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Toni Barreiros: "O Fundão não é só cerejas. Com muita insistência, consegui colocá-lo no roteiro das bandas"

Raquel Lito 05 de julho de 2025 às 10:00

É arquiteto de formação, mas o que o move é o combate à desertificação da Beira Baixa. Além de ter criado uma forte comunidade de nómadas digitais e vários pólos tecnológicos, ergueu um festival de música e artes visuais. Agora, abre as portas do palácio Picadeiro aos artistas que ali querem fazer acontecer.

Num sábado à noite, o telemóvel de Toni Barreiros toca insistentemente – o dever chama-o. Gosta de trabalhar sob pressão, não larga as tecnologias nem a música. Aos 47 anos, o arquiteto de formação e uma espécie de mecenas no território das cerejas, sonha que o município do Fundão vá muito além do fruto vermelho.

D.R.

Workaholic assumido, solteiro e empreendedor, passa as madrugadas a programar eventos culturais – depois do trabalho de responsável de inovação da autarquia. Garante que não é movido por política, mas por pessoas e partilha de conhecimento. O retorno vai acontecendo, ultimamente na vila de Alpedrinha (a 15 minutos de carro do Fundão), onde antes nada se passava e agora acolhe festivais e nómadas digitais. O palácio de granito, no topo da vila, é o seu cartão-de-visita.         

Acaba de abrir o palácio senhorial, chamado Picadeiro (1870), para residências artísticas. Como funciona?
A ideia é que funcione como um laboratório para trazer artistas e áreas de exposições abertas ao público. Por exemplo, os VJ’s podem testar nas paredes. Temos equipamento para o efeito, como computadores e projetores. Vários DJ's, o Alex Fx e o Gusta-vo, já perceberam que aqui têm excelentes condições para trabalhar, num sítio que os acolhe. Para já, vamos disponibilizar isto à comunidade, ou seja, sem custos para os artistas que aqui fizerem residências. O candidato faz a proposta para trabalhar no Picadeiro Hub Criativo, uma equipa avalia e faz a calendarização. Se for aceite, fica o tempo que necessitar para o projeto e asseguramos o alojamento na mesma zona, Alpedrinha, uma pequena vila no município do Fundão. O artista em residência no palácio publica fotos nas redes sociais e ganha escala, porque o Picadeiro é uma imagem que vende.

Porque é que diz isso?
Há dez anos, os norte-americanos Snarky Puppy, banda de referência no jazz de fusão, queriam vir para cá em residência, só que o espaço ainda não estava preparado. Se viessem, acredito que grandes nomes viriam a seguir, pelo passa-palavra, como os The XX, Bjork, etc.

Quanto tempo é que o palácio do Picadeiro esteve fechado?
Esteve muito tempo fechado, reabriu com este evento no ano passado. Era uma ruína, entretanto foi reabilitado e colocaram alguns conteúdos. Depois fechou, deixou de ter visitas, porque os conteúdos eram sempre os mesmos.

Como tem tantos contactos na música?
Sou festivaleiro, adoro concertos e fiz o conservatório de piano em Alpedrinha até ao terceiro ano. Trabalhei com músicos no festival de Vilar de Mouros, já estive com Placebo, Suede. Desde 2024, organizo aqui o festival Picadeiro Open Souds & Digital Art – a segunda edição decorreu a 13 e 14 de junho. Superou as expetativas, cresceu imenso e está num patamar que tem de ser gerido de outra maneira. Somos poucos na logística, precisamos de formar equipa. Ao longo de um ano, depois do trabalho ficava até às três ou quatro da manhã a pensar no festival, a programar o cartaz, a contactar artistas: tive de mandar mails em espanhol, italiano, inglês, alemão, francês. O mundo da música é muito sensível. 

Passaram mais de 40 artistas no Picadeiro Open Sounds & Digital Art, com música, arte digital, instalações imersivas e de realidade aumentada, performances, talks, workshops. O alinhamento contava com Dj Vibe, Two Lanes, Nicola Conte, etc. Os locais aderiram?
Poucos, 80% das pessoas vieram de Lisboa, do Porto, e muitos estrangeiros. Nós temos cá uma forte comunidade estrangeira de nómadas digitais. São os novos fundanenses. Um responsável pelo Avila Spaces, considerado um dos melhores espaços de coworking do mundo só dizia: "Isto não há em Lisboa. Se isto fosse em Lisboa seria um sucesso." Passei a noite a ouvir este tipo de comentários.

O arquiteto e professor na Universidade do Dubai José Carrillo trouxe uma instalação imersiva sobre comida associada à inteligência artificial. É o futuro?
Há um conjunto de máquinas, impressoras 3D, que vão produzir essa comida, que pode chegar ao garfo. Ou seja, é possível imprimir o garfo e depois comê-lo. Digamos que é a nata das natas da tecnologia. Ele consegue produzir comida.

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Foto: D.R.
Foto: D.R.
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O festival parecia uma mistura de Boom com a tecnologia de ponta da Web Summit. Concorda?
Tentei replicar o digital na vila de Alpedrinha. Foi um evento de partilha de conhecimento. Vi a primeira exposição de arte digital no festival Boom, na edição de estreia [1997]. Na altura, há quase 30 anos, não tinham as definições que temos hoje. Atrás de mim tenho um LED, de grande qualidade, semelhante a um do MoMA em Nova Iorque. Fui lá há quatro anos, no Natal, vi um video mapping com o John Lennon a cantar e disse à minha irmã que faria aquilo em Alpedrinha. Quando estava a programar o Picadeiro, surgiu-me a oportunidade de falar com um dos melhores VJ’s, que fez eventos na Torre Eiffel e mais recentemente na reabertura da catedral de Notre-Dame. Ele deu-me a dica que em Portugal havia pessoas a trabalharem na área e deu-me uns quantos contactos. Marquei uma reunião com o VJ dos The Gift, expliquei-lhe o que queria fazer, ele aceitou. Ficou fascinado com o palácio. Também tenho influências da Web Summit, tenho ido a todas as edições porque sou responsável pela área de inovação do município do Fundão.

Tem contado com o apoio do município para o festival. Por isso fez uma homenagem ao presidente da câmara, Paulo Fernandes? 
Fiz um avatar dele. Era a inteligência artificial a falar, com a voz dele, no último dia do festival às 23h. Foi o VJ Daniel Rondulha que produziu isto.

Com as eleições autárquicas à porta, teme que esta iniciativa tenha os dias contados?
Espero que haja continuidade, que não se fechem portas. Faz bem haver mudança, mas que não sejam mudanças radicais e que projetos como este que não se percam, comigo ou com outras pessoas. Isto é um evento para criar comunidade e partilhar conhecimento. O Fundão é um diamante em bruto, com um potencial enorme. 

Já trouxe ao Fundão grandes nomes: Peter Murphy, Peter Hook, Nicola Conte (...), The Legendary Tiger Man, Linda Martini, Peixe Avião, Long Way to Alaska, Capitão Fausto, etc. 

É arquiteto de formação, continua a exercer?
Não exerço, porque estou mais ligado à tecnologia. A minha função é trazer pessoas para o território. De preferência, talento, para acrescentarem valor e desenvolverem o Fundão. Criámos um conjunto de ferramentas, como espaços de cowork, um laboratório de fabricação digital (Fab LAB), e estamos a criar um hub ligado aos videojogos. Na sequência de estar há dez anos a trabalhar na área, tenho acesso a uma série de agendas nas indústrias criativas digitais. O festival foi o comemorar de uma década de inovação e um motivo para trazer a tecnologia que está a acontecer no mundo. Fizemos palestras dedicadas ao blockchain, à criptomoeda, ao chat GPT. Os pintores analógicos, de arte física, perguntavam aos tecnológicos como faziam realidade aumentada.

Tem saudades da arquitetura?
A arquitetura é uma área difícil. Estive durante 11 anos em Lisboa, a estudar e a trabalhar. Só pensava em arquitetura, vivia para aquilo. O meu último projeto de arquiteto foi um bloco de habitação na Calçada das Necessidades. Surgiu este convite da Câmara Municipal e nem hesitei. Aqui há mais qualidade de vida, a velocidade é mais lenta. Mas quando cheguei não se passava nada, nos fins de semana arrancava para Lisboa. Entretanto, a malta desafiou-me para revitalizar o teatro de Alpedrinha, estive oito anos à frente do projeto. Conseguimos colocá-lo como uma referência da música a nível nacional. Fizemos três edições do festival Aragens, onde trazíamos bandas como The Legendary Tiger Man, Linda Martini, Peixe Avião, Long Way to Alaska, Capitão Fausto. Resumindo, o Fundão não é só cerejas. (Risos) Com muita insistência, consegui colocá-lo no roteiro das bandas.

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Foi difícil quebrar o circuito habitual de Lisboa e do Porto?
Tentámos quebrar o enguiço. Já trouxe ao Fundão grandes nomes: Peter Murphy, Peter Hook, Nicola Conte, etc. Esse projeto chamava-se Open Sounds, consistia em trazer bandas internacionais ao interior do País. Havia um por ano, 2015/2016. Os agentes internacionais ligavam-me, diziam que os artistas iam atuar em Lisboa, no Porto e perguntavam-me se queria que eles fossem ao Fundão. Só que isto tem muitos custos. O Fundão poderia ser a terceira cidade dos concertos internacionais. A seguir saí do teatro de Alpedrinha e a malta continuou a desafiar-me. Lancei o Sons à Sexta, em que uma sexta-feira por mês trazia uma banda emergente do lado B. Sou muito amigo do [Fernando] Alvim, o Termómetro [festival-concurso anual de música, organizado pelo conhecido radialista] veio ao Fundão. Tenho a sorte de estar na área da inovação e viajar bastante para ver o que está a acontecer.

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