Dez histórias da autobiografia do papa Francisco
O livro Esperança conta episódios da família e da infância do papa argentino que conviveu com prostitutas, esmurrou um colega de escola e ajudou na fuga de opositores durante a ditadura.
Escrita durante os últimos seis anos, a autobiografia do Papa Francisco, Esperança, era para ser publicada após a sua morte. Mas o chefe da Igreja mudou de ideias e decidiu lançar a história da sua vida para marcar o Jubileu da Igreja Católica, celebrado este ano.
No livro, publicado em 80 países, o Papa argentino recorda a infância e as histórias de imigração dos avós, como a mãe o queria médico e a surpresa que viveu quando foi eleito papa, em 2013. A SÁBADO revela-lhe dez episódios.
Família imigrante
Os avôs, Giovanni e Rosa, e o pai, Mario, emigraram de Génova, Itália para Buenos Aires, Argentina, a 1 de fevereiro de 1929 com um bilhete de barco só de ida. Francisco descreve as máfias que, como hoje no Mediterrâneo, exploravam aqueles que procuravam uma vida melhor e recorda os naufrágios que também aconteceram na época. "Em 1893, após terem embarcado no Remo, os migrantes perceberam que havia sido vendido o dobro dos bilhetes em relação aos lugares disponíveis, de tal modo que a cólera explodiu a bordo. Os mortos foram lançados ao mar", escreve.
Em Buenos Aires, depois de identificados e desinfetados, os imigrantes eram instalados no chamado Hotel dos Imigrantes, uma barraca imunda, onde só poderiam permanecer durante cinco dias, tempo em que teriam de encontrar trabalho e tecto. Os avós de Bergoglio tiveram melhor sorte: os tios-avós tinham feito a viagem anos antes e tinham conseguido criar uma empresa de asfaltamento de estradas no Paraná. "Habitavam numa casa de quatro pisos, Prédio Bergoglio, que eles próprios haviam construído, a primeira de toda a cidade a ter um ascensor", escreve. Mas a crise mundial levou-os à falência e tiveram de vender tudo, até a capela no cemitério.
Sem pressa de nascer
Regina Maria Bergoglio esperava a chegada do primeiro filho na primeira semana de dezembro de 1936, mas passadas 43 semanas de gravidez, não sentira qualquer contrações. "A pontualidade agrada-me, é uma virtude que aprendi a apreciar. E considero um dever meu, um sinal de educação e respeito, chegar a horas. Porém, era a minha primeira vez e já estava atrasado", escreve o papa Francisco sobre o seu nascimento. Preocupada, no dia 17 a parteira chamou um médico e este, para induzir o parto, sentou-se na barriga da mãe a saltitar. "Foi assim que cheguei ao mundo".
Brincar ao Carnaval
Em criança, Jorge Bergoglio e o irmão Oscar desfilavam em cortejo com as outras crianças no Carnaval no bairro popular onde viviam. "Uma vez, vesti-me de tirolês, com o chapéu, a pluma e tudo o resto. Uma outra, teria onze anos e o Oscar nove, eu de noivo e o meu irmão de noiva. Enquanto desfilávamos, um rapazinho teve a infeliz ideia de pespegar a mão na nádega de Oscar; ele virou-se de repente, como se fosse atingido por um raio, levantou a grande saia e começou a correr atrás dele para lhe dar um estalo. Ainda hoje sorrio", recorda no livro.
Amor proibido
Na escola primária enamorou-se de uma colega, Amalia Damonte. "Escrevi-lhe uma carta em que lhe dizia que nos deveríamos casar, tu ou ninguém, e para dar força àquela proposta desenhei mesmo a casinha branca que compraria e onde um dia iríamos morar, um desenho que incrivelmente aquela menina conservou por toda a vida", escreve. Mas a mãe da menina não achou piada e afugentava-o com a vassoura, sempre que ele passava pela rua.
Convívio com prostitutas
No bairro Flores, conheceu duas irmãs, Ciche e Porota, ambas prostitutas. Mais tarde, já bispo, voltou a reencontrar Porota. "Tinha-a perdido completamente de vista, não a via desde quando era um rapazinho. «Ei, não te recordas? Soube que te fizeram bispo, quero ver-te!» Não parava de falar. «Vem», respondi, e recebi-a no bispado, ainda estava em Flores, devia ser o ano 1993. «Sabes», diz-me ela, «fui prostituta por toda a parte, até nos Estados Unidos. Ganhei dinheiro, depois apaixonei-me por um homem mais velho, foi o meu amante, e quando morreu mudei de vida. Agora, tenho uma pensão. E vou dar banho aos velhinhos e às velhinhas das casas de repouso que não têm ninguém que tome conta deles. À missa não vou muito, e com o meu corpo fiz de tudo, mas quero tratar dos corpos que não interessam a ninguém.» Uma Madalena contemporânea", escreve. Mais tarde rezou missa para um encontro de amigas de Porota. Esta pediu-lhe que viesse com tempo, porque todas se queriam confessar.
Culpa juvenil
Quando estudava no colégio interno salesiano Wilfrid Barón, emprestou a sua bicicleta a um amigo que a danificou após um acidente. "Então, disse-lhe que deveria mandá-la reparar e ele fê-lo: a sua mãe teve de pagar. Claramente, fazendo sacrifícios, dado que certamente não tinham meios. Permaneci com esta culpa durante anos. Verdadeiramente, durante anos", escreveu. Em 2009, quando já era cardeal, as autoridades atribuíram-lhe segurança privada após receber ameaças de morte. Descobriu, então, que um deles era filho do tal rapaz. Pediu o contacto do pai e pediu-lhe desculpas.
Pancadaria na escola técnica
Tirou o curso de técnico de laboratório numa escola profissional e envolveu-se numa briga com um colega de turma. "Fiquei atormentado durante algum tempo, pois da minha parte não havia sido uma coisa limpa. No recontro físico, tinha-o deitado ao chão e, ao cair, o rapaz batera com a cabeça e perdera mesmo os sentidos; e, além disso, fizera-o de um modo cobarde, que me envilecia", escreve. Visitou-o em casa e pediu-lhe desculpa, mas a culpa acompanhou durante anos.
Mãe contra o sacerdócio
A mãe queria vê-lo médico e não gostou quando Jorge Bergoglio anunciou a intenção de ingressar no seminário. "Não dizias que querias ser médico?», disse-me ela. Respondi que estava a refletir também acerca de outra coisa. Que ainda pensava sê-lo, mas mais das almas. Nem mesmo aquela resposta a contentou. Queria que fizesse a universidade: «Primeiro formam-se e depois decidem o que fazer», disse-me ela." Zangada, Regina Maria não acompanhou o filho no dia de entrada no seminário diocesano, em 1956.
Pressão durante a ditadura
Entre 1976 e 1983, durante a ditadura militar, ajudou pessoas a fugir do país, entregando mesmo o seu bilhete de identidade. "Foram anos terríveis, e para mim também de enorme tensão: transportar pessoas às escondidas através dos postos de controlo na zona de Campo de Mayo, ter confiadas as suas vidas, a salvação comum", escreve.
Surpresa no conclave
Já tinha comprado o bilhete de regresso a Buenos Aires, quando foi surpreendido pela sua eleição no conclave de 2013. "Nenhum papa tomará posse na Semana Santa", pensara: "Assim, no sábado, apanho o avião e vou-me embora. Regresso a casa. Ponto final." Começou a desconfiar quando alguns cardeais lhe perguntaram sobre as suas atividades durante a ditadura militar e, até mesmo, sobre a saúde dos seus pulmões, afetados por uma gripe, durante a juventude. Após a eleição, não aceitou a ostentação. "Tal como não quis a capa de veludo nem o carretel de linho... Não eram para mim. Dois dias depois, disseram-me que deveria mudar as calças, vestir umas brancas. Fizeram-se sorrir. Disse: «Não me agrada fazer de vendedor de gelados.» E mantive as minhas."
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Boas leituras!