Numa Lisboa onde a palavra identidade se pronuncia como tabu, esfarelando-se por novos negócios de estética polida mas de pouca alma, em Alvalade a resistência faz-se pela cozinha. Outrora uma pastelaria, fundada em 1958, a Vá-Vá foi, em décadas passadas, ponto de encontro de vizinhos, cineastas, artistas plásticos, músicos e pensadores; o café símbolo do novo cinema português e das tertúlias anti-regime.
Volvidas mais de seis décadas, a casa mudou: fechada em 2024, a Vá-Vá esteve em remodelações durante sete meses, ao longo dos quais se repensaram o perfil e o menu. Nasce agora uma cervejaria moderna que não esquece as raízes. Os azulejos da artista Menez foram destacados, o balcão original recuperado, a identidade preservada e as portas abrem esta quarta-feira, 12 de novembro, oficialmente como restaurante "para todas as horas". Ou quase: a cozinha funciona das 12h às 24h.
À frente está Carlos "Pipas" Maio (ex-2 Monkeys, que passou também pelo grupo JNcQUOI),
chef que entrou no projeto para fazer algo “tradicional, mas com um
twist” em alguns dos pratos, diz. A fórmula é simples e generosa, fazer da Vá-Vá um espaço onde "as pessoas se sintam bem a vir só comer um prego e beber uma cerveja”, refere, ao mesmo tempo que apresenta criações como a tosta à Vá-Vá — brioche, cachaço cozinhado em molho de cerveja e pimentão fumado, queijo de Azeitão e paiol de porco preto (€8) —, uma das promessas materializadas da nova vida que, espera, será prata da casa.
Numa tarde chuvosa, a porta semi-aberta deixa perceber que o burburinho já começou. Ao longo da conversa são vários os curiosos que espreitam pelos janelões e tentam perceber a nova dinâmica da casa, "perguntam quando abre, se vai ser a mesma coisa, contam-nos coisas da antiga Vá-Vá", diz Cristóvão Almeida, um dos sócios. Do lado de dentro percebe-se uma outra azáfama, na cozinha. Preparam-se caldos, testa-se a temperatura do que virá a ser o serviço, ultimam-se os preparativos antes da inauguração oficial, por esta altura já bem definidos.
Presunto de campo ibérico (€17), peixinhos da horta com molho tártaro (€9), ovos rotos clássicos, com presunto (€12) ou com camarão (€16), prego do lombo (€9) e amêijoas à Bulhão Pato (€24) são os petiscos da casa. A carta cresce com o peixe do dia (as lulas terão o seu espaço), com marisco e com os arrozes, de lavagante (€110/kg) e lingueirão (€25/dose).
"Trabalhamos também a carne maturada (entrecôte, T-bone e chuletón, expostos à freguesia, prontos para seguir para o carvão) e temos oito cervejas diferentes", continua o
chef. A nível de sobremesas, "não fugimos ao tradicional", defende: mousse de chocolate, arroz doce, bolo de bolacha e pudim Abade de Priscos (todos €6) são alguns dos remates finais da Vá-Vá.
Minimalista e confortável, senta agora 120 comensais ao todo, 12 ao balcão, 68 dentro e 40 fora, na esplanada coberta pela arcada do número 100 da Avenida dos Estados Unidos da América. As seis televisões convidam a ficar, especialmente em dias de bola, mas não seria uma cervejaria sem referir o bife à Vá-Vá (do lombo, €25), o pica-pau do lombo (€24) e as gambas à guilho (€16) para acompanhar os 90 minutos.
"Pegámos no espaço e, basicamente, transformámo-lo, mas respeitámos a história. Em termos de conceito, queremos ser uma cervejaria tradicional mas moderna, conjugar essas duas partes de estar num sítio histórico. Tem história com a parte da tradição mas tem a parte moderna com as ideias na cozinha. Isto é uma coisa importante para o bairro em termos de espaço, em termos de cozinha", alega o chef.
Nesta quarta-feira, as portas abrirão para novos encontros — cervejas, croquetes, pregos e recordações. E num balcão restaurado, ao lume da cozinha e da história dos azulejos de Menez, celebra-se não apenas a reabertura de um restaurante, mas a continuidade da história de um bairro. Talvez até de uma cidade.