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Chile pode eleger o primeiro presidente que reivindica o legado do ditador Pinochet

Três candidatos de direita na corrida presidencial assumem-se como "pinochetistas".

O Chile vota este domingo num cenário político que reedita, aos tempos atuais, a dicotomia entre o socialista Salvador Allende e o ditador Augusto Pinochet, com três candidatos que reivindicam o legado do general, 52 anos após o golpe militar.

Kast, candidato presidencial, discursa no Chile
Kast, candidato presidencial, discursa no Chile EPA/Ailen Diaz

“Desde 1990, quando se restaurou a democracia no Chile, todos os presidentes foram de centro-esquerda ou de centro-direita, contrários a Pinochet, incluindo o Presidente Sebastián Piñera. Agora, se um dos três candidatos da direita ganhar, teremos um presidente ‘pinochetista’. Será a primeira vez na nossa história”, disse à Lusa o analista político, escritor e ex-embaixador do Chile em Portugal (2009-2012), Fernando Ayala.

Em 11 de setembro de 1973, Salvador Allende, então o único socialista a chegar à Presidência pelo voto popular e, por isso, uma referência em toda a América Latina, suicidava-se ao ver os bombardeamentos ordenados pelo general Augusto Pinochet ao Palácio La Moneda, sede do Governo chileno e palco do golpe militar.

Passados 52 anos, Jeannette Jara, a primeira candidata comunista apoiada por uma coligação de centro-esquerda, concorre contra três candidatos, dois da extrema-direita, mas todos abertamente ‘pinochetistas’. Se antes os políticos de direita chilenos reivindicavam a escola neoliberal de Pinochet na economia, agora, os candidatos reivindicam o legado do ditador em toda a sua extensão, sobretudo a chamada “mão-dura” como forma de combater o crime e estão dispostos a rever os limites dos direitos humanos.

O candidato de extrema-direita, José António Kast, segundo em intenções de voto, disse que, se Pinochet estivesse vivo, votaria em si.

O também candidato de extrema-direita, Johannes Kaiser, tecnicamente empatado com Kast, sustentou, que se o país estivesse nas mesmas condições políticas de há 52 anos atrás, ele apoiaria um novo golpe de Estado.

A candidata de direita, Evelyn Matthei, filha de Fernando Matthei, um dos integrantes da junta de governo militar de Pinochet, defende que o golpe era inevitável ou o Chile se tornaria Cuba. Também considera que os crimes cometidos nos dois primeiros anos da ditadura eram inevitáveis.

Os três descendentes de alemães cumprimentam-se em alemão e anunciam que vão libertar os militares condenados por crimes de lesa humanidade durante a ditadura. E se aquele golpe de 1973 foi financiado pela CIA, agora Donald Trump já disse que está à espera de somar um aliado ideológico no Chile.

“Diferentemente de todos os demais países onde os ditadores morreram no poder, fugiram ou foram presos, Pinochet manteve-se como comandante do Exército e senador vitalício. Essa anomalia nunca se resolveu porque a sua Constituição continua vigente e quando tivemos a chance de enterrá-la definitivamente, falhamos”, conta Fernando Ayala.

Nestas eleições, como nunca antes nos últimos 35 anos de democracia, Pinochet revive. No ato de encerramento da campanha de Johannes Kaiser, imagens do general eram vendidas como pagelas de santos.

Um estudo da consultoria Cadem indicou, em setembro, que Pinochet é a segunda figura histórica mais admirada pelos chilenos com 10% dos votos, três pontos a mais do obtido no ano passado, quando começou a aparecer na lista dos dez mais admirados. Em 2023, ano dos 50 anos do seu golpe de Estado, apenas conseguiu 4% de votos.

O deposto Salvador Allende, sempre na lista, ficou agora em terceiro lugar, com 8%.

“O motivo pelo qual os chilenos estão a reviver os símbolos da ditadura é a situação da criminalidade no país e a demanda social por segurança através da mão-dura, uma bandeira política na qual a extrema-direita subiu”, observa Fernando Ayala.

Para a analista política Claudia Heiss, “estas eleições têm uma estética e uma retórica que reivindica a figura de Pinochet”.

“O que esperaria, a 50 anos do golpe de Estado, é que a direita mostrasse as suas credenciais democráticas, mas a verdade é que a ideia do caos e do medo que se usava nos tempos da ditadura ainda ressoa no eleitorado chileno”, aponta a cientista política da Universidade do Chile.

A presença de uma candidata comunista e a demanda por segurança pública contra o crime ajudam a manter a dicotomia chilena.

“Existe algo da guerra fria presente nos debates atuais. A direita fala do cancro marxista e defende o estado mínimo e certas ideias programáticas, colocando a esquerda como irresponsável. Além disso, está muito viva a eclosão social de 2019, quando jovens foram às ruas numa épica parecida ao enfrentamento entre a Unidade Popular (de Salvador Allende) e o golpe de Estado (de Pinochet) com o uso da violência”, compara Claudia Heiss.

Há seis anos, milhares de pessoas foram às ruas em maciças e espontâneas manifestações populares contra a Constituição neoliberal de 1980, imposta por Pinochet e apontada como a génese da desigualdade no país.

“Não havia nenhuma ação coordenada nem nenhum grupo armado, mas essa eclosão social alimentou temores na direita reacionária e anticomunista”, explica Heiss.

“Enquanto não mudarmos essa Constituição, o fantasma de Pinochet vai continuar pelas ruas do Chile”, sentencia Fernando Ayala.