Sábado – Pense por si

Margarida Reis
Margarida Reis Secretária-geral da Associação Sindical dos Juízes Portugueses
15 de agosto de 2025 às 10:00

Naufrágio da civilização

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Edição de 13 a 19 de agosto

"O afundamento deles não começou no Canal; começou quando deixaram as suas casas. Talvez até tenha começado no dia em que se lhes meteu na cabeça a ideia de que tudo seria melhor noutro lugar, quando começaram a querer supermercados e abonos de família".

O interregno estival é o momento para pôr em dia as leituras para as quais não sobra tempo durante o resto do ano, num ritual absolutamente indispensável. 

Este verão impressionou-me um pequeno livro, escrito em 2023 pelo filósofo e novelista francês Vincent Delecroix, e inspirado no naufrágio, na madrugada do dia 24 de novembro de 2021, de um bote insuflável que transportava migrantes de França para o Reino Unido. 

O bote que transportava 30 migrantes, naufragou em águas francesas do Canal da Mancha, junto a Calais, causando 27 mortos, dois sobreviventes e um desaparecido. As vítimas eram maioritariamente curdas do Iraque, mas também um curdo do Irão, quatro afegãos, três etíopes, uma somali, um egípcio e um vietnamita, contando-se entre elas

Ocorrida na fronteira entre as águas territoriais francesas e britânicas, esta tragédia suscitou acusações de falta de assistência; de acordo com registos de chamadas (os telefonemas trocados entre as vítimas e os serviços de assistência franceses e ingleses ter-se-ão prolongado durante 4 horas, até à consumação do inevitável naufrágio…) e testemunhos, os dois países recusaram assistência, alegando não estarem em causa as respetivas águas territoriais - versão que foi confirmada pelo inquérito oficial francês. 

Em pouco mais de 100 páginas de escrita escorreita e despretensiosa, é totalmente quebrada a paz do morno alheamento do leitor. Confessadamente, o Autor pretendeu proporcionar aos leitores “… um profundo desconforto, talvez mesmo um choque moral”.

O desapego relativamente ao destino das vítimas é encarnado por uma personagem ficcional, uma operadora do CROSS (Centro de Vigilância e Salvamento Marítimo), que a todo o custo se tenta distanciar da admissão de qualquer responsabilidade pelo sucedido. 

"O afundamento deles não começou no Canal; começou quando deixaram as suas casas. Talvez até tenha começado no dia em que se lhes meteu na cabeça a ideia de que tudo seria melhor noutro lugar, quando começaram a querer supermercados e abonos de família, quando ouviram falar da Segurança Social ou quando um primo a viver em Londres lhes disse que se podia ficar bilionário a lavar pratos num restaurante tâmil. (…) Uma coisa é certa: não sou eu quem está de vassoura na mão, a varrê-los pela superfície da terra e a atirá-los para o caixote do lixo do Canal. Em suma, poder-se-ia perguntar: quem é que lhes pediu para partir? De certeza que não fui eu". 

Na segunda parte do livro, um relato pungente dos últimos momentos das vítimas interdita qualquer possibilidade de alheamento dos leitores. 

Naufrage, ou Small Boat, na tradução para inglês de Helen Stevenson, integrou a primeira seleção de obras candidatas ao prémio Goncourt de 2023 e a seleção limitada de candidatos ao Booker Prize de 2025, e não está traduzido para português, pelo que o extrato citado foi traduzido livremente. 

Não me atreveria a aconselhar este ou qualquer outro livro, não tenho essa pretensão, mas deixo registada a minha inquietação perante a banalidade da indiferença que persiste em instalar-se, lenta e inexoravelmente, e o seu (alarmante) efeito anestesiante. 

Relembro apenas, a este propósito, os esforços incansáveis do Papa Francisco, que tanto lutou para nos arrancar ao torpor da impassibilidade perante o destino dos refugiados e migrantes que procuram na Europa – e sim, também no nosso país – um destino seguro e de Esperança, exortando-nos a pôr fim ao que tão acertadamente apelidou de “naufrágio da civilização”. 

Este texto representa apenas a opinião da autora, não comprometendo a Associação Sindical dos Juízes Portugueses

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