Dr.ª Joana Almeida, advogada de Luísa Santos. "Os azulejos em questão não eram simplesmente 'tradicionais' – eram réplicas de um padrão do século XVIII com cenas pastoris explicitamente românticas, escolhidos com uma intenção muito específica."
"A intenção do meu cliente era puramente estética", contrapôs o Dr. António Sousa, advogado de José Carvalho. "Como arquiteto especializado em recuperação de edifícios históricos, o Sr. Carvalho tem particular apreço pela azulejaria portuguesa tradicional."
O juiz ergueu a mão, silenciando os advogados.
"Prossiga com os factos, Dr. Paulo."
"Após a instalação dos azulejos pelo Sr. Carvalho, a D. Luísa Santos respondeu instalando, na sua própria varanda, um conjunto de azulejos contemporâneos com designs abstratos em tons vibrantes, numa clara contraposição estética."
"Meritíssimo," interveio a Dr.ª Joana. "A minha cliente, como restauradora de arte especializada em cerâmica portuguesa, fez uma escolha legítima baseada no seu gosto pessoal e na sua expertise profissional."
O juiz suspirou, já antevendo a complexidade do caso aparentemente simples.
"Continuando", prosseguiu o advogado do condomínio. "A situação escalou quando o Sr. Carvalho ampliou a sua instalação de azulejos, acrescentando um painel com uma cena de uma dama a ler uma carta junto a uma janela, virada precisamente para a varanda da Sr.ª Santos."
"A dama não estava a ler uma carta qualquer, Meritíssimo", interveio a Dr.ª Joana. "Era uma clara representação de uma carta de amor, com corações visíveis no papel representado no azulejo."
"A iconografia tradicional portuguesa é rica em simbolismo que pode ser interpretado de múltiplas formas.", protestou o advogado.
O juiz ajustou os óculos, começando a entender a verdadeira natureza do caso.
"E como respondeu a D. Luísa Santos a este... painel?" perguntou, já antecipando a resposta.
"A D. Luísa Santos respondeu instalando um painel contemporâneo representando uma mulher rasgando papéis, claramente visível da varanda do Sr. Carvalho," respondeu o advogado do condomínio. "Foi então que os outros condóminos começaram a notar o padrão e a preocupar-se com o impacto visual no edifício."
"A situação culminou," continuou ele, consultando as suas notas, "quando ambos os réus decidiram, na mesma semana e sem conhecimento um do outro, instalar sistemas de som nas suas varandas. O Sr. Carvalho programou o seu para tocar fados românticos, enquanto a D. Luísa Santos optou por jazz contemporâneo em volume consideravelmente alto."
Um murmúrio divertido percorreu a sala, rapidamente silenciado pelo olhar do juiz.
"Resultado: uma cacofonia insuportável para os restantes moradores, além de uma fachada que, segundo a administração do condomínio, 'parece um combate travado em cerâmica vidrada entre o século XVIII e a arte contemporânea'."
O juiz removeu os óculos, esfregando a ponte do nariz.
"Compreendo a posição do condomínio. Antes de prosseguirmos com as alegações formais, gostaria de ouvir diretamente os réus. Sr. José Carvalho, pode explicar a razão da sua... expressão artística na varanda?"
José levantou-se, ajustando nervosamente a gravata.
"Meritíssimo, como arquiteto com especialização em restauro, sempre apreciei a azulejaria portuguesa tradicional. A minha escolha foi puramente estética e absolutamente dentro dos meus direitos de proprietário."
"E o painel específico com a dama a ler uma carta?" insistiu o juiz.
José hesitou, olhando de relance para Luísa.
"Admito que essa escolha foi... mais pessoal. Conheço a Luísa Santos há mais de vinte anos. Fomos colegas na universidade, onde partilhámos um interesse comum pela arte portuguesa, embora com visões muito diferentes."
"Continua," encorajou o juiz, sentindo que estavam finalmente a chegar ao cerne da questão.
"Também partilhámos um breve mas intenso relacionamento nessa época," admitiu José, baixando ligeiramente a voz. "Que terminou quando recebemos ofertas de estágio em diferentes países – eu em Espanha, ela em Itália. Prometi escrever-lhe, e escrevi. Vinte e três cartas, para ser preciso. Nunca recebi resposta."
O juiz olhou para Luísa, que mantinha uma expressão impassível, embora um ligeiro rubor tivesse aparecido nas suas faces.
"D Luísa Santos, a sua versão dos acontecimentos, por favor."
Luísa levantou-se com a elegância de quem está habituada a apresentações formais em galerias de arte.
"Meritíssimo, confirmo o relacionamento universitário mencionado pelo Sr. Carvalho. Quanto às cartas, recebi exatamente três, não vinte e três. Depois disso, silêncio absoluto."
"Impossível!" exclamou José, esquecendo o protocolo. "Enviei todas as cartas para a morada do atelier onde estagiava em Florença."
Luísa virou-se para ele, a compostura finalmente quebrada.
"Florença? O meu estágio era em Roma, não em Florença! Enviei-te essa informação no postal de Natal que te mandei, com o novo endereço claramente indicado!"
"Postal de Natal? Nunca recebi nenhum postal!"
"Parece que temos um caso clássico de correspondência extraviada," comentou, com um traço de ironia. "Mas ainda não entendo como isso se relaciona com uma guerra de azulejos quatro décadas depois."
Luísa respirou fundo, recuperando a compostura.
"Após os estágios, seguimos vidas separadas. Casei, divorciei-me, construí uma carreira internacional em restauro. Há três anos, quando regressei a Portugal e procurava casa em Coimbra, nunca imaginei que compraria o apartamento ao lado do homem que um dia..."
"Do homem que um dia o quê…?" pressionou gentilmente o juiz quando ela hesitou.
"Do homem que um dia significou muito para mim," completou ela, em voz baixa.
"E quando descobriram que eram vizinhos?" perguntou o juiz.
"Foi no dia em que me mudei," respondeu José, retomando a narrativa. "Saí para a varanda e lá estava ela, do outro lado da divisória baixa, tão surpreendida quanto eu. Tentei iniciar uma conversa, mas a D. Luísa Santos foi... distante. Apenas trocámos cumprimentos formais durante os dois anos seguintes."
"Até aos azulejos," concluiu o juiz.
"Sim, Meritíssimo. Decidi renovar a minha varanda e, admito, a escolha dos azulejos não foi completamente inocente. Queria... bem, queria iniciar algum tipo de comunicação, mesmo que através de imagens de cerâmica."
"E eu respondi da única forma que me pareceu adequada," completou Luísa. "Com azulejos que representassem a minha própria visão estética – contemporânea, livre de nostalgia, virada para o futuro."
O juiz olhou para ambos por um longo momento, depois consultou novamente o processo.
"O condomínio solicita que ambos removam todas as instalações e restaurem as varandas ao seu estado original, além de uma indemnização pelos transtornos causados. Antes de decidir, gostaria de saber se os réus têm alguma proposta alternativa."
Os advogados de ambas as partes pediram alguns minutos para consultar os seus clientes. Durante esse breve intervalo, José e Luísa trocaram alguns olhares que, pela primeira vez, não pareciam completamente hostis.
Quando a sessão recomeçou, o advogado de José foi o primeiro a falar.
"Meritíssimo, o meu cliente propõe uma solução alternativa: em vez de remover os azulejos, ele e a D. Luísa Santos trabalhariam em conjunto num projeto unificado para ambas as varandas, combinando elementos tradicionais e contemporâneos num diálogo estético que respeitaria a harmonia visual do edifício."
"A minha cliente concorda com esta proposta," acrescentou a advogada de Luísa, surpreendendo todos na sala. "Como restauradora especializada em integração de elementos históricos e contemporâneos, a D. Luísa Santos acredita que poderiam criar um projeto que não só resolveria a disputa, mas poderia até valorizar o edifício."
O juiz olhou diretamente para os dois.
"Esta proposta parece-me sensata. Mas estão realmente dispostos a trabalhar juntos depois de toda esta... comunicação azulejar?"
Pela primeira vez desde o início da audiência, José sorriu.
"Meritíssimo, a D. Luísa Santos sempre foi uma artista excecionalmente talentosa. Seria um privilégio colaborar com ela."
"E o Sr. Carvalho sempre teve um olho extraordinário para as proporções e a harmonia espacial," respondeu Luísa, com um leve sorriso. "Profissionalmente, acredito que poderíamos criar algo notável."
"E quanto aos sistemas de som?" perguntou o juiz, já antecipando a resolução completa do caso.
"Serão removidos imediatamente," responderam ambos em uníssono, provocando risos discretos na sala.
O juiz considerou por alguns momentos, depois anunciou a sua decisão.
"Face à proposta construtiva apresentada e ao acordo entre as partes, determino o seguinte: os réus terão um prazo de dois meses para apresentar e implementar um projeto conjunto para as suas varandas, que deverá ser previamente aprovado pela administração do condomínio. Os sistemas de som serão removidos no prazo de 48 horas. Quanto à indemnização solicitada, fica reduzida a um valor simbólico de 100 euros por cada réu, destinados ao fundo de reserva do condomínio."
"E, embora isto não faça parte da sentença formal, sugiro fortemente que os réus aproveitem este projeto conjunto para esclarecer de uma vez por todas a questão das cartas extraviadas. A vida é demasiado curta para deixar que mal-entendidos postais do século passado interfiram com possíveis... colaborações futuras."
Seis meses depois, a varanda unificada do quinto andar do Edifício Mondego tornou-se uma pequena atração turística em Coimbra. O projeto, batizado como "Diálogo em Cerâmica", apresentava um fascinante entrelaçamento de estilos tradicionais e contemporâneos, onde figuras clássicas pareciam conversar com formas abstratas num harmonioso debate visual.
A Faculdade de Arquitetura chegou a organizar visitas de estudo para que os alunos pudessem apreciar o que o professor de História da Arte descreveu como "uma metáfora perfeita da evolução da identidade cultural portuguesa – respeitosa do passado mas corajosamente voltada para o futuro".
O que poucos sabiam, exceto talvez o Dr. Manuel Ribeiro que acompanhava o desenvolvimento do caso com discreto interesse, era que o verdadeiro diálogo tinha ocorrido não apenas entre os estilos cerâmicos, mas entre os seus criadores.
Durante as longas tardes de trabalho conjunto, enquanto desenhavam, planeavam e discutiam cada detalhe do projeto, José e Luísa foram lentamente reconstruindo a história das famosas cartas perdidas. Uma investigação às antigas moradas revelou que o postal de Natal de Luísa tinha sido devolvido com a indicação "destinatário desconhecido" devido a um erro no número da porta. Quanto às cartas de José, a maioria tinha sido enviada para o atelier em Florença e redirecionada para Roma, onde Luísa nunca as recebeu porque, ironicamente, tinha sido transferida para um projeto em Veneza apenas duas semanas após enviar o postal.
"Dezenas de cartas a cruzarem a Itália enquanto nós próprios nos mudávamos de cidade em cidade," comentou Luísa com um sorriso melancólico, numa tarde em que aplicavam os últimos azulejos do projeto. "Uma comédia de erros digna de Shakespeare."
"Ou uma tragédia evitável, se tivéssemos tido telemóveis naquela época," respondeu José, passando-lhe cuidadosamente um azulejo especial que tinha guardado para o final – uma peça híbrida que ele mesmo tinha desenhado e ela tinha pintado, unindo os seus estilos numa única obra.
O azulejo, estrategicamente colocado no ponto exato onde as duas varandas se encontravam, mostrava duas cartas com carimbos postais de diferentes cidades italianas, cruzando-se no ar sobre um mapa. Por baixo, em letras elegantes, estava inscrita uma frase em latim: "Nunquam sera est" – Nunca é tarde demais.
Quando o projeto foi oficialmente inaugurado, com a presença do condomínio completo e até mesmo do juiz que, "por acaso", passava pelo local, José e Luísa ofereceram uma pequena receção nas suas varandas agora unificadas. O que começou como duas varandas separadas tinha-se transformado num espaço contínuo, sem barreiras visíveis, onde o passado e o presente conviviam em harmonia.
No final da receção, quando todos já se tinham retirado exceto o juiz, que apreciava um último copo de vinho enquanto observava o pôr-do-sol sobre o Mondego, José aproximou-se dele com uma expressão de gratidão.
"Obrigado, Meritíssimo. A sua sabedoria foi além da mera aplicação da lei."
O juiz sorriu, olhando para Luísa que conversava animadamente com a presidente do condomínio.
"A verdadeira arte da magistratura, Sr. Carvalho, não é apenas aplicar o código, mas perceber quando é preciso dar um pequeno empurrão para que as pessoas encontrem as suas próprias soluções. Às vezes, tudo o que precisamos é de um pretexto para iniciar o diálogo."
"Como azulejos numa varanda," comentou José.
"Exatamente. A vida dá-nos materiais diversos – tradições, memórias, mal-entendidos, esperanças. A arte está em saber compô-los num padrão que faça sentido."
Quando o juiz finalmente se retirou, José e Luísa ficaram sozinhos na varanda, observando as primeiras estrelas que começavam a pontilhar o céu sobre Coimbra, cidade que tinha testemunhado tantos amores estudantis ao longo dos séculos.
"Sabes," disse Luísa, quebrando um silêncio confortável, "ainda tenho as três cartas que recebi. Guardei-as todos estes anos."
"E eu ainda me lembro do conteúdo das vinte que nunca te chegaram," respondeu ele.
Luísa virou-se para ele, com um brilho divertido nos olhos.
"Acho que me deves vinte cartas, então."
"Ou podemos simplesmente conversar todos os dias, sem intermediários postais," sugeriu ele, tomando-lhe a mão com a naturalidade de quem retoma um gesto interrompido décadas antes.
Um ano depois, o Edifício Mondego testemunhou mais uma transformação significativa. A parede interior que separava os dois apartamentos foi removida, criando um único espaço amplo onde azulejos tradicionais e arte contemporânea conviviam nas paredes, tal como os seus proprietários.
E no tribunal de Coimbra, sempre que surgia um caso particularmente complicado de disputa entre vizinhos, o Dr. Manuel Ribeiro sorria para si mesmo e perguntava aos litigantes: "Já pensaram em expressar os vossos sentimentos através de azulejos? Tenho conhecimento de um caso em que funcionou extraordinariamente bem."
"Representa tudo o que não sei como dividir. As memórias, os rituais diários, as pequenas tradições. Posso dividir móveis e brinquedos, mas como divido os momentos em que penteava o cabelo da Ema todos os dias enquanto ela se olhava no espelho?"
"O cachecol é uma herança de família," contrapôs a advogada de Beatriz. "Quando o casamento terminou, os objetos sentimentais da família Sousa deveriam ter regressado à família."
A chave ainda funcionava perfeitamente. Entraram na cozinha onde tinham tomado milhares de pequenos-almoços, onde tinham discutido problemas dos filhos, onde tinham planeado férias que já pareciam de outras vidas.
"Às vezes precisamos de lembrar que há diferentes formas de medir o tempo. Há o tempo dos adultos, cronometrado e urgente. E há o tempo das crianças, que se mede em sorrisos e abraços", explicou a juíza Dr.ª Isabel Moreira.
O juiz ouviu com atenção, mas a cadeira traía-o: inclinava-se sempre ligeiramente para a direita, como se forçasse todas as decisões para um dos lados.
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