Sábado – Pense por si

Maria J. Paixão
Maria J. Paixão Investigadora
18 de maio de 2025 às 11:30

Os mártires têm corpos de criança

Desde outubro de 2023, foram assassinadas mais de 17.000 crianças palestinianas, mais do que o número de crianças mortas em todo o mundo noutros conflitos durante 4 anos. Este número agonizante traduz-se na morte de uma criança a cada 45 minutos.

Na passada quinta-feira, dia 15 de maio, comemorou-se o Dia de Nakba. Nakba significa, em português, catástrofe, e reporta-se à limpeza étnica operada por Israel entre abril e maio de 1948. A comemoração ocorre no dia a seguir ao dia do estabelecimento do Estado de Israel, que teve lugar a 14 de maio de 1948. Assim que o mandato britânico cessou, grupos paramilitares e, mais tarde, as forças armadas israelitas invadiram cidades e vilas palestinianas, cometendo massacres, ocupando terras e casas e forçando à deslocação cerca de 750.000 palestinianos árabes. Entre 1947 e 1949, as forças israelitas ocuparam 78% da Palestina histórica e suprimiram a identidade, cultura e os direitos dos palestinianos que conseguiram permanecer. A violência da ocupação foi brutal e assumiu as mais diversas formas, desde a contaminação biológica das águas até ao massacre de comunidades, passando pelo terror psicológico. Os 750.000 palestinianos expulsos representavam cerca de 80% da população dos territórios ocupados, tendo-se tornado refugiados e impedidos de regressar.

Enquanto o septuagésimo sétimo aniversário do Nakba era assinalado, o Estado de Israel aprovou um plano para ocupar a Faixa de Gaza – a par da Cisjordânica, as únicas parcelas de território ainda não formalmente anexadas. Benjamin Netanyahu anunciou a "conquista" de Gaza, alertando que a operação envolverá um deslocamento significativo da população. Desde que violou o acordo de cessar-fogo, Israel intensificou, não só os ataques, mas também a sua brutalidade, enquanto bloqueia a entrada de ajuda humanitária, alimentos e água potável em Gaza. As condições de vida são atrozes e desumanas, disseminando-se a fome a doença. O Alto-Comissário das Nações Unidas para os Direitos Humanos descreveu a ação israelita como uma limpeza étnica, claramente dirigida a alcançar uma mudança demográfica permanente, mediante assassínio ou expulsão dos palestinianos.

Nos últimos dezanoves meses, Israel assassinou milhares de profissionais médicos a operar no terreno e destruiu por completo os serviços de saúde que apoiava a população, dirigindo ataques sucessivos a hospitais e instalações e abrigos utilizados pela ONU e por organizações não-governamentais para prestar assistência médica humanitária. Foram também assassinadas mais de duas dezenas de jornalistas, sendo este o número mais elevado de jornalistas mortos em cenário de guerra, superando, inclusive, a I e a II Guerra Mundial, a Guerra do Vietname, a Guerra da Jugoslávia e a Guerra do Afeganistão. Desde outubro de 2023, foram assassinadas mais de 17.000 crianças palestinianas, mais do que o número de crianças mortas em todo o mundo noutros conflitos durante 4 anos. Este número agonizante traduz-se na morte de uma criança a cada 45 minutos; 30 crianças por dia. No total, mais de 50.000 palestinianos foram assassinados, das quais 31% tinham menos de 18 anos. Na Faixa de Gaza, meio milhão de pessoas enfrentam risco de morte por fome. Várias organizações não-governamentais, bem como as estruturas da ONU, têm alertado para o facto de Israel estar a utilizar a fome como estratégia de guerra.

Perante este cenário inarrável, é impossível não concluir que o Nakba iniciado em 1948 continua em curso. Os números de mortos civis, sobretudo crianças, o assassínio e perseguição de pessoal médico e jornalistas, o bloqueio sistemático de ajuda humanitária e a fome generalizada imposta não deixam dúvidas sobre o intuito genocida da ação israelita. Dúvidas não podem restar, aliás, em face das declarações dos dirigentes israelitas. Incentivados pela conivência das potências ocidentais, têm se mostrado cada vez mais inequívocos quanto ao seu objetivo final: ocupar toda a Palestina histórica e eliminar a presença da população árabe, quer pelo extermínio, quer pela expulsão.

Num cenário como este, escasseiam as palavras para qualificar a posição dos líderes europeus. Diferentemente de outros tempos, hoje sabemos o que se passa em Gaza e na Cisjordânia. Enquanto escrevo este texto, várias crianças morreram e outras tantas sucumbem à fome; milhares de pessoas deixam as suas mensagens finais, assistindo em tempo real aos avanços forças israelitas, pelos céus e por terra; dois milhões de pessoas, com corpos e almas massacrados, angustiam-se perante a iminência da sua expulsão, sem sítio para onde ir. Não há nenhuma escapatória moral para aqueles que, acomodados nos seus gabinetes oficiais, escolhem ser indiferentes ao maior martírio do nosso tempo. O argumento segundo o qual os civis assassinados e as escolas, hospitais e abrigos destruídos seriam meros danos colaterais, consequência indesejada, mas inevitável do "direito de defesa" do Estado de Israel, é, porventura, mais deplorável do que a posição frontalmente aberrante de figuras como Trump. Há uma especial perversão em afirmar que milhares de mortos civis, a maior parte mulheres e crianças, são "danos colaterais". Desde quando a vida humana se tornou uma colateralidade? E com que seriedade se afirma isso depois de dezanove meses de massacre, de fome induzida, de tortura e de declaração pública do objetivo de ocupar os territórios e eliminar a presença palestiniana?

A 28 de fevereiro foram a votação, no Parlamento português, quatro projetos. Entre eles encontravam-se um projeto que recomendava ao Governo a participação nos esforços de envio de ajuda humanitária à Faixa de Gaza e outro que recomendava ao Governo o cumprimento do mandado emitido pelo Tribunal Penal Internacional sobre Benjamin Netanyahu e Yoav Gallant. Ambos foram reprovados, com os votos contra do PSD, do Chega, da Iniciativa Liberal (que se absteve quanto ao primeiro) e do CDS. Todos estes partidos recusaram, portanto, o envio de ajuda humanitária e o cumprimento da decisão de um tribunal internacional. Perante o genocídio em curso, seria o mínimo. Amanhã que entramos na cabine de voto, não esqueçamos aquilo que a História certamente não esquecerá.

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